Autor: Maurício Dieter (*)
De cenho franzido e decepcionado.
Assim terminei de ler a opinião do advogado Diogo Malan sobre a aparente emergência de uma nova classe de criminalistas no Brasil, publicada no ConJur em 7 de agosto de 2017.
Em resumo, o curto ensaio alerta para a suposta insuficiência da velha e combativa advocacia, forjada no frio da ditadura, para resistir às novas hipóteses de criminalização em curso. Os tribunos de outrora, sugere o texto, foram superados por (nem tão) jovens juristas, mais técnicos e menos teatrais.
Anacrônicos, os ícones que exerceram seu ofício em tempos de AI-5 — hoje senhores com mais de 60 anos — seriam relativamente incapazes de lidar com processos digitais, varas especializadas, “trials by media”, forças-tarefa, juízes inquisidores e todas as demais novidades, nacionais e importadas, que desfiguram Direito Penal e Processual Penal brasileiros, rumo ao obscurantismo. Nada que preocuparia, em contraste, os flâneurs da nova onda punitiva, moralmente mais flexíveis e artificiosamente melhor lapidados do que seus rígidos predecessores, sobretudo na arte do “Direito Penal Econômico”.
A ideia não é nova: o mundo da advocacia criminal mudou e está mais “complexo”. Passa a pertencer, portanto, aos que dizem “Corporate Crimes” e “Compliance” sem sotaque. Em especial, aos que não se constrangem em chamar “delação” de “estratégia de defesa”. Certo ou errado, o autoelogio não parece ser suficiente e, sem pedir passagem, o atrevimento dos que avançam corre o risco de se confundir com uma certa arrogância; talvez, sem intenção, reduz-se a advocacia dos anos de chumbo a uma peça de antiquário, em que pese a tímida apologia do que se denomina de comparação objetiva, isto é, sem juízo de valor declarado (mas implícito).
De minha parte, entendo que a análise proposta pelo artigo erra tanto na forma quanto no conteúdo, em mais de um ponto. Destaco quatro.
Primeiro, equivoca-se ao descrever alguns dos melhores advogados brasileiros como “subproduto das circunstâncias histórico-sociais” da ditadura. Imagino, sem muita dificuldade, Lobão dizendo o mesmo sobre a música de Chico Buarque e Caetano Veloso. Deixando de lado o truísmo da afirmação — pois o Direito é, por definição, sócio-histórico — a escolha da palavra “subproduto” (quando “produto” seria suficiente) certamente não merece encômio.
Segundo, falha ao contrastar a “formação sólida” exigida dos bacharéis de hoje com a instrução em matéria penal dos juristas de ontem, entendida como insuficiente à sombra de novos desafios. A hipótese, desde logo, não se sustenta. Múltiplas determinações, a começar pela irresponsável expansão dos cursos jurídicos nos anos 90, confluíram para a decadência intelectual, cultural e moral que atinge em cheio a advocacia do tempo presente, arranhando o prestígio de uma profissão que, ironicamente, aumenta em dignidade retrospectivamente. A tradicional associação entre advocacia e erudição fragiliza-se diuturnamente; em um mar de faculdades, uma multidão de alunos lê cada vez menos e mais superficialmente.
Isso sem falar na qualidade da literatura técnica, em geral, e da voltada aos “crimes em espécie”, em particular, incluídas as centenas de monografias, dissertações e teses em Direito Penal e Processual Penal defendidas em inúmeros programas de Pós-Graduação — por óbvio, sempre acompanhadas de honrosas e bem-vindas exceções. De modo que, se por um lado a excelência técnica pode até não ser virtude da maioria dos causídicos que exerceram o ofício entre 64 e 85, por outro as evidências apontam que esse atributo é ainda menos provável entre os formados a partir de 1988, que raramente lhes chegam aos pés — isso, se estudarem muito.
Terceiro, penso que a crítica também erra, e erra feio, ao supor que o sistema de justiça criminal de hoje é mais sofisticado do que no passado recente, distanciando-se do senso comum. A ilusão começa pela falsa virtude dos especialistas. Não são poucas as pesquisas que demonstram o contrário: a justiça dos leigos, reiteradamente, revela-se mais afim aos princípios constitucionais e às regras formais de imputação do que o exercício da jurisdição penal por parte dos togados.
Em outro sentido, casuísmo e arbitrariedade frequentemente orientam as condenações criminais, das Varas dos Juizados Especiais ao Supremo Tribunal Federal e em todas as competências. Interpretações idiossincráticas, falsificações conceituais e grosseiras manipulações retóricas amiúde atendem ao apelo de um utilitarismo torpe, claramente populista, que, em alguns casos emblemáticos, justifica a explícita contradição às normas previstas nas leis, nos códigos e na Constituição.
