STF se transforma no maior segmento do poder que a nação tem

Autor: Paulo Sérgio Leite Fernandes (*)

 
Advogado criminal não deve intrometer-se em causas entregues a colegas. Há várias justificativas para tal restrição, umas de natureza ética, outras até pragmáticas, porque a curiosidade, sem plenitude de informações respeitantes ao tema, pode resultar em prejuízo às opções de defesa. Daí, embora entusiasmado muitas vezes com premissas concretizadas nas múltiplas disputas da chamada operação “lava jato” e suas derivações (Veja-se a “Catilinárias”), o especialista resta mudo, não indo além dos tamancos.

Se o assunto fosse ligado à medicina, seria mais ou menos como um cirurgião observando traços deixados por médicos diversos no ventre de pacientes sofridos. Um corte aqui, uma sutura ali, um terceiro morrendo sob efeito de falta de oxigênio, enterros, gritos, condolências, o necrotério enfim, salvando-se uns poucos. A regra, na grande maioria, no “mensalão”, é a distribuição de anos e anos de reclusão. Trinta e sete eram os acusados. Doze restaram exculpados. Menos mal mas, no frigir dos ovos, a Suprema Corte brasileira se transformou no maior poder da República, embora se diga que a tripartição é igualitária.

Ainda hoje, com certeza, e quem sabe mais ainda, está nas mãos do Supremo a sorte — ou o azar — da presidente da República, avalizada por cinquenta e poucos milhões de votos. Isto significa que, havendo impeachment, a primeira mandatária do país carregará consigo as esperanças de muitos e muitos eleitores. Já começa, no país, uma série de movimentações populares em várias cidades, cuidando-se de apoios a Dilma. Dir-se-á que o processo é mais político que jurídico. É e não é, pois um e outro (o juiz e o parlamentar) dançam permanentemente um bolero malemolente, um brinco no auricular e um esparadrapo no calcanhar (até rima), relembrando-se o Falso Brilhante, na voz de Elis Regina. Em associação de ideias, vem à mente crônica quase masoquista de Luís Fernando Veríssimo. Afirma que bolero sem marido traído é insosso. Prossegue descrevendo o “Glup” do parceiro, resultado de engolir o brinco tirado da orelha da dançarina.

O assunto parece zombaria, mas não deixa de ter algo bem triste: de um lado, a Polícia Federal invadindo a casa do presidente da Câmara dos Deputados, entrando-lhe no quarto de dormir, abrindo as gavetas e as intimidades da família, carregando os celulares (ah, os celulares), sem desprezar, sequer, a casinha do cachorro, se cão houver. De outra parte, a horrível “delação premiada”, já aí um tango de Gardel (rechiflado en mi tristeza). O preso, aterrorizado, entrega tudo, a verdade e a mentira, a ficção e a realidade, os sonhos e a vigília, com dinheiro ensacado, se dinheiro existir, tudo em prol do ultrapassamento da crise financeira assolando o país. Vale o refrão: “de grão em grão, a galinha enche o papo”.

Mais além, o presidente da empresa Odebrecht (tem ascendência alemã), duro, írrito, empertigado, reage a uma prisão já esfarrapada nas raízes jurídicas a sustentá-la. O prêmio pela deduragem seria, quem sabe, um carretel eletrônico no tornozelo, encoberto pela bainha das calças. Outros, menos convictos, são postos a domicílio, entregando até a própria mãe. Em síntese, a nação está recuperando seus princípios morais a poder do enfraquecimento ético estruturador da colaboração premiada. No fim das contas, obtém-se o bem sem muita preocupação quanto à impecabilidade da provocação.

Ao lado, o Supremo Tribunal Federal se transforma (já o era) no maior segmento de poder que a nação tem, pois repousa, no voto de seus ministros, o destino de muitas criaturas diferenciadas, a maioria eleita pelo voto popular, sendo os juízes responsáveis pela autorização ao revolvimento dos dosséis e arrombamento das mesinhas de cabeceira dos investigados. Uma sequência rara, é bem verdade, embora o presidente da Câmara, sujeito a tais humilhações, haja manifestado, de certa maneira, conformação com o aviltamento. No fim das contas, o Poder Judiciário legalizava a busca. Obedeça-se.

