STF demonstrou preocupação com contribuinte ao decidir sobre sigilo bancário

Autora: Tânia Nigri (*)

 

A Constituição brasileira de 1988, promulgada após o processo de redemocratização do país e da ruptura com o Estado autoritário, acolheu um extenso rol de direitos e garantias individuais, erigindo-os à condição de cláusulas constitucionais pétreas, conforme disposição do artigo 60, parágrafo 4º, IV, incluindo-se a inviolabilidade da intimidade e da vida privada (artigo 5º, inciso X), dentre esses direitos fundamentais.

Em seu artigo 145, parágrafo 1ª, a Carta Cidadã determina que, sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte, o que acabou por gerar grande mudança na relação jurídica do Fisco com os contribuintes, sobretudo após a edição da Lei Complementar nº 105/2001, trazida ao mundo jurídico com o fim de atender ao comando constitucional, cujo texto franqueou o acesso direto do Órgão Fiscalizador aos dados bancários dos fiscalizados, desde que observados os procedimentos descritos na norma.

A mencionada Lei Complementar facultou ao fisco o exame de documentos, registros e livros das instituições financeiras, desde que seja instaurado processo administrativo ou procedimento fiscal e declarada a indispensabilidade do exame da documentação pela autoridade administrativa competente. A edição dessa legislação ensejou a propositura imediata de inúmeras ações judiciais questionando a constitucionalidade da referida norma, sob a alegação de que ela violaria, de forma incontornável, os direitos fundamentais da intimidade e vida privada.

O STF, desde então, foi instado a discutir a difícil questão do acesso da administração tributária aos dados dos contribuintes, sem ordem judicial prévia, mas apenas em 2016[1], quinze anos após, houve um posicionamento claro daquela Corte, sendo julgado, além de recurso extraordinário com repercussão geral nº 601.314, quatro ações diretas de inconstitucionalidade[2]. A demora do julgamento gerou, em comprometimento à estabilidade jurídica, entendimentos dissonantes entre os Tribunais Regionais Federais e, até mesmo, entre Turmas de um mesmo Tribunal, a exemplo do Tribunal Regional da 3ª Região, onde as 3ª e 4ª Turmas proferiram decisões em sentidos contrários – uma autorizando a administração tributária a quebrar[3] o sigilo do contribuinte sem ordem judicial e a outra declarando ser a medida inconstitucional, ressaltando-se que ambas as decisões se basearam em jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

O próprio Plenário do STF, em 2010, prolatou decisões antagônicas sobre a mesma questão e entre as mesmas partes (na AC 33-5/PR foi permitido e no RE 389.808 foi proibido o acesso direto do Fisco aos dados bancários dos contribuintes), no interregno de apenas um mês, o que gerou no contribuinte, no Fisco e no próprio Judiciário, uma incontornável sensação de insegurança jurídica.

Em fevereiro de 2016 foram analisadas as Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 2.390, 2.386, 2.397 e 2.859, bem como o RE 601.314(submetido à sistemática da repercussão geral) e a questão foi objeto de longos debates, ao longo de duas sessões, que culminou na prolação de acórdão não-unânime (9 X 2),  vencidos os ministros Celso de Mello e Marco Aurélio, sendo definida a tese de que o artigo 6º da Lei Complementar é compatível com a Constituição Federal, não havendo a quebra do sigilo bancário ao fisco, mas, tão somente, a sua transferência, o que afastaria a necessidade de autorização judicial prévia.

Em parte de seu voto, o Ministro Gilmar Mendes asseverou que os instrumentos previstos na lei impugnada conferem efetividade ao dever geral de pagar impostos, não sendo medidas isoladas no contexto da autuação fazendária, que tem poderes e prerrogativas específicas para fazer valer esse dever, lembrando, também, que a inspeção de bagagens em aeroportos, apesar de violar a intimidade dos viajantes, não é contestada, embora seja um procedimento bastante invasivo, o que demonstra cabalmente a relativização da privacidade como medida necessária e indispensável para que as autoridades alfandegárias possam fiscalizar e cobrar tributos.

