STF reafirma que princípio da autonomia desportiva não pode sofrer limitações

Autor: Maurício de Figueiredo Corrêa da Veiga (*)

 

A Constituição Federal assegura o direito ao desporto de forma independente de outros direitos fundamentais como o lazer, a educação e a saúde. O desporto tem como um de seus objetivos o próprio desenvolvimento da pessoa. Logo, o exercício desse direito não pode sofrer limitações.

A Lei 13.155/2015, trouxe inúmeras novidades para o ordenamento jurídico brasileiro, dentre eles princípios e práticas de responsabilidade fiscal e financeira e de gestão transparente e democrática para entidades desportivas profissionais de futebol além de alterar dispositivos da Lei Pelé e do Estatuto do Torcedor.

As dívidas dos clubes de futebol e também das federações, não são novidade, tendo em vista que se arrastam por gerações e na grande maioria das vezes aumentam à cada nova gestão (ressalvadas honrosas exceções). De forma constante são veiculadas pela mídia os débitos trabalhistas, tributários, previdenciários e parcelas de direito de imagem em atraso. Em muitos casos expectativas de receitas de clubes são oferecidas como garantia aos credores.

Recente notícia[1] veiculada na internet aponta que os principais clubes brasileiros somam R$ 6,3 bilhões em dívidas, sendo que apenas as dívidas trabalhistas representam 38% desse montante totalizando R$ 2,4 bilhões.

Essa situação desesperadora fez com que o legislador adotasse medidas enérgicas no intuito de sanar, de uma vez todas, as dívidas das entidades desportivas. Todavia, a Lei 13.155/2015, interferiu na autonomia dessas entidades, nada obstante a firma previsão contida no artigo 217 da Constituição Federal.

Para melhor compreensão do tema, o artigo 10 do Estatuto do Torcedor, foi alterado para determinar que os clubes apresentem certidões fiscais, comprovante de pagamento de salários, direito de imagem e de recolhimento de FGTS de seus atletas, como condição de participação nos campeonatos de futebol profissional. Ou seja, além do critério técnico referente a colocação obtida na competição anterior, de forma cumulativa, as entidades de prática desportiva deverão comprovar que estão em dia com os seus compromissos financeiros.

Não há dúvidas de que a questão financeira dos clubes é um assunto sério e que deve ser tratado como prioridade pelos dirigentes esportivos. Todavia, andou mal a Lei 13.155/2015 ao promover a alteração do artigo 10 do Estatuto do Torcedor na forma proposta pelo legislador.

A alteração interfere na autonomia das entidades desportivas e contraria o disposto no artigo 217 da Constituição Federal, tanto é verdade que antes de completar 4 meses de vigência, a Lei 13.155/2015 foi alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta no Supremo Tribunal Federal.

Na ADI 5.450, o Partido Humanista da Solidariedade (PHS) e o Sindicato Nacional das Associações de Futebol, argumentava, na época, que as dívidas dos clubes de futebol brasileiros alcançam mais de R$ 5,3 bilhões (depois de quase dois anos o valor aumentou conforme destacado acima) e reconheciam o interesse do Governo Federal em viabilizar o pagamento desses débitos e promover mudanças na gestão futebolística. Contudo, conforme exposto pelos autores da ação, a Lei de Responsabilidade Fiscal do Esporte invade a independência dos clubes ao instituir a Autoridade Pública de Governança do Futebol e vincular a regularidade fiscal à habilitação dos clubes em torneios desportivos e autorizar intervenção administrativa em entidades privadas que, por disposição contida na Constituição Federal, gozam de autonomia em relação à sua organização e ao seu funcionamento.

Com efeito, a realidade demonstra que a previsão legislativa tentou “ser mais realista do que o rei”, tendo em vista que criou um critério condicionante à participação em campeonatos que não tem como ser cumprido de forma imediata.

Ninguém duvida que a regularidade financeira deva ser a prioridade absoluta de qualquer dirigente financeiro, mas não há como obrigar o seu cumprimento na forma como foi feita.

