Sistema penal lembra cada vez mais o alienista Simão Bacamarte

Autor: Adel El Tasse (*)

 

Machado de Assis foi, sem nenhum favor, alguém que pode ser considerado um gigante da literatura, conseguindo desenvolver em suas obras, em meio a uma narrativa de altíssima qualidade e português impecável, debates profundos sobre a natureza humana, como, por exemplo, em Dom Casmurro, as eternas dúvidas sobre a traição de Capitu a Bentinho, se ela era uma mulher promíscua ou cruel, dúvidas que fazem Bentinho se converter de pessoa alegre e gentil, em alguém taciturno e ensimesmado.

Em Memórias Póstumas de Braz Cubas a sociedade patriarcal brasileira é descortinada  em todas as suas contradições e preconceitos, desde o menosprezo aos negros e às mulheres até o receio com os avanços intelectuais e científicos.

Em O Alienista, Machado de Assis faz um pujante alerta sobre o sentimento de imaginar-se superior, mais capaz, mais normal que acomete as pessoas, ao mostrar a história da “Casa Verde” e do médico Simão Bacamarte. A Casa Verde, hospício edificado em um casarão suntuoso, passa a ser usado pelo Dr. Bacamarte para internar pessoas que ele considera padecer de algum mal mental, o que o conduz a internar moradores locais de forma geral, autoridades e políticos, chegando mesmo a internar a sua própria esposa, a tal ponto que acaba por internar quase todos os moradores da cidade, o que o leva à conclusão que na verdade os anormais são os normais e ele, como o único que considera normal, é o verdadeiro anormal, então interna a si mesmo para se analisar e se estudar.

A operacionalização diária do sistema penal brasileiro traz inevitável a lembrança do alienista Simão Bacamarte, pois se observa, entre aqueles que se julgam detentores de moralidade absoluta e integrais cumpridores da lei, o desenvolvimento de uma lógica baseada na defesa da punição dos infratores de forma apaixonada e sem qualquer tolerância ou razoabilidade.

Foi estabelecida, dessa forma, uma sociedade dividida entre “normais” e “anormais”, em que o ilícito penal é o critério de verificação da normalidade. A questão, porém, induz ao aprofundamento da análise para questionar se os que se veem hoje como normais realmente o são ou se reencenando a obra de Machado de Assis, estão apenas esperando a sua hora de serem internados.

Estariam realmente os “normais” isentos da “loucura” atual?

Vale pensar, quantos dos “normais”, por exemplo, nunca dirigiram após haver bebido; quantos se recusam a sonegar tributos; quantos não tem em suas casas CDs ou DVDs piratas ou mesmo TV a cabo “genérica”; quantos deles não possuem produtos contrafeitos; ou não são clientes contumazes do jogo do bicho. Quando viajam para o exterior seguramente só fazem compras até o limite da cota de isenção fiscal e se dela passam são ávidos em procurar às autoridades para pagar os impostos correspondentes. Nenhum deles possivelmente jamais fumou um baseado ou deu uma “cheiradinha”.

Sob a perspectiva ética também é válido refletir quantos dos “normais” são exemplos reais de moralidade, honestos nas relações pessoais, afetivas e comerciais, sem jamais trair os seus parceiros, nunca obtendo vantagem financeira com o erro de outros. Quantos dos “normais” realmente não acreditam que “o mundo é dos espertos”, que não é certo que se for em prol do que defendem como correto, tudo bem cometer alguns escorregões nas leis e nas regras. Será realmente que nenhum deles estaciona em vagas reservadas “só por cinco minutinhos” ou nenhum para em fila dupla, nenhum fura sinal vermelho, brigar no trânsito nem pensar. É inimaginável que algum deles utilize prerrogativas institucionais que eventualmente possua para, por exemplo, furar filas, obter entrada livre em cinema ou espetáculos ou mesmo algum benefício em casas noturnas.

A ideia da “normalidade” de alguns talvez não passe ao menor dos filtros, como os lançados nos aforismos dos dois parágrafos antecedentes, indicando muito mais do que a luta do bem contra o mal, mas na verdade  a instalação no Brasil do pânico punitivista com toda a irracionalidade que o permeia, não combatendo qualquer conflito social, pois inapto para isso fazer, mas gerando o que em toda a história de seu exercício, em todos os países do mundo, foi capaz de produzir, maiores conflitos, segmentação da sociedade e habilitação de poderes quase absolutos em favor das corporações autorizadas a exercê-lo.

