Só com educação básica, negros não dependerão de quotas

Mônica Sifuentes*

No dia 3 de outubro de 2001, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal realizou audiência pública para instruir o Projeto de Lei do Senado nº 650/99, de iniciativa do Senador José Sarney. O projeto objetiva instituir quotas de ação afirmativa para a população negra no acesso aos cargos e empregos públicos, à educação superior e aos contratos do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies). Segundo ele, a população negra (a expressão afro-descendentes tem sido considerada mais adequada) tem garantida quota de 20%, nos casos acima discriminados, desde que declarem na inscrição enquadrar-se na lei, conforme vier a ser regulamentada.

Nessa audiência pública, da qual participaram representantes de várias entidades como o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a Fundação Cultural Palmares, o Instituto Axé Ilê Oba, de São Paulo, o Ministério da Educação e a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, de Lisboa, houve unanimidade na defesa do incremento de políticas de ação afirmativa, por parte do governo, como forma de compensar a exclusão social a que os negros estão submetidos no Brasil desde o período colonial.

Segundo outro entendimento, que parece também unânime, com essa ação a sociedade brasileira estaria reparando uma das conseqüências visíveis da discriminação racial: as percentagens ínfimas de afro-descendentes ocupando vagas nas universidades públicas e privadas.

As estatísticas apresentadas pelo presidente do Ipea, Roberto Borges Martins, indicam ser o percentual de analfabetos, entre os negros, 2,5 vezes maior que entre os brancos; o percentual da população negra que completou 15 anos ou mais de estudo é cinco vezes menor que o percentual na população de brancos; a escolaridade média dos brancos é cerca de 50% superior à dos negros, o que explica o fato de a taxa de desemprego entre os negros ser maior que a dos brancos.

As discussões que se seguiram levaram o Senador Jefferson Peres a manifestar sua preocupação quanto à aplicabilidade das quotas, em vista da mestiçagem, além de apontar o problema dos indígenas, também escravizados na Amazônia. O senador Eduardo Suplicy, ampliando o leque de discussões, sugeriu a inclusão dos descendentes de indígenas entre os beneficiados do sistema de quotas.

A lista dos excluídos, por certo, não termina aí. E por que não acrescentar ao sistema de quotas, poder-se-ia argumentar, os homossexuais, os presidiários, os portadores de deficiência física e mental, os carentes e, até mesmo as mulheres, todos sabidamente vítimas de preconceituosa discriminação? Vale lembrar que para nós mulheres, não houve necessidade de se estipular quotas. Bastou a concorrência em igualdade de condições com os homens para que hoje fôssemos maioria em todos os cursos universitários do país. Mesmo que ainda se fale em preconceito, a conquista de espaço é e está sendo progressiva.

Estamos, com o devido respeito às opiniões em contrário, tratando da copa da árvore e nos esquecendo de cuidar da sua raiz, que está doente e é a verdadeira causa do problema.

A questão, a meu ver, resume-se no seguinte: se o critério de acesso à universidade brasileira é, pelo menos à partida, democrático, ou seja, por concurso vestibular em que os examinadores não averiguam qual é a cor do candidato, porque os afro-descendentes e todos os demais “excluídos” não conseguem entrar por essa porta?

Recuso-me a analisar o fato sob o enfoque de que os deficientes físicos já conseguiram as suas quotas em concursos, empregos e tal. Cinjo-me a perguntar: acaso a proteção à deficiência física justifica-se com o mesmo fundamento da ação afirmativa para inserção do negro na universidade e no mercado de trabalho qualificado?

Ora, parece-me fora de dúvida que o problema a abalar a raiz é anterior: a falta de acesso a um ensino fundamental e médio, público, de boa qualidade, que habilite qualquer dos excluídos, sejam negros, indígenas, pobres ou trabalhadores vindos das classes sociais menos favorecidas, a concorrer em paridade com os “bem-nascidos” a uma vaga nas universidades. É, em suma, a correção da profunda desigualdade social e econômica da sociedade brasileira que está a merecer das autoridades uma solução. A garantia de acesso à universidade aos que não tiveram assegurado o ensino básico em escolas públicas, com a mesma qualidade do que é oferecido na maioria das escolas particulares e confessionais, não resolve o problema da discriminação.

Tenho escrito que tratar do problema de acesso à educação no Brasil, país de grandes desigualdades econômicas e sociais, é o mesmo que tratar da exclusão social. Para isso, a nossa Constituição inscreveu o direito de acesso ao ensino fundamental, com todas as letras, além de atribuir-lhe a característica de direito público subjetivo. Pode-se exigir na Justiça a sua implementação. Basta ler a Constituição dos países onde o índice de analfabetismo é insignificante para constatar-se a falta de normas específicas relativas ao ensino fundamental. Não precisam, porque a população já o desfruta.

O problema tem, na verdade, raiz na desigualdade e forçoso é convir que também o descendente de branco, mas pobre, não ingressa na universidade, especialmente as públicas. O afro-descendente, se não tem acesso ao ensino superior, não é por que é negro, mas por que, na sua grande maioria, não tem condições financeiras de freqüentar uma escola de boa qualidade.

Sendo pobre, continuará freqüentando escolas públicas, onde o nível de ensino é atualmente de qualidade inferior ao da maioria das escolas particulares (para o pesar dos que conheceram as boas escolas do passado) e que por isso não lhe darão condições para uma posterior formação universitária. Quem duvida de que, assegurados a todos, afro-descendentes ou não – a garantia de acesso ao ensino básico de qualidade, a luta por uma vaga na universidade não seria mais justa, e menos discriminatória?

Desse modo, ainda que louvando a iniciativa do ilustre senador subscritor do projeto de lei, que tem a nítida intenção humanitária de corrigir esse grave problema social, permito-me discordar do instrumento utilizado. Somente com a educação básica, com a efetivação do direito de acesso de todos à boa escola, poder-se-á construir uma sociedade realmente democrática, onde o ingresso na universidade não dependa de quotas, mas do próprio mérito de cada um.

Mônica Sifuentes é juíza federal e mestre em Direito Econômico pela UFMG

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