por José Antonio Milagre
Mais do que cediço, o VoIP, tecnologia que permite a telefonia através da internet, precisamente sobre a camada lógica de transmissão, ou através do protocolo IP, por meio do sistema de empacotamento “packet switching”, vêm se popularizando e ganhando mercado com uma força vexante. Estimativas revelam que tal modalidade de telecomunicação crescerá 800% até 2009, embora a Anatel entenda, equivocadamente, que tal revolução é meramente uma tecnologia e que tal autarquia não deve regulamentar tecnologias e sim telecomunicações.
Ocorre que, dada sua ingerência social e reflexos nos campo do Direito Concorrencial, Tributário e Regulatório, inegável que estamos diante de uma nova modalidade de telecomunicação, com características exclusivas, e que prescinde, sem anfibologias, de um urgente regramento. O Voip, como metodologia decorrente da evolução social, traz o anacronismo às normas preexistentes, que se não adaptadas com urgência, podem se tornar eivadas de ineficácia plena. Daí decorre a necessidade do Direito acompanhar a evolução tecnológica.
Questão pontual que se coloca e que vem sendo componente de acalorados debates refere-se à instrução criminal, precisamente à permissibilidade da interceptação telefônica, para fins de instrução criminal, quando a comunicação órbita sobre a camada IP de comunicação, ou seja, quando a telefonia é VoIP.
Em termos de voz sobre a camada IP, temos três modalidades de serviços:
a) VoIP pc-to-pc, considerado pela Lei Geral de Telecomunicações como serviço de valor acidionado (artigo 61), ou seja, não sujeito à regulamentação da Anatel
b) VoIP pc-to-phone
c) VoIP phone-to-phone, ambos, por convergirem em camadas comunicativas diversas, considerados nítidos serviços de telecomunicações (artigo 60 da Lei 9.472/1997), amparados pelos anódinos licenciamentos SCM (Serviço de Comunicação Multimídia) ou STFC (Serviço Telefônico Fixo Comutado).
Neste sentido, inegável que o VoIP é telecomunicação, entretanto, resta-nos um desafio: O VoIP é telefonia? É importante esclarecer que telecomunicação e telefonia são conceitos distintos, eis que telecomunicação é a transmissão, emissão ou recepção, por fio, radioeletricidade, meios ópticos ou qualquer outro processo eletromagnético, de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza. Já telefonia é uma das diversas formas de telecomunicação, ou seja, é o modo específico de transmitir informação, decorrente de características particulares de transdução, de transmissão, de apresentação da informação ou de combinação destas.
Com efeito, a Constituição Federal de 1988 assegura em seu artigo 5º, inciso XII, que “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. Claro está que dentre as diversas modalidades comunicação e telecomunicação existentes, apenas a forma “telefonia” pode ser interceptada, estritamente para fins de instrução criminal ou processual penal, com autorização judicial.
Por sua vez, a Lei 9.296/1996, que regulamenta a interceptação telefônica no Brasil, prescreve em seu artigo 9º que “a gravação que não interessar à prova será inutilizada por decisão judicial, durante o inquérito, a instrução processual ou após esta, em virtude de requerimento do Ministério Público ou da parte interessada”. Ainda, para que enfrentemos a polêmica, precisamos extrair o significado de “telefonia”. Tal conceito vem estampado na Resolução Anatel 426 de 9 de dezembro de 2005 (Regulamento do Serviço Telefônico Fixo Comutado).
De acordo com a regra, processos de telefonia são “aqueles que permitem a comunicação entre pontos fixos determinados, de voz e outros sinais, utilizando técnica de transmissão nos modos 3,1 kHz-voz ou 7 kHz-áudio ou até 64 kbit/s irrestrito, por meio de fio, radioeletricidade, meios ópticos ou qualquer outro processo eletromagnético”.
Com base na limitação técnica trazida pela Lei 9.296/1996, onde a interceptação telefônica precisa ser “gravada”, bem como no conceito de telefonia, trazido pelo regulamento do STFC, que a define necessariamente como: “a comunicação entre pontos fixos nos modos 3,1 kHz-voz ou 7 kHz-áudio ou até 64 kbit/s irrestrito”, com base ainda na necessidade de uma regulamentação própria para o VoIP, diante da vedação do uso da analogia in malan parten, sobretudo tendo em vista que o VoIP utiliza a rede lógica e trafega da mesma forma que um e-mail (dados), corrente doutrinária, a qual não podemos desconsiderar por inteiro, vem pregando a não abrangência da expressão “telefonia” à comunicação VoIP, com conseqüente vedação da possibilidade de interceptação de tal tráfego, para fins de instrução criminal.
Propugna tal corrente ainda, pela parcial inconstitucionalidade da Lei 9.296/1996, onde afirmam que tal mandamento extrapolou a competência outorgada pela Carta Magna, em seu parágrafo único, quando da inclusão de sistemas de informática e telemática como subespécies de telefonia.
