Autor: José Carlos Zanforlin (*)
O Supremo Tribunal Federal, entre agosto e setembro deste ano, concedeu liminar em três mandados de segurança impetrados contra decisão do Tribunal de Contas da União que decretou cautelarmente indisponibilidade de bens de duas empresas e de seus administradores[1]. A liminar desconstituiu a indisponibilidade de bens decretada pelo TCU e restaurou a livre movimentação de bens dos impetrantes.
A decisão do TCU se deu na tomada de contas especial 168/2016-5, que examinou contrato de duas construtoras para construção de uma refinaria[2], e que redundou no acórdão 2.109/16, de 17 de agosto.
O fundamento do STF para suspensão de eficácia dessa decisão liminar consistiu, resumidamente, em que, embora o TCU tenha poder de cautela, essa não é dotada de autoexecutoriedade; e que o art. 44, § 2º, da Lei nº 8.443/92, apontado pelo TCU como fundamento de sua decisão, tem como destinatário o servidor público e não o particular. Eis trecho da decisão do STF, proferida no MS 34.457/16 (que também se repete no MS 34.410/16):
“2. Percebam não se está a afirmar a ausência do poder geral de cautela do Tribunal de Contas, e, sim, que essa atribuição possui limites dentro dos quais não se encontra o de bloquear, por ato próprio, dotado de autoexecutoriedade, os bens de particulares contratantes com a Administração Pública. […]. Destaco a impropriedade de justificação da medida com base no artigo 44 da Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União. O dispositivo está voltado à disciplina da atuação do responsável pelo contrato, servidor público, não abarcando o particular. O exame da Lei nº 8.443/1992 respalda o entendimento. O preceito encontra-se na Seção IV, a qual regula a fiscalização de atos e contratos dos quais resulte receita ou despesa, realizados pelos “responsáveis sujeitos à sua jurisdição”. A lei direciona a servidor público, não a particular.” Sem grifos.
Ainda que reconheça ao TCU poder de cautela, o Supremo afirmou que as decisões que profira não são dotadas de autoexecutoriedade, isto é, não dispensam atuação de outro Poder (o Judiciário) para implementá-las. Ocorre que o STF se baseou em argumento infraconstitucional, a Lei 8.443/92. Ora, ver-se-á que a negativa de autoexecutoriedade deve ser examinada a partir da Constituição, e não de lei subalterna.
Por isso, indaga-se (i) será também verdadeiro o juízo de que aquela norma é dirigida a servidor público e não a particular? E se for dirigida a servidor, (ii) é possível inferir que decisão do TCU, de decretação de indisponibilidade de bens de servidor público, possui autoexecutoriedade? Tal inferência seria obtida por raciocínio a contrário senso da afirmativa de destinar-se o preceito a servidor público e não a particular.
Justificam-se essas indagações porque o conjunto de proposições formulado pelo relator daqueles mandados de segurança afirma que a negativa de autoexecutoriedade de decisões do TCU, tal a de decretar indisponibilidade de bens, é vedada a bens de particulares contratantes com a Administração Pública. Essa afirmação deriva, segundo o relator, de que o art. 44, § 2º da Lei 8.443/92, por causa de sua localização na lei, (i) regula relação da Administração com servidor público, e (ii) não outorga autoexecutoriedade a decisões do TCU em face de particular.
Uma questão de competência
Sinteticamente, constituição é um código enunciador de direitos fundