Nestes tempos em somos governados pelo Partido dos Trabalhadores que, no passado, sempre defendeu idéias anti-imperialistas na política internacional, filosofia que também permeia nossa Constituição acerca do comportamento do Brasil nas relações internacionais (art. 4., da CF), através de princípios tais como o respeito à independência nacional; autodeterminação dos povos; não-intervenção; igualdade entre os Estados; e concessão de asilo político, entre outros, cabe alguma indagação a respeito do episódio político e jurídico da concessão do asilo ao ex-Presidente do Equador, Lucio Gutierrez.
Comecemos por uma breve análise da deposição do ex-Presidente Lucio Gutierrez, o que, infelizmente não é nenhuma novidade na política equatoriana. O ex-Presidente agora asilado no Brasil, foi apenas mais um dos políticos que chegaram ao poder após uma campanha eleitoral em que fez promessas mirabolantes. No início do governo até que a situação ia bem, mas depois as coisas começaram a desandar e setores da sociedade civil inquietaram-se com os rumos do governo, respondendo o então Presidente com medidas de cunho autoritário, tais como o fechamento da principal corte de justiça. Mesmo assim, não conseguiu dominar os acontecimentos políticos, ou ao menos manter a marcha da política dentro dos limites necessários e o que se viu foi que, foram os protestos populares generalizados e um congresso que, desprestigiado pelo Presidente, resolveu por fim ao seu mandato. O fato curioso é que LC, um coronel do exército, que tentou chegar ao poder, anteriormente, através de conspirações, sequer teve o apoio das forças militares. Como tudo nos países do terceiro mundo sempre tem seu lado cômico e trágico, o ex-Presidente conseguiu asilo na embaixada brasileira em Quito e o povo lá fora, chamando-o de “cabron” e outras coisas desagradáveis e, inclusive, pela primeira vez na História das relações Equador/Brasil, o povo equatoriano reclamou da nossa ingerência em suas questões internas.
A ingerência brasileira no caso, lamentavelmente, se deu muito mais por conta da afinidade política e amizade pessoal entre Gutierrez e Lula, nosso Presidente. Um cáustico colunista político do País, SEBASTIÃO NERY, chegou, maldosamente, lembrando uma famosa propaganda de vodca, que Lula poderia ser Gutierrez amanhã. Não creio nisso, porém de toda sorte é bom por as barbas de molho, pois os ventos não andam soprando bem aqui na vizinhança. Na Bolívia, o Presidente Carlos Mesa ameaça renunciar, por conta dos protestos populares. No Peru, Alejando Toledo tem corrido sérios riscos de ser defenestrado do poder e, na Venezuela, Chaves está em marcha batida para se tornar ditador, sonho antigo seu, nem que para isso venha a sacrificar a economia do país e muitas vidas.
Deposto Gutierrez, o governo brasileiro, antes mesmo de entendimentos protocolares necessários e indispensáveis com a nova autoridade equatoriana, despachou um avião da força aérea brasileira para Quito, porém a aeronave não teve permissão para entrar no espaço aéreo equatoriano e ficou no Acre, criando um desconforto para o novo governo equatoriano e, principalmente, para sua população, que viu na atitude do governo brasileiro um ranço de imperialismo. Ou seja, uma atitude típica de países como os Estados Unidos. Talvez tenha sido por isso que o salvo-conduto tenha demorado tanto para ser expedido e entregue ao embaixador brasileiro em Quito. Para mostrar, de certa forma, que o Equador tinha SOBERANIA sobre seu território.
O jornalista JÂNIO DE FREITAS, da FOLHA DE SÃO PAULO, expressou seu inconformismo com a atitude precipitada do governo brasileiro em artigo intitulado de SONHO DE POTÊNCIA, chamando a nossa atenção para o fato do Chanceler brasileiro, CELSO AMORIM, haver afirmado que o afastamento de Gutierrez do poder não ocorrera de acordo com a Constituição Equatoriana, certamente expressando uma preocupação pessoal do Presidente Lula com seu amigo equatoriano, mas falando como Ministro das Relações Exteriores.
A concessão de asilo político é uma prática louvável nas relações internacionais e para nós tem um significado muito mais que jurídico, haja vista que inúmeros brasileiros ilustres tiveram que deixar o País quando do Golpe Militar de 64, razão que levou o constituinte a prever sua concessão. Paralelamente à previsão de asilo político, a Constituição brasileira estabelece que o Brasil e seu governo, deve respeitar a soberania dos outros países, principalmente de seus vizinhos e, aí fica provado que o governo brasileiro agiu precipitadamente e no meu entendimento não foi nem por buscar tornar-se uma potência internacional, o objetivo era mais simples, oferecer segurança a um amigo do Presidente, o que é torna tal precipitação mais deplorável ainda. Neste caso, o agente público descumpriu o princípio da impessoalidade.
O bom neste fato foi apenas a concessão do asilo e o fato do atual governo equatoriano haver concedido o salvo-conduto. E, se por estas artimanhas do destino, não tivesse tal salvo-conduto sido expedido? Difícil, não é?. A coisa poderia estar complicada.
Agora, a análise que interessa ao leitor estudante de Direito. A SOBERANIA. O que é SOBERANIA?
