Só uma Assembléia Constituinte exclusiva colocará o país nos trilhos

Em 1985/86 eu presidia o Instituto dos Advogados de São Paulo e, naquela época, o sodalício decidiu defender a tese de uma constituinte exclusiva. Foi ela albergada, posteriormente, pelo deputado Flávio Bierrenbach, em seu parecer para elaboração da emenda constitucional nº 26/86. Tal postura custou-lhe a relatoria. Os parlamentares não concordaram que houvesse um Congresso Nacional e uma constituinte paralela de especialistas ou políticos, com a única função de produzir texto constitucional de interesse da sociedade, que, após aprovado o texto, seria desfeita.

Não havendo a tese vingado, prevaleceu uma assembléia de parlamentares constituintes, que, simultaneamente, atuavam como deputados e senadores ordinários, os quais, após quase dois anos de discussão, produziram um texto tão provisório e tão extenso que já sofreu 46 emendas (40 no processo ordinário e seis no revisional), sobre gerar quase 3.000 ações diretas de inconstitucionalidade. Tudo isso em apenas 15 anos. A Constituição dos EUA, de 1787, tem 216 anos e apenas 26 emendas. A Corte Constitucional alemã, que só cuida de matéria constitucional -é muito mais antiga que a Constituição de 1988-, decidiu, desde sua fundação, um número menor de ações em controle concentrado de constitucionalidade que o STF nesse curto período.

Há, no momento, inúmeras propostas de alteração da Lei Suprema, das quais as duas mais extensas e mais relevantes são as reformas previdenciária e tributária. O texto aprovado na Câmara dos Deputados, da reforma tributária, tem mais artigos em suas 19 páginas datilografadas que toda a Constituição norte-americana.

Tramitam outros projetos de emenda (Judiciário, política, trabalhista etc.). Enfim, o processo de “remendo” constitucional é, no momento, o esporte predileto dos senhores congressistas — ao ponto de as disposições transitórias, na proposta tributária, chegarem a 99 artigos. E já era muito extenso o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias quando promulgada a Constituição de 1988 (era composto de 70 artigos). É uma Constituição tão provisória e tão periódica que muitos entendem que é mais fácil adquiri-la nas bancas de jornal do que nas livrarias.

Nesse contexto, discute-se novamente se valeria a pena convocar uma constituinte. Sou favorável, desde que exclusiva, como defendi à época em que presidia o Instituto dos Advogados de São Paulo. Só assim teríamos inúmeros professores, como ocorreu na Constituinte de 46, concorrendo às eleições e ofertando seu cabedal de estudos para o bem do Brasil.

Lembro-me que o dr. Garcia Lema, procurador-geral da nação argentina no governo Menem, visitou algumas vezes, a mim e a Celso Bastos, para conhecer a experiência brasileira e evitar, no processo constituinte da nação irmã, os equívocos gerados na formatação do texto revisional do país. E a solução foi uma Constituição de apenas 129 artigos e 17 dispositivos transitórios, texto esse discutido exclusivamente com os juristas de cada partido antes de ser levado ao Parlamento. Era o que, de certa forma, pretendia o deputado Ulysses Guimarães fazer, criando uma comissão própria, de juristas de sua confiança e dos partidos, para a revisão de 93, que terminou não ocorrendo por força de seu trágico falecimento.

Apesar das 46 emendas, o texto brasileiro continua incompleto e incoerente, sendo objeto de inúmeras propostas de emendas constitucionais. Não há como corrigi-lo. O vício é de origem. Foram 24 subcomissões trabalhando isoladamente para produzir diploma de impossível conciliação. A solução que os constituintes da época encontraram foi a de, na dúvida, remeter grande parte da Lei Suprema para regulação infraconstitucional. O exemplo da reforma tributária é paradigmático. O processo desfigurador do texto original é monumental. Cada dia possui um perfil diferente — não em função dos interesses da nação, mas deste ou daquele governador ou prefeito com influência para obter a alteração no texto original.

Essa é a razão pela qual não vejo viabilidade para uma constituinte de parlamentares, pois os interesses que representam produziriam, necessariamente, um texto pior que o que temos.

Vejo, todavia, com muito bons olhos uma constituinte exclusiva de pessoas idealistas, que concorreriam às eleições unicamente para produzir a Lei Maior e, cumprida a missão, voltariam às suas atividades. Tais idealistas, não pressionados por interesses locais, pessoais ou ambições de natureza política, terminariam por produzir uma Carta Máxima melhor que a atual, que se torna cada vez mais desfigurada a cada emenda promulgada, mesmo que elaborada para corrigir deficiências anteriores.

Minha posição, portanto, nestes debates de sábado que a Folha provoca, é favorável a uma constituinte, mas exclusiva, só admitindo parlamentares candidatos a dela participarem, em eleições livres, se abandonassem os mandatos que exercem no Congresso.

Por que não tentar?

Texto transcrito da Folha de S.Paulo

**Ives Gandra da Silva Martins é professor emérito da Universidade Mackenzie e da Escola de Comando Maior do Exército, presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e do Centro de Extensão Universitária — CEU

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