Para tais autores, se a telemática é uma ciência que cuida da manipulação de dados e informações, combinado sistemas de informática com os meios de comunicação, telefônicos ou não, nem toda a telemática é telefonia, com efeito, nem toda a telemática pode ser interceptada.
Em termos claros, informática e telemática podem não configurar a forma de telecomunicação denominada telefonia, de maneira que uma interceptação de tais fluxos caracterizaria prova ilícita, ilícito penal e constrangimento ilegal.
Logicamente, tal tecnicista doutrina merece sua reflexão, eis que em matéria penal deve-se privilegiar a taxatividade, sob pena de nulidade dos atos praticados. Entretanto, entendemos com restrições o ensinamento precitado, sobretudo por se assim interpretarmos, favoreceremos o crime em detrimento da colheita eficaz de provas, ou seja, estaremos de mãos atadas diante da nova tecnologia que se impõe no segmento de telecomunicações.
Evidentemente que o VoIP pc-to-phone e phone-to-phone, nítidos serviços de telecomunicações, trafegam através dos protocolos SIP e TCP/IP, característica elementar de nosso modelo padrão de internet no Brasil, o que pode em um primeiro momento sugerir que o VoIP é transmissão de dados e não telefonia.
Por outro lado, ao contrário do entendimento da Anatel, devemos apostilar a telecomunicação VoIP como o fim e não como o meio, ou seja, a finalidade do VoIP é fazer as vestes de um serviço telefônico e não transmitir dados. Esta é, aliás, a grande essência inovadora do VoIP, a capacidade de transcender camadas comunicativas, ou seja, podendo-se iniciar minha comunicação na camada lógica (IP) e terminá-la na camada física (Telefonia), ou vice-versa, graças a convergência de camadas.
Insta ressaltar por oportuno que, hoje temos um paradigma estabelecido no sentido de que telefonia só se dá por comutação de circuitos, ou seja, infra-estruturas baseadas numa tecnologia conhecida como TDM, onde a voz, para poder ser transmitida, é modulada e demodulada através de circuitos digitais, de modo que, quando se tira o telefone do gancho, obtém-se um tom e se disca, se está transmitindo informações estabelecendo-se uma ligação entre assinantes X e Y, ou seja, um circuito estabelecido entre dois pontos que fica disponível enquanto a ligação for mantida.
Atualmente, a telefonia pode não mais se dar necessariamente pelo estabelecimento de um circuito entre emissor e receptor, de forma contínua, mas por meio da comutação em pacotes, onde o fluxo é roteável e o tráfego não é ponto a ponto, mas segue a melhor rota possível (inteligente), e é esta a tecnologia que o VoIP utiliza.
Outrossim, embora acreditemos que a lei sobre interceptação deve prever a captura de comunicação IP, não significa dizer que os dados, atualmente, estejam à margem da abrangência da interceptação, como bem verificamos na jurisprudência do Tribunal de Justiça paulista:
PROVA — Interceptação telefônica — Hipóteses de autorização — Sujeição à Lei 9.296/96 — Aplicação do disposto no seu art. 1º, parágrafo único, também à interceptação do fluxo de comunicação em sistemas de informática e telemática — Necessidade — Segurança parcialmente concedida (Mandado de segurança n. 932.511-3/4 — Franca — 5ª Câmara Criminal — Relator: Damião Cogan — 11.05.06 — V.U. — Voto n. 9.517) CLB.
Também, se a Lei de Interceptação extrapola ou não os poderes conferidos pela Constituição Federal, o fato é que ela está em vigor e prescreve como sendo crime, punível com reclusão de dois a quatro anos e multa, realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.
O sentido da lei é claro ao incluir como crime a interceptação informática e telemática sem autorização: a possibilidade de interceptação informática e telemática devidamente autorizada pela Justiça.
Em síntese, para fins de interceptação, não podemos interpretar o VoIP como mera “informática”, eis que seu fim visa a telecomunicação. Por outro lado, para interceptarmos o VoIP é preciso que além de telecomunicação, tal tecnologia seja considerada telefonia, e neste contexto verificamos a necessidade de se substituir o termo espécie “telefonia” pelo gênero “telecomunicações”, na Constituição e Lei específica, visando aclarar a legislação e evitar incidentes judiciais.
Ademais, é preciso que se elucide que a telefonia não se dá tão somente pela comutação em circuitos, podendo ser efetivada mediante comutação de pacotes, como no VoIP. Por outro lado, diante da legislação ultrapassada existente, somos conduzidos a interpretar que o VoIP se insere no contexto de telefonia, dada sua capacidade de sair da camada IP e ingressar na telefonia convencional, por vezes fazendo o papel desta de maneira imperceptível.
José Antonio Milagre: é advogado e coordenador de Direito Eletrônico e Telecom