Sistema de precedentes no novo CPC coloca o Direito brasileiro numa encruzilhada

Autor: Nagibe de Melo Jorge Neto (*)

 

Aprendemos, na faculdade de Direito, que aplicar o Direito é fazer Justiça no caso concreto. Mas é, de fato, possível fazer Justiça no caso concreto? Quero dizer, é possível para o nosso ou para qualquer outro sistema de Justiça que recebe dezenas de milhares de casos novos a cada ano, examinar cada caso em suas únicas e exclusivas peculiaridades? Quais são — se é que existem — os limites da Justiça? Bom, não pretendo estabelecer aqui o conceito de Justiça, algo que, a propósito, os maiores filósofos não conseguiram fazer de modo consistente nos últimos dois mil e quinhentos anos. Contudo, talvez seja útil perceber que o nosso conceito de Justiça ainda é um tanto romântico.

Muitos juízes, advogados e, sobretudo, professores têm a firme convicção de que a Justiça é algo que deve ser buscado e alcançado a qualquer custo. Não importa quanto tempo demore a busca. Não importa quantos recursos e julgamentos sejam necessários. Muitas vezes não importa nem a lei nem os precedentes, já que a obrigação dos juízes e tribunais é decidir o caso de modo único. Sim, à luz do Direito, mas de modo único, de modo que eles chamariam justo.

Em Thinking like a lawyer, Frederick Schauer, professor da Universidade de Virgínia, pergunta se há um modo de raciocinar próprio dos juízes e advogados e, se há, o que caracterizaria esse específico modo de argumentar. Segundo ele, a argumentação jurídica distingue-se de outros modos de argumentação porque estaria limitada pelo rule of law. Isso significa que, antes de procurar atingir o melhor resultado para uma dada controvérsia, considerando suas circunstâncias e contexto particulares, o objetivo do Direito é frequentemente assegurar que o mesmo resultado seja aplicado para todos ou, pelo menos, para a maioria dos que compõem uma determinada categoria[1]. O rule of law tem a ver muito de perto, portanto, com igualdade e previsibilidade na aplicação da lei.

Schauer apoia-se na autoridade de Sir Edward Coke, o maior jurista da era elisabetana, alguém que, de certo modo, ajudou a moldar a própria common law. Segundo Lord Coke, é melhor atingir o resultado errado em uma controvérsia particular que adotar uma regra que produziria o que poderia parecer o resultado correto para o caso, mas ao custo de produzir o resultado errado em muitos outros[2]. Aqui, nosso senso de Justiça dispara uma alerta vermelho. Como assim produzir o resultado errado? O Poder Judiciário não pode permitir a produção de um sequer resultado errado! Pois é…

O sistema de precedentes que entra em vigor com força total no próximo dia 18 de março, com o novo Código de Processo Civil, e que foi em grande parte importado da common law, exige dos juízes e advogados coerência, previsibilidade e, sobretudo, uniformidade no tratamento de casos semelhantes, ainda que ao custo de produzir decisões erradas nos casos desviantes do padrão.

Segundo Schauer, ao exigir que as decisões judiciais sigam o precedente, o Direito está comprometido com a visão de que, frequentemente, é melhor que a decisão esteja de acordo com o precedente do que que esteja certa; de que, frequentemente, é mais importante que a decisão seja consistente com o precedente que, traga os melhores resultados[3].

A exigência parece assustadora. No Brasil, vemos os tribunais e as cortes superiores mais como órgãos que corrigem erros de julgamento, que como órgãos que asseguram a estabilidade e a integridade do Direito. Mais como órgãos responsáveis por assegurar a Justiça ao caso concreto, que como órgãos que asseguram a igual aplicação da lei em todos os casos semelhantes. O resultado disso? Milhares de recursos, uma enorme dificuldade para estabilização da jurisprudência, ausência de previsibilidade e de igualdade de tratamento para situações assemelhadas.

Estaremos dispostos a aplicar o sistema de precedentes, ainda que ao custo de julgamentos errados em situações ligeiramente desviantes do padrão? Digo ligeiramente porque se são muitos desviantes, não será o caso de seguir o precedente estabelecido. Até agora parecemos ter optado pelos julgamentos justos, ainda que esses julgamentos dificilmente acabem. Vivemos da esperança romântica de uma Justiça que na prática mostra-se cara e inalcançável. Falta-nos a praticidade dos anglo-saxões.

Interessante que a visão da common law exposta por Schauer está de acordo com a visão do direito continental europeu, ou pelo menos do direito germânico, exposta por Alexy em seu Teoria da argumentação jurídica. Segundo Alexy, uma das regras para se atingir a racionalidade da argumentação jurídica é a seguinte: “para a fundamentação de uma decisão jurídica deve-se apresentar pelo menos uma norma universal[4]. A norma universal reflete justamente a obrigação de que todas as situações semelhantes sejam decididas de modo igual.

Se admitirmos que cada caso é único, com de fato é, o sistema de precedentes não poderá ser plenamente aplicado porque cada caso deverá ser analisado de per si, levando em conta os dramas, circunstâncias e peculiaridades que lhe são próprios. Ocorrerá, então, o uso e abuso dodistinguishing, afastando-se o precedente ao menor sinal de distinção.

Se as cortes não estiverem dispostas a manter os precedentes, mesmo que um ou outro julgamento pareça inadequado, teremos o abuso do overruling, inclusive com a modificação do precedente a cada mudança na composição das cortes. Se, por outro lado, estiverem dispostas a manter os precedentes, teremos estabilidade e previsibilidade nos julgamentos ao custo de um percentual de julgamentos inadequados.

O desafio fundamental do sistema de precedentes parece ser eleger as circunstâncias que sejam determinantes para decisão, de modo que o percentual de julgamentos inadequados seja baixo em comparação com a quantidade total de casos julgados de acordo com o precedente.

O Direito brasileiro encontra-se em uma encruzilhada. Ou levamos a sério o sistema de precedentes, ou continuamos buscando a Justiça no caso concreto ao custo de milhares de recursos e processos que jamais terminam. Ou os tribunais e cortes superiores passam a atuar como os guardiões da estabilidade e previsibilidade do Direito, ou continuamos esperando que a próxima decisão seja mais justa e melhor que a anterior, em uma espiral que não acaba até que o último de uma infinidade de recursos seja julgado.

As novas, importantes e bem-vindas obrigações dos juízes ao fundamentar a decisão judicial, previstas no § 1º, do artigo 489, do novo CPC[5], a sistemática de recursos repetitivos, a ampliação do uso da reclamação, nada disso será suficiente para racionalizar nosso sistema de Justiça se os tribunais e as cortes superiores não optarem pelo uso dos precedentes que beneficie a maioria dos jurisdicionais, ainda que uma ou outra decisão possa ser tida como desviante. Corremos o risco de, ao buscar o ideal romântico de Justiça, não acharmos nem a Justiça nem a eficiência e, de sobra, enterrar o sistema de precedentes.

 

 

 

Autor: Nagibe de Melo Jorge Neto é juiz federal. Professor. Mestre e doutorando em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Autor da obra Sentença Cível: teoria e prática

 


Você está prestes a ser direcionado à página
Deseja realmente prosseguir?
Atendimento