No momento em que presenciamos a perigosa submissão de inúmeros agentes da repressão à ideologia da “luta contra a impunidade” e a genuflexão de boa parte dos professores ao praticismo rasteiro, a ideia de que magistrados especializados respondem melhor a argumentos cujo refinamento beira a criptografia bate de frente com o cotidiano forense. Na prática, a conversa é outra: a jurisprudência de repetição, no atacado dos crimes comuns ou no varejo do colarinho-branco, muitas vezes sequer alcança o umbral da manualística vulgar. No fundo, a questão é bem menos misteriosa: bons juízes respondem melhor ao trabalho de bons advogados, éticos e técnicos, grisalhos ou não.
Quarto, e último, entendo ser flagrante a inconsistência do campo definido como “Direito Penal Econômico”, carente dos predicados essenciais para a mínima autonomia científica, mesmo à luz da mais epidérmica definição do termo, isto é, cingindo-se a palavra ciência ao seu valor nominal, como conjunto de conhecimentos sistematizados a partir de método e em relação a objeto essencialmente distintos.
Do ponto de vista formativo, aliás, excluídos alguns poucos programas de especialização e certas organizações reunidas em torno dessa expressão, a duvidosa área não encontra suporte teórico nem mesmo na distribuição cartesiana das disciplinas curriculares. Afinal, que matéria tão difícil é essa que mais parece filigrana diante do monumental conceito analítico de fato punível? Nada impede, claro, que temas espinhosos como “lavagem de dinheiro”, “criminalização de complexos funcionais” e “responsabilidade penal da pessoa jurídica”, entre outros, sejam tratados de modo exaustivo, academicamente rigoroso e intelectualmente honesto: rios de tinta já correram nesse sentido, a propósito.
Não vislumbro, entretanto, qualquer degrau qualitativo nesses assuntos, nem mesmo desde o mais robusto ponto de vista criminológico. Pior, a ideia de que exigem um novo tipo de profissional, com singular aptidão para essa práxis sui generis, soa completamente falsa: o arcaico modelo que combina estudo e trabalho parece dar plenamente conta do recado.
Em direção à conclusão, acredito que alguns dos problemas apontados na opinião ora contestada tem origem no estilo do texto, que pode ter traído as reflexões mais organizadas do inteligente articulista, doutor em Direito pela mesma Universidade São Paulo onde leciono. De fato, um dos riscos da opção pela forma ensaística é confiar na prévia comunhão de pressupostos com o leitor, o que nem sempre acontece. A aproximação descompromissada, que dispensa mediações cautelares, pode provocar efeitos colaterais desnecessários e imprevisíveis — facilmente contornáveis, contudo.
Informalmente, no âmbito mais modesto do que seria propriamente conversa de botequim, não é ilícito sugerir que Pelé ou Garrincha não teriam espaço no futebol moderno, fisicamente mais exigente, taticamente mais disciplinado e disputado em torneios muito mais competitivos.
Mas, mesmo nos limites dessa metáfora, vejo-me incapaz de pensar a seleção brasileira da advocacia criminal, independentemente do adversário, sem escalar Nelio Machado, Nilo Batista, Técio Lins e Silva e José Carlos Dias –—apenas para citar alguns dos mais famosos nomes que, de valer a lógica do artigo, não mereceriam sequer ocupar o banco de reservas. Quem, em sã consciência, substituiria um desses craques da defesa — em jogo que se está perdendo, vale notar — para colocar em campo um jogador que acabou de subir da base, mesmo que formado na “La Masia”? Ouço, daqui, os gritos que viriam da arquibancada e dirigidos a esse criativo técnico…
Brincadeiras à parte, penso que um dos maiores elogios que se pode fazer à essa magnífica “geração de coragem” é exatamente a resistência ao colaboracionismo tão em moda, à qual me somo sem reservas. E, se estou equivocado, não foi por falta de dedicação: do alto dos meus 35 anos, devo ter nascido na geração errada. Minha posição, em todo caso, felizmente está aberta à mais democrática divergência, algo que só é possível no Brasil contemporâneo graças à destemida luta desses gigantes que, humildemente, ofereceram-nos seus ombros como apoio para que um dia pudéssemos ver mais longe — mas sem jamais esquecer dos que estão embaixo.
* Dedico este breve texto à memória dos homens e mulheres que ousaram ocupar a Tribuna para enfrentar a violência da ditadura, em especial a Antônio Evaristo de Moraes Filho, Arnaldo Malheiros Filho, Evandro Lins e Silva, Heleno Cláudio Fragoso, Lino Machado Filho, Ronilda Noblat e, por todos, Sobral Pinto, de quem deveríamos ter aprendido a eterna lição: “a advocacia não é profissão de covardes”.
Maurício Dieter é advogado criminalista, professor de Criminologia e Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Autor: Maurício Dieter é advogado criminalista, professor de Criminologia e Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).