A denominada operação “Catilinárias” remeteu milhares e milhares de brasileiros à “internet”, procurando o sentido do codinome. Para o cronista, ex-aluno de colégio marista e penalizado na infância em razão das travessuras, precisando decorar em latim, de frente para uma árvore, as disputas de Cícero e Catilina, o assunto é trivial: “Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?”. Até quando, Catilina, você abusará da nossa paciência? Tal excerto deve ter sido escolhido por policial Federal versado na língua dos Césares. Há, no respeitado setor, muitos pós-graduados. Sabem das coisas.

Vai longe o assunto. Salta-se do ritmo latino para os cárceres perebentos. Caminha-se do comprometimento ético para sussurros do bandido nos ouvidos do investigador. Vêm lembranças da infância e rescaldos do respeito à Jurisdição. No fim, o fenômeno é muito desagradável.

O escriba amadurecera quando a ditadura explodiu no Brasil, em 1º de abril de 1964. Acompanhou a atividade feérica de Castelo Branco (morto em acidente aviatório, faltou óleo no motor), Costa e Silva (há histórias relativas, inclusive, aos colares que a viúva usava), Médici, Geisel (tedesco, frio e direto nas determinações), mais João Figueiredo. Tocante ao último, agrediu um jornalista publicamente, durante solenidade qualquer. Acreditava no “Dr. Fritz”, curandeiro. Atribui-se a ele, inclusive, um pedaço da chamada abertura democrática (Diretas-Já, em 1983-1984). Em 88 veio a gloriosa Constituição, hoje mais emendada que colcha de retalhos de Dona Nhã-nhã, mas veio. O povo brasileiro respirou, aliviado. Daí, começaram a mordiscar a carne da nação: Tancredo Neves, Sarney, a deposição de Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique, Lula (duas vezes) e Dilma, posta esta última no resfolego de uma outra Joana D’Arc. Um caminhar muito sofisticado, relembrando-se que Fernando vem do passado aconselhando toda a comunidade. Ouça-se-o. Ou não.

A título de arredondamento, diga-se que a ditadura perseguiu muitos e sumiu com outros tantos. Tocante à manutenção dos Órgãos Legislativos em vigência durante o regime autoritário, Evandro Lins e Silva e Victor Nunes Leal foram cassados em 1969. Mário Covas teve idêntico destino no mesmo ano, acompanhado por Auro de Moura Andrade. Rubens Paiva foi assassinado em Janeiro de 1971 (o presidente era Médici, mantendo Alfredo Buzaid no Ministério da Justiça). A ditadura cassou cerca de cento e setenta e três deputados. Mandou às favas oito Senadores e verrumou três ministros do Supremo Tribunal Federal (Hermes Lima, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva). Burlescamente, um dos deputados depostos, Francisco Pinto, fora condenado pelo Supremo a seis meses de prisão por ofensa a Pinochet. Que lástima. Mereceria uma comenda. Tocante ao trio de ministros da Suprema Corte, é bom dizer que o cronista e Evandro se davam muito bem. Hoje resta saudade.

Já se vê que a redemocratização do Brasil, ainda não completa, leva vantagem sobre o passado. Os parlamentares investigados se agarram às poltronas (um ou outro está sendo seduzido pela delação). Quanto ao Senado, há línguas vorazes lambendo a toga de algum ocupante. Isso, no fim das contas, é democracia. Obviamente, não se respeita a cama. Parece maldição, mas toda busca domiciliar termina no revirar de colchões, futucando-se os lençóis dos moradores. Afirma-se que isso faz parte do jogo.

Termine-se parafraseando as Catilinárias, em recordação dos folguedos infantis: Cícero infelicitou Catilina, mas parece que mais tarde, lá na frente, no meio de uma estrada sombria, teve a língua cortada e foi assassinado. Se non è vero è bene trovato. Consultem-se os clássicos, embora o brasileiro leia pouco. E la nave va.

 

 

 

 

Autor: Paulo Sérgio Leite Fernandes é advogado criminalista em São Paulo.

 


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