Por Alexandre Atheniense,
advogado (OAB-SP nº 47.470) especialista em Direito de Tecnologia da Informação
Na semana passada tivemos um momento significante na Justiça brasileira, que pode vir a se tornar um divisor de águas quanto a tentativa de padronizar um sistema de tramitação de autos digitais para o Poder Judiciário. A Vara do Trabalho em Navegantes (SC) foi a primeira no país a iniciar o uso do sistema PJe, que surge como a alternativa para uniformizar as práticas processuais por meio eletrônico na Justiça Brasileira a partir de 2012.
Porém poucos conhecem da trajetória do PJe. Essa história começa em 2007, quando o TRF-5 propôs à Infox – Tecnologia da Informação Ltda. a evolução do sistema Creta, também por estes desenvolvido, de forma que pudessem ser atendidas todas as varas daquele tribunal. O Creta só atende a necessidade dos Juizados Especiais Federais.
A partir desta primeira experiência, a Infox propôs que fosse elaborado um novo sistema em linguagem mais atualizada, usando uma arquitetura mais escalável e que permitisse maior flexibilidade na configuração e adequação às constantes mudanças na Lei, demandas de Tribunais Superiores ou mesmo de necessidade do próprio jurisdicionado.
Anos depois, o Conselho da Justiça Federal decidiu criar um sistema único para toda a Justiça Federal e com isso começou o projeto denominado e-JUD. Este projeto não foi adiante e, com isto, foi retomando o projeto PJe.
No entanto, a experiência do e-JUD foi importante pois pela primeira vez, todas as cinco regiões dos TRFs se reuniram, definindo requisitos para aquele que seria o sistema ideal e que atenderia a todos. Esta documentação foi preservada e usada como base para o desenvolvimento do PJe, tendo sido colocado como objetivo do projeto tentar atender ao máximo os requisitos funcionais e não funcionais.
Retomado o desenvolvimento do PJe, sensivelmente dois anos depois de ter sido interrompido, a Infox mostrou ao TRF-5 que tinha, como investimento próprio, continuado o desenvolvimento do sistema, tendo já evoluído para que este tivesse um motor de fluxos interno, controle de acesso, diversos componentes de alto nível e infraestrutura atualizada tecnologicamente.
Recomeçou então o desenvolvimento do PJe por parte da Infox para o TRF-5, quando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) visitou vários tribunais, entre eles o TRF-5, com o intuito de identificar um sistema capaz de ser sugerido para todos como o sistema nacional da justiça. O PJe, entre muitos outros, foi analisado e foi ele o escolhido pelo CNJ como a solução mais apropriada para uniformizar o processo eletrônico.
A partir daí, o desenvolvimento do PJe passou a contar com o apoio do CNJ. Outros tribunais mostraram interesse em conhecer o sistema e decidiram por aderir ao grupo daqueles que gostariam de utilizar. Inicialmente todos os Regionais Federais, depois a Justiça do Trabalho e mais recentemente os Tribunais Estaduais.
Para isto, foi especificada aquela que seria a plataforma ideal: o sistema deveria ser propriedade da União Federal, criando independência de empresas privadas quanto à propriedade material e intelectual; deveria ser utilizado padrões de mercado, de preferência abertos (open source); dentro do possível, utilizar-se, dentro dos seus módulos, de uma mesma tecnologia que deveria ser “livre” (no sentido que cada tribunal possa ajustar e customizar conforme necessário; permitir o desenvolvimento colaborativo para que todas os Tribunais aderentes à solução pudessem desenvolver módulos ou pedaços do sistema, contribuindo assim para o todo; adoção de uma arquitetura altamente escalável; e ao mesmo tempo fosse configurável o suficiente que permitisse adequar-se ás particularidades de cada região do país e ramo de justiça.
O objetivo principal do sistema PJe é informatizar processos e metodologias de trabalho e não somente o processo judicial em si, devendo ser possível estabelecer estes padrões mediante o uso de Tabelas Únicas (definidas pelo CNJ), fluxos padrão dentro de cada tribunal, e criando camada de interoperabilidade que permitisse interconectar as justiças, bem como estas como os atores processuais que a buscam, tais como advogados, procuradorias, Ministério Público, Defensorias, empresas e o próprio jurisdicionado.