É por essas e por outras que aqui no Brasil vigora a seguinte máxima: “leis que pegam e leis que não pegam”. Seria uma situação absurda. Afinal, como poderia haver uma lei “que não pega”? Todavia, diante da característica do seu conteúdo existem leis cujo cumprimento imediato é impossível, seja por se tratar de norma inconstitucional, seja por se tratar de norma divorciada da realidade.

Além disso, se o clube vier a sofrer uma autuação fiscal ilegal, indevida, terá que exaurir a instância administrativa, onde há decisões favoráveis ao Fisco na grande maioria das vezes, terá que esperar anos à fio pela Execução Fiscal, ocasião na qual poderá opor embargos à execução, com a possibilidade de ofertar bens como garantia, depositar a quantia devida, apresentar fiança ou caução para obter a Certidão Positiva com efeitos de negativa, e assim poder se livrar do rebaixamento. Entretanto, tal situação irá onerar ainda mais os clubes.

Com efeito, foi instaurado um verdadeiro “caos desportivo”, fazendo com que os tribunais de Justiça Desportiva tivessem que “abrandar” o rigor da Lei 13.155/2015, conforme se infere dos exemplos abaixo citados.

O Campeonato Carioca de 2016 teve a sua definição de times participantes somente na véspera da sua realização, quando o Tribunal de Justiça Desportiva da FERJ concedeu liminar para o Botafogo e outros quatro clubes poderem participar da disputa. Em relação ao Botafogo se entendeu que as exigências legais foram atendidas, já o Bangu, Cabofriense, América e Bonsucesso, jogaram sem Certidões Negativas de Débito.

No Campeonato Cearense de Futebol, sobraram confusões antes mesmo de a bola rolar. No final do mês de janeiro desse ano, o Tribunal de Justiça Desportiva (TJD-CE) estabeleceu que o Guarany de Sobral estava apto para voltar à elite do Estadual, uma semana após rebaixá-lo sob suspeita de falsificar documentos de certidões negativas de débitos.

O Tribunal de Justiça Desportiva de Alagoas (TJD-AL) concedeu liminar em Mandado de Garantia, que devolveu ao Murici a condição de participante do Campeonato Alagoano de 2016.

Em Goiás, dois clubes também precisaram impetrar Mandados de Garantia para assegurarem a participação deles no Estadual. Em decisão proferida no dia 22/1/2016, o presidente do Tribunal de Justiça Desportiva do Estado de Goiás (TJD/GO), garantiu aos clubes Atlético Clube Goianense e Vila Nova Futebol Clube, o direito de disputarem o Campeonato Goiano de 2016.

Insta ressaltar que os próprios tribunais de Justiça Desportiva estavam “relativizando” a exigência legal. Aparentemente seria outro absurdo. Contudo, a realidade demonstra que absurdo se cura com absurdo.

E foi justamente para evitar a continuidade dessas situações teratológicas, que no dia 18/9/2017, o ministro Alexandre de Morais concedeu liminar na ADI 5.450 para suspender os dispositivos do Estatuto do Torcedor que condicionavam a participação de equipes em campeonatos à comprovação de regularidade fiscal e trabalhista.

Consta da decisão que a o deferimento da liminar ocorreu pelo fato da norma aparentar ferir a autonomia das entidades desportivas quanto à sua organização e funcionamento, prevista no artigo 217 da Constituição Federal, além de constituir forma indireta de coerção estatal ao pagamento de tributos, algo vedado pela própria jurisprudência do STF.

Com efeito, de acordo com o ministro relator, não há razoabilidade em se impor critérios de âmbito exclusivamente fiscal ou trabalhista com a finalidade de garantir a habilitação em campeonatos esportivos, independentemente da adesão dos clubes ao Profut, como restou determinado no Estatuto do Torcedor, alterado pela lei. De igual sorte, foi considerada desarrazoada a previsão legislativa de rebaixamento de divisão às agremiações que não cumprirem tais requisitos, os quais não apresentam nenhuma relação com o desempenho desportivo da entidade.

Desta forma, correta a decisão liminar que fez valer a autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal e, principalmente, a contundente previsão contida no artigo 217 da Constituição Federal.

 

 

 

Autor: Maurício de Figueiredo Corrêa da Veiga é membro da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD). Presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB-DF e sócio fundador do Corrêa da Veiga advogados.


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