O termo Soberania, em sentido restrito, moderno, surgiu no final do século XVI, segundo N. MATTEUCI, da Universidade de Bolonha, indicando o poder estatal. O Estado moderno encontrava no conceito a justificativa absoluta para se impor à organização medieval, com a finalidade de fazer valer sua força sobre determinado território e população. “O termo Soberania, torna-se assim, o ponto de referência necessário para teorias políticas e jurídicas muitas vezes bastantes diferentes, de acordo com as diferentes situações históricas, bem como a base de estruturações estatais muitas vezes bastantes diversas, segundo a maior ou menor resistência da herança medieval; mas é constante o esforço para conciliar o poder supremo de fato com o poder de direito.”.
Do séc. XVI até os dias de hoje, o conceito de soberania sofreu transformações. De forma resumida, alguns, como SAHI MALUF, dizem que a soberania é uma autoridade superior que não pode ser limitada por nenhum outro poder. BODIN já tinha sido mais sucinto: o poder de fazer e anular as leis. Não custa lembrar que os primeiros doutrinadores, de BODIN a HOBBES, quando falavam em soberania, referiam-se ao poder absolutista do Rei. O conceito de soberania, desde o século passado e, principalmente agora, com a onda da globalização, encontra-se em crise, seja do ponto de vista teórico ou prático. A política mundial tem sido tão dinâmica que, muitas vezes, o conceito teórico ou prático que se tem de soberania não serve para explicar os fatos, já que o Estado atual não é mais o sujeito único e exclusivo da política internacional tanto são as organizações supranacionais.
Segundo DALLARI, “uma concepção puramente jurídica leva ao conceito de soberania como o poder de decidir em última instância sobre a atributividade das normas, vale dizer, sobre a eficácia do direito. Como fica evidente, embora continuando a ser uma expressão de poder, a soberania é poder jurídico utilizado para fins jurídicos. Partindo do pressuposto de que todos os atos dos Estados são passíveis de enquadramento jurídico, tem-se como soberano o poder que decide qual a regra jurídica aplicável em cada caso, podendo, inclusive, negar a juridicidade da norma. Segundo essa concepção não há Estados mais fortes ou mais fracos, uma vez que para todos a noção de direito é a mesma. A grande vantagem dessa conceituação jurídica é que mesmo os atos praticados pelos Estados mais fortes podem ser qualificados como antijurídicos, permitindo e favorecendo a reação de todos os demais Estados”.
Fica evidente que esse conceito puramente jurídico não serve para a atualidade, onde a internacionalização do comércio, das ciências, das culturas, dos esportes, enfim, da humanidade e de seus problemas cruciais, sejam de caráter religioso, científico, militar e de utilização dos recursos naturais, chegou a intercâmbio inimaginável quatro décadas atrás, fica certo que o conceito de soberania adquire uma feição jurídica mais cooperativa e em função da ordem internacional, perdendo o caráter absoluto que tinha antes, com prevalência de organismos internacionais.
CELSO RIBEIRO BASTOS, citado por RICARDO RIBAS C. BERLOFFA, diz a esse respeito que: “o princípio da soberania é fortemente corroído pelo avanço da ordem jurídica internacional. A todo instante reproduzem-se tratados, conferências, convenções, que procuram traçar as diretrizes para uma convivência pacífica e para uma colaboração permanente entre os Estados. Os múltiplos problemas do mundo moderno, alimentação, energia, poluição, guerra nuclear, repressão ao crime organizado, ultrapassam as barreiras do Estado, impondo-lhe, desde logo, uma interdependência de fato. À pergunta de que se o termo soberania ainda é útil para qualificar, o poder ilimitado do Estado, deve ser dada uma resposta condicionada. Estará caduco o conceito se por ele entendermos uma quantidade certa de poder que não possa sofrer contraste ou restrição. Será termo atual se com ele estivermos exemplificando uma qualidade ou atributo da ordem jurídica estatal. Neste sentido, ela – a ordem interna – ainda é soberana, porque, embora exercida com limitações, não foi igualdade por nenhuma outra ordem de direito interno, nem superada por nenhuma outra externa”.
Como se vê, esta na hora de reformular o conceito de soberania, o que leva muitos a considerar, a exemplo de RICARDO RIBAS C. BERLOFFA que se deve acrescentar a noção de limites éticos de convivência interna e externa, ao poder de ditar o modo de organização social, política e jurídica dentro de determinado território.
Com isto, finalizo dizendo, a respeito do episódio Gutierrez é que, no final, tudo deu certo, vez que o salvo-conduto foi concedido e se permitiu sua retirada de Quito e, conseqüentemente, o Brasil lhe pode dar asilo. Mas, diante do conceito de soberania atual e do respeito aos princípios constitucionais, o governo brasileiro deveria ter esperado para deslocar um avião para o Equador somente quando o governo daquele País tivesse dado tal autorização ou, em último caso, se fosse uma decisão do órgão regional competente, que seria a Organização dos Estados Americanos – OEA.
Referências bibliográficas
DICIONÁRIO DE POLÍTICA, da LGE Editora, UNB, N. BOBBIO, N. MATTEUCCI e G. PASQUINO
INTRODUÇÃO AO CURSO DE TEORIA GERAL DO ESTADO E CIÊNCIAS POLÍTICAS – RICARDO RIBAS C. BERLOFFA, Bookseller
* Augusto N. Sampaio Angelim
Juiz de Direito