Autor: Welington Araujo de Arruda (*)
Não raras vezes ouvimos pais de família, mães, toda sorte de pessoas de bem bradando que os presos deveriam apodrecer na cadeia. Em outras oportunidades escutamos gritarem que eles têm privilégios, regalias. Falam com o conhecimento adquirido em programas jornalísticos sensacionalistas, daqueles em que seus apresentadores se desdobram para garantir um ponto a mais na audiência.
No entanto, por diversas vezes recebemos cartas de algum preso que está em alguma masmorra da idade pós-moderna. Estes sim, testemunhas vivas de que a idade média não acabou, apenas migrou da Europa para a América Latina, notadamente, para o Brasil.
Tomamos a liberdade de transcrever trecho de uma das cartas que recebemos recentemente de um homem que foi acusado pela Polícia Federal de ser um dos maiores traficantes internacionais que o Brasil já conheceu. Preso em uma operação cinematográfica realizada pela Polícia Federal, após tê-lo investigado por mais de seis anos, ele retrata parte do que tem passado nestes dias encarcerado.
Por questões óbvias tomamos a liberdade de filtrar alguma informação que pudesse prejudicá-lo e/ou a terceiros.
Sabe, a cada dia nesse lugar parece 1 semana. Não sei o que é ser feliz a 3 anos e 4 meses. A cadeia nos rouba a felicidade. Nesses 1 ano e 6 meses que estou aqui tive inúmeras tempestades, foram as piores da minha vida, conheci pela primeira vez o que é a fome, passar pasta de dente na boca para tentar enganar ela (sic), tomar água, água e água e não conseguir dormir de fome, olhar alguém comendo e você não ter nada. É triste e doloroso, aí você começa a pensar nas crianças que tem esse sentimento, aí você começa a se revoltar com as pessoas e até com você mesmo porque nunca prestou atenção nisso.
Tive síndrome do pânico novamente, mas dessa vez foi a pior. Eu vivi 3 meses com os piores tipos de presos, pessoas sem reçocialização (sic) nenhuma, gente ruim de verdade. Era o inferno todos os dias. Eu achava que iria morrer. Aconteceu tanta coisa, fui para dois debates, onde o assunto era minha vida. Pedi tanto para Deus me proteger e protegeu. […]
Tudo melhorou quando o chefe de plantão me tirou do inferno que era o raio III, aí consegui mudar para o raio II que era melhor, fiquei 1 ano lá e hoje finalmente consegui chegar onde queria, o melhor raio da cadeia que é o raio I. É um raio que só tem quem trabalha, onde ninguém cobra nada de ninguém e como a diferença é gigante entre os outros raios ninguém quer sair daqui, é como o céu e o inferno. […]
Sei que não é fácil, quase 4 anos sem o julgamento da apelação e a única coisa que eu queria era ter o direito de ser julgado e ficar perto da minha família, sair desse fim de mundo e ir para mais próximo, mas Deus guiará meus passos para o caminho do bem, essa é a minha fé.”
É assim que este homem retrata uma ínfima parte daquilo que passa no sistema prisional de São Paulo. Preso e processado por incontáveis crimes de repercussão nacional e internacional, foi protagonista e ator central em um dos principais programas televisivos do país, o Fantástico, da Rede Globo.
O processo tramita na justiça federal, em segredo, e já se foram mais de três anos desde a data de sua prisão. Houve condenação em primeira instância e o recurso da defesa aguarda o julgamento da Apelação no Tribunal Regional Federal da Terceira Região.
A carta não traz nenhuma novidade fora daquelas que já são conhecidas pelos profissionais que militam no Direito Penal. Apenas reafirma a miserabilidade de tratamento fornecido aos presos, bem como a negativa absoluta de ressocialização por parte do Estado Paulista.
Quando um homem (ou uma mulher) vai preso nascem duas certezas, a uma a que ele de fato está preso, sob custódia do Estado e a duas que ele sairá da prisão um dia, ainda que morto. No entanto, considerando que ele sairá vivo, devemos nos questionar como queremos que este homem saia.
Poderíamos de forma singela concluir que se aplicássemos apenas nossa Constituição Federal e os Tratados Internacionais de Direitos Humanos que o Brasil é signatário seria o suficiente para garantir uma estrutura de ressocialização e tratamento digno, no entanto, não fazemos isso, apesar de sermos um país em que a sociedade cobra diuturnamente o cumprimento das leis existentes.
Pela carta, vê-se nitidamente que um dos grandes desejos do interlocutor era trabalhar, o que é impossível nos presídios e CDP’s do país. Recentemente foi noticiado em tom absoluto de um populismo amargo o Projeto de Lei do Senado Federal 580, que visa alterar a Lei 7.210/1984 (Lei de Execução Penal), cujo objetivo narrado aos quatro cantos do país era de garantir que o preso ressarcisse o Estado das despesas com sua manutenção.
Ocorre, porém, que tal previsão já existe na LEP. Está no artigo 29, § 1º, “d”. Lá garante que o preso trabalhe para ressarcir o Estado, porém, como dito alhures, não existe trabalho para o preso. A proposta não vai resolver o problema, ainda que diga que o preso deva trabalhar, mesmo porque, tal previsão é existente e vem textual no artigo 31, da LEP, ou seja, a proposta do Senado Federal é populista e não tem real intenção de resolver nada.
Em São Paulo coloca-se um preso, veja, digo um em um universo de milhares, para costurar bolas diariamente, das 08h às 17h, porém, quando ele sair do sistema prisional por acaso ele conseguirá na rua um emprego de costurador de bolas? conseguirá trabalhar como fazedor de lacinhos para embrulhos vendidos na 25 de Março? Não!
Temos notícias de presos passando fome, sem direito a visitas, sem roupas, sem atendimento médico, sem incentivos, estes presos, todos eles, sairão do sistema prisional para conviver conosco e não será um carro blindado ou um condomínio lacrado que impedirá de convivermos e cruzarmos com muitos deles nas ruas.
Precisamos repensar o que chamamos de ressocialização, pois o que tem sido aplicado até hoje não deu certo, logo, ou trocamos o técnico ou mudamos a tática, mas deixar como está não é alternativa.
Autor: Welington Araujo de Arruda é advogado militante na Defesa das Garantias Constitucionais. Especialista em História da Filosofia pela PUC-SP.