O que leva a crer que o PJe possa vir a se tornar de fato um sistema que ajude a padronizar as práticas processuais está diretamente relacionado ao regime de licenciamento em Software Livre, conforme preceituado pela Lei nº 11.419 que no artigo 14, quando o legislador determinou que os tribunais deverão usar, preferencialmente, programas com código aberto, acessíveis ininterruptamente por meio da rede mundial de computadores, priorizando-se a sua padronização.
Este licenciamento e modelo de negócio estende os direitos atribuídos aos tribunais licenciados para copiar, modificar e distribuí-lo, criando uma atividade comunitária de desenvolvimento de conteúdos informáticos.
Por outro lado, as empresas que atuam no mercado licenciando para os tribunais sistemas adotando o regime de modelo proprietário, limitam a forma de utilização do programa, além de tornar esta opção muito mais onerosa.
A opção da administração pública pelo modelo de aquisição e transferência de direitos denominado “livre” significa o exercício não exclusivo, mas comunitário e recíproco de direitos autorais, o que facilitará a disseminação padronizada do uso de um sistema de processo eletrônico entre os tribunais brasileiros.
Dentre as possibilidades que levam a acreditar na possibilidade de êxito do PJe estão presentes os princípios que norteiam o software livre, ou seja:
1. O direito de uso sobre o programa de computador é comum, ou seja, as vantagens de uso do regime adotado, não se opõem a terceiros, mas são compartilhadas com terceiros;
2. O titular de direito de uso sobre o programa determina qual deverá ser o regime de uso sobre o software e suas derivações, em outras palavras, se a Infox determinou que a cessão do código fonte ao CNJ não seria onerosa, os tribunais que foram beneficiados, não poderão tornar modificar o regime de licenciamento;
3. A disposição de direitos patrimoniais sobre o software em regime livre não implica renúncia a direito subjetivo de autor, na medida em que o software continua sob o âmbito de atuação do autor;
4. Como os atributos “livre” e “proprietário” não se referem a características do produto “software”, mas a regimes jurídico de uso que atendem a finalidades distintas e não equivalentes, a licitação que se defina pela aquisição em regime livre não fere o princípio da isonomia e tem a ver antes com o princípio da eficiência: trata-se da definição do próprio objeto ou da finalidade perseguida pela licitação;
Na próxima segunda-feira (19), completará quatro anos da sanção da Lei do Processo Eletrônico. Ao longo deste período é inegável admitir os benefícios já alcançados, mas temos convivido com diversos problemas.
Refiro-me à falta de padronização, tanto de procedimentos, quanto de serviços disponibilizados pelos sistemas; pouca ou nenhuma interoperabilidade das aplicações; custos altos devido à mescla de tecnologias dentro do Judiciário, o que obriga aos tribunais a manter largas equipes de manutenção, demandando especialistas de diversas linguagens de programação, bancos de dados. Além de falta de padronização das normas de organização judiciária e de rotinas sistêmicas que guiam de forma diversa, práticas simples como transmissão de peças eletrônicas, o que acarretam grande dificuldade de aprendizado para aqueles que já possuem natural dificuldade em lidar com tecnologia.
Até o momento, os tribunais que já tem o PJe implantado são: TRF-3 (JF-SP), TRF5 (2º grau e JF-SE, JF-AL, JF-PE, JF-PB, JF-RN, JF-CE), TJ-PE, TJ-PB, TJ-MT e TRT-12.
Os tribunais que estão em via de implantação do PJe já confirmados são: Todos os demais TRTs e TST, TRF-3 (JF-MS), TJ-MG, TJ-SE e TJ-DFT.
Os tribunais que estão em processo de análise do sistema são: 20 Tribunais de Justiça Estadual, cinco Tribunais Regionais Federais e dois Tribunais Militares.
Como se vê, mais da metade dos tribunais brasileiros já estão fazendo uso do PJe. Até então, eu sempre tive uma postura cética quanto a adoção de um sistema único de processo eletrônico na Justiça Brasileira. No meu entender, o máximo que poderia ser alcançado, seria a interoperabilidade de dados, ou seja, a troca de informações digitais entre os tribunais, evitando-se o retrabalho.
Entretanto, agora, ouso pensar diferente, tendo adquirido confiança que o PJe venha a ser o sistema construído com o objetivo de ser um instrumento que permita atingir o fim máximo da Justiça perante a sociedade: a solução célere.
Como já dizia Ruy Barbosa, na obra clássica Oração aos moços: “Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito das partes, e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade.”