O relator das Ações Diretas de Inconstitucionalidade, Ministro Dias Toffoli, asseverou que o legislador teria se preocupado em criar mecanismos que impedissem a circulação ou o extravasamento das informações relativas ao contribuinte. Em seu pronunciamento o Ministro Roberto Barroso realizou interpretação conforme ao art. 6º da LC 105/2001, para estabelecer que a obtenção de informações nele prevista dependesse de processo administrativo devidamente regulamentado por cada ente da Federação. Dever-se-ia assegurar, como se daria com a União, por força da Lei 9.784/1999 e do Decreto 3.724/2001, no mínimo as seguintes garantias: a) notificação do contribuinte quanto à instauração do processo e a todos os demais atos; b) sujeição do pedido de acesso a superior hierárquico do requerente; c) existência de sistemas eletrônicos de segurança que fossem certificados e com registro de acesso, d) estabelecimento de mecanismos efetivos de apuração e correção de desvios.

O ministro Marco Aurélio conferiu interpretação conforme aos dispositivos legais, para afastar o acesso direto aos dados bancários pelos órgãos públicos, vedado inclusive o compartilhamento de informações, considerando que isso somente seria possível, considerado o disposto na parte final do inciso XII do art. 5º da CF, para fins de investigação criminal ou instrução criminal.

Após o julgamento de tão importante questão jurídica, muitos questionam qual seria o alcance do novo posicionamento do STF em seus direitos frente ao fisco brasileiro. A decisão da corte constitucional não extirpou o sigilo bancário do rol dos direitos dos cidadãos, mas, indubitavelmente, o flexibilizou enormemente perante a administração tributária. A Lei Complementar 105/2001 e seu decreto regulamentador[4] elencam taxativamente as hipóteses de disclosure das informações, não se deferindo ao fisco “carta branca” ou liberdade plena para a escolha do contribuinte cuja vida bancária irá acessar, como pregavam alguns críticos da lei.

Registre-se que, para a instauração do processo tributário, é indispensável haver a fundamentação do ato pela autoridade fiscal, além de todas as informações dos contribuintes serem mantidas no mais absoluto sigilo fiscal. Ademais, o decreto prevê a possibilidade de o particular que se sentir prejudicado por um inadequado procedimento, denunciar administrativamente o agente fiscal, além de ser possível, sempre, o recurso ao Poder Judiciário.

Note-se, também, que se, por hipótese, esse normativo (Decreto 3.741/2001) vier a ser revogado, o cidadão continuará garantido contra exações arbitrárias, pois deverá ser editada nova regulamentação que respeite os contornos e os ditames do artigo 6º da Lei Complementar 105/2001, o que, caso não ocorra, acoimará de ilegalidade todos os procedimentos administrativos realizados em desrespeito aos direitos dos contribuintes.

Essa questão foi debatida pela Corte, quando analisados os poderes dos fiscos estaduais e municipais, para acessar dados bancários, independentemente de ordem judicial. Na ocasião, o plenário decidiu ser possível a transferência do sigilo bancário desde que regulamentado o artigo 6º da Lei Complementar 105/2001, em seus respectivos territórios, de forma análoga ao realizado pelo Decreto 3.724/2001, em seara federal. Assinalou-se que tais regulamentações deverão: conter garantias de pertinência temática entre a obtenção das informações bancárias e o tributo objeto de cobrança, o contribuinte deverá ser previamente notificado da instauração do processo e demais atos; o acesso aos dados sigilosos deverá ser autorizado por um superior hierárquico; os sistemas eletrônicos de segurança serão certificados e com registro de acesso; além de ser indispensável o estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios. As garantias asseguradas pela mais alta corte do país demonstram séria preocupação com os direitos fundamentais dos contribuintes contra eventual arbítrio do Estado, assegurando, também, de forma jamais vista no passado, que se concretize, de forma efetiva, os princípios da isonomia e capacidade contributiva, previstos na Constituição Federal.

Autora: Tânia Nigri é bacharel em Direito pela UERJ. Especialista em Direito e Economia pela PUC/RJ. Mestre em Direito Econômico pela UGF.

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