Sistema socioeducativo não pode se tornar um novo sistema prisional

Autora: Liana Lisboa (*)

 

Poucas semanas após o estado Ceará ser destaque no Informe 2017/2018 da Anistia Internacional em razão da situação caótica de seu sistema socioeducativo, foi com grande surpresa que recebemos as notícias acerca da apresentação de um projeto de lei que busca aumentar em até três vezes o tempo máximo de internação de adolescentes que tenham praticado ato infracional reputado como “de violência extrema”.

O projeto, apresentado pelo procurador-geral de Justiça do Ceará na qualidade de presidente do Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas (GNCOC) do Colégio Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça (CNPG), busca ampliar o limite temporal máximo legalmente estabelecido para a medida de internação (que variará de três a nove anos), bem como fixar tempo mínimo variável para o cumprimento dessa medida, tudo a depender da idade do adolescente quando da prática do ato infracional. Atualmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece que em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos e fixa, independentemente da idade do adolescente, o tempo mínimo de seis meses para seu cumprimento.

Dissemos, em outro momento, quando tratávamos da PEC da redução da maioridade penal, que as propostas que objetivam recrudescer o tratamento dado ao adolescente em conflito com a lei sustentam-se em uma informação desonesta: a de que adolescentes não são responsabilizados penalmente por seus atos. Uma rápida passagem pelos centros socioeducativos de Fortaleza evidencia, contudo, que essas unidades em quase nada se diferem de estabelecimentos prisionais, seja em sua estrutura física, seja no tratamento ofertado aos jovens e adolescentes que ali cumprem medida socioeducativa.

Neste contexto, é de registrar que o estado do Ceará teve especial destaque no Informe 2017/2018 da Anistia Internacional não apenas pela caótica situação de suas unidades socioeducativas, mas também pela absoluta omissão dos órgãos responsáveis quanto à apuração de denúncias de torturas e maus-tratos dentro dessas unidades: de 200 notificações formais, apenas duas tiveram inquéritos policiais instaurados para apuração. Tais dados, somados ao projeto em questão, são sintomáticos do lugar dado aos adolescentes em conflito com a lei por parcela do sistema de Justiça cearense: o de não sujeito, um problema a se livrar com sua retirada da sociedade e do qual se deve esquecer quando segregado.

A proposta de aumentar para até nove anos o tempo máximo da medida de internação, fixando, ademais, tempo mínimo para referida medida, chega-nos como um reconhecimento público do Estado de que não há e de que não deve haver diferença entre o tratamento dispensado a um adolescente que cometa um ato infracional análogo a um delito e um adulto que pratique esse mesmo delito. Rompe-se, assim, com as determinações internacionais, constitucionais e legais sobre o tema. Tem-se a negação definitiva da condição peculiar da criança e do adolescente como pessoa em desenvolvimento estatuída pelo ECA.

Aliás, parece-nos evidente que essa proposta é uma forma dissimulada de implementar, por via indireta, a redução da maioridade penal. O raciocínio é simples: já que a Proposta de Emenda Constitucional 33/2012 teve sua votação adiada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) em setembro de 2017 e não foi até hoje reapresentada para votação, e tendo em vista a dura resistência a sua aprovação manifestada por acadêmicos e profissionais que militam na área da infância e da juventude, triplica-se o tempo máximo da medida de internação e se equiparam, assim, as sanções impostas a adultos e adolescentes. Dá-se uma roupa nova para um debate antigo: o projeto é, sem dúvida, uma manobra cínica e inconstitucional.

A invocação do encarceramento como mecanismo de contenção da violência — sobremaneira da violência urbana — não é uma fórmula nova. Ao revés, vem sendo adotada há anos no Brasil, e todos os dados estatísticos chegam à mesma conclusão: ela não apenas não serve aos fins a que se propõe como, em verdade, foi a grande responsável pelo fortalecimento das organizações criminosas na última década.

Com efeito, as organizações criminosas — hoje nominadas facções — muito rapidamente compreenderam que o melhor local para “recrutar” seus “soldados” é dentro das penitenciárias. Em um cenário de violação generalizada de direitos fundamentais das pessoas encarceradas, que ensejou, em 2015, o reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de que o sistema prisional brasileiro encontra-se em um estado de coisas inconstitucional (ADPF 347), a adesão a esta ou aquela facção revela-se, muitas vezes, como o único meio que o recém-ingresso no sistema tem para sobreviver àquela barbárie.

Tal lógica, antes circunscrita ao sistema prisional, tem alcançado o sistema socioeducativo nos últimos anos e há um esforço conjunto entre parcela do sistema de Justiça e do Poder Executivo do Ceará para evitar que aquele cenário se repita entre os jovens e adolescentes. O aumento em até três vezes no tempo máximo de internação desses sujeitos, proposto pelo CNPG, vai na contramão de tudo que tem sido debatido, pensado e feito para que as medidas impostas aos adolescentes em conflito com a lei tenham realmente um caráter socioeducativo, e não meramente punitivo. O projeto de lei apresentado, se aprovado, apenas transformará o sistema socioeducativo em um novo sistema prisional — com todas as mazelas, violações e graves consequências para a vida das pessoas que nele se encontrem e para a segurança pública.

Há 28 anos temos um estatuto que rege o tratamento que deveria ser dado aos adolescentes em conflito com a lei. Um pouco mais recente, a Lei do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) fixou diretrizes, princípios e metodologias a serem adotadas nessa seara. Nenhuma das duas foi implementada em sua integralidade até hoje. Em inspeções semanais aos centros socioeducativos de Fortaleza, bem como no acompanhamento judicial dos processos de apuração de atos infracionais e de execução das medidas socioeducativas, a Defensoria Pública do Ceará tem identificado, impugnado e denunciado inúmeras violações a ambos aqueles diplomas normativos.

Não precisamos de leis novas, muito menos de leis com manifesto viés punitivista. Precisamos apenas que os atores políticos e do sistema de Justiça cumpram seus papéis na concretização do sistema socioeducativo pensado pelo ECA e pela Lei do Sinase.

 

 

Autora: Liana Lisboa é defensora pública e supervisora do Núcleo de Atendimento aos Jovens e Adolescentes em Conflito com a Lei da Defensoria Pública do Ceará.


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