A história do emprego do poder punitivo como meio de concentração de poder em favor de algumas castas, com a manutenção do grande universo populacional em conflito, fragmentado, porém com a interiorização da ideia de que há heróis combatendo um mal que coloca em risco a sociedade, não é nova, não nasceu com nenhum processo específico, nem com nenhuma nova república, mas tem as suas origens no século XII.

Em meados do século XII há uma percepção de que o efetivo exercício de poder dependeria do controle da capacidade punitiva, sendo afastadas as discussões em torno das causas reais dos conflitos, impossibilitando qualquer ação conciliatória entre os envolvidos, ao contrário, concentrando o poder punitivo como atributo do soberano, que cria para exercê-lo órgãos encarregados da persecução. Exatamente este é o momento do surgimento de instituições como as polícias e o Ministério Público, o que explica porque os autores iluministas posteriores manifestaram tão forte repulsa a estas instituições, que viam vinculadas ao exercício do poder absolutista.

Evidente que as instituições avançam e as referidas acima em parte avançaram, porém a concentração do poder punitivo jamais foi revista e com isso chegou ao século XXI, ou seja, se manteve, com mudanças de nuances, por nove séculos, produzindo por certo toda a estrutura cultural existente na atualidade, pela qual, sem maiores discussões, há certa uniformidade no pensamento de que os conflitos devem ser enfrentados com punições, devendo ser estas aplicadas por órgãos que concentram a capacidade de seu exercício.

Ocorre que disso se extrai a interiorização da necessidade punitiva, da própria incapacidade para resolver os conflitos do quais a pessoa seja parte, com a geração de uma imagem abstrata de Estado que encarna todos os atributos positivos, sendo uma espécie de super-herói dos quadrinhos, com valores eticamente superiores, ausência de interesses pessoais e pleno sentido de igualdade na busca da paz social.

Essa imagem abstrata, porém, não tem qualquer relação com a verdadeira face do Estado contemporâneo, quando submetido ao crivo da verificação realista, pois o que se observa é algo muito mais semelhante ao Deus Cronos da mitologia grega, continuamente engolindo os próprios filhos para não dividir o seu poder. Verifica-se uma estrutura em que se alternam interesses corporativos, fazendo a igualdade e a paz social nada mais serem que proclamações retóricas funcionais à manutenção cativa da maior parcela da população.

A questão é acrescida da constatação havida desde o século XII, de que o poder somente é real se exercido com capacidade punitiva, o que faz ser permanente a necessidade das corporações que controlam o Estado de monopolizar o poder punitivo, por vezes rivalizando-se neste objetivo.

Para que o poder punitivo seja eficazmente exercido como mecanismo de controle das pessoas e fortalecimento da elite que dele dispõe é essencial que algumas etapas sejam estruturadas:

1. As pessoas em geral precisam aceitar a necessidade do poder punitivo;

2. Quem exerce o poder punitivo precisa ser identificado como “salvador da pátria”, “herói”, alguém efetivamente necessário para a própria continuidade da existência da sociedade;

3. Deve haver controle pleno do poder punitivo, com afastamento de outras corporações que poderiam dividi-lo;

4. Os que combatem os excessos são perseguidos, silenciados e classificados como aliados do mal;

5. É fundamental que sejam gerados inimigos coletivos, continuamente apontados por quem controla o poder punitivo;

6. A repulsa contra os inimigos apontados deve ser crescente, gerando sentimentos de hostilidade a eles, desaguando no pânico.

É fácil observar que essa fórmula secular é seguida de maneira bastante estrita quando se fala atualmente do exercício do poder punitivo no Brasil, senão vale refletir:

1. Pouco se discute sobre a efetiva necessidade do poder punitivo, ao contrário, são contínuos os clamores contra a “impunidade”, mesmo ostentando o Brasil uma das maiores populações carcerárias do mundo; em favor do porte irrestrito de armas de fogo, como maneira de possibilitar punição liminar e imediata dos “maus”. Também se observa uma glamourização dos exercentes do poder punitivo, independente da etapa da persecução em que se da sua atuação;

2. Quanto mais autoritário o agente público no exercício do poder punitivo, com maior exercício habilitador dele, aplicando desde as prisões processuais como penas antecipadas ou mecanismos de constrangimento e coação do acusado, até a fixação de penas em quantitativo elevado e desproporcional com o sistema, mais são identificados com “heróis” e “salvadores da pátria”;

3. Há evidente disputa institucional pelo poder punitivo, com embates inclusive sobre o ponto de vista da quebra da independência dos poderes e invasão em assuntos tradicionalmente interpretados como de segurança nacional;

4. Doutrinadores e professores de posição crítica tem sido marginalizados e classificados como ultrapassados, ao mesmo passo que advogados que combatem no dia a dia a redução de direitos tem sofrido permanente tentativa de silenciamento e tido prerrogativas desrespeitadas sob os aplausos da opinião pública;

5. Inimigos são continuamente apontados e conduzidos à execração pública, independente dos seus reais níveis de responsabilidade penal;

6. Há um trabalho permanente de associações de classe e organizações corporativas na geração pelos meios de comunicação de massa e pelas redes sociais de hostilidade contra os apontados inimigos, com empenho na criação de verdadeiro pânico coletivo.

Há, dessa forma, no momento atual, exercício maximizado das punições sob o controle concentrado, esquema que conduz à gradual e contínua redução de direitos e garantias até a produção de níveis excessivos de controle sobre as pessoas, dando margem ao surgimento do modelo autoritário de Estado.

Quando o autoritarismo efetivamente se estabelece, o seu poder se alastra e os possíveis alvos de sua intervenção também se ampliam, na medida em que é sempre necessária uma nova “clientela” para manter as estruturas discursivas que o sustentam, ou seja, quando um grupo é totalmente eliminado, outro deve assumir o seu lugar como o “anormal” da vez, a ser catalogado como inimigo público, o que é particularmente interessante analisar em sociedades como a brasileira, em que, conforme refletido acima, os que se consideram “normais” talvez tenham muito “lixo escondido embaixo do tapete”, muitos desvios em relação ao cumprimento da lei ou no exercício concreto do conteúdo moral que dizem defender.

Isso é interessante porque, em última análise todos são passíveis de se converterem em inimigos públicos, basta conjunturas de momento, ausência de outra clientela mais adequada, interesses econômicos dominantes, enfim, as portas do “grande manicômio” estão abertas e qualquer um pode ser jogado lá dentro por quem fizer as vezes de Dr. Bacamarte.

O que talvez nem Machado de Assis tenha imaginado é que a sociedade brasileira caminharia tão rapidamente, como o faz, para a corrosão de estruturas democráticas de contenção do poder punitivo, somada à geração de uma sociedade altamente conflitiva e segmentada, com interiorização da repulsa e pânico em relação àquele que é catalogado como inimigo, sem possibilidade de afirmar salvaguarda a ninguém, na medida em que o risco da “Casa Verde” atual não é de que o Alienista conclua ser ele o único anormal e se auto interne soltando os demais, mas que não sobre ninguém do lado de fora para fechar as portas, nem mesmo o alienista.

E talvez os tempos atuais em que se forjam emergências, em que parece muito sério adotar medidas punitivas extremas, conceder poderes para limitar direitos e garantias a quem já dispõe de muito poder e absolutamente secundária qualquer preocupação com a salvaguarda dos valores democráticos, dos mecanismos penais e processuais penais de contenção do poder punitivo, também encontrem referência no escrito nominado Ao Acaso, de Machado de Assis, alguma explicação: “um dos defeitos mais gerais, entre nós, é achar sério o que é ridículo, e ridículo o que é sério.”

Tudo bem, novamente a manifestação de um defeito comum, mas o problema, repita-se, é que desta vez quando tudo acabar talvez não sobre ninguém para o lado de fora para fechar a porta.

 

 

 

 

 

Autor: Adel El Tasse é procurador federal, professor nas Escolas da Magistratura Federal e Estadual do Paraná, mestre em Direito Penal, e integrante da coordenadoria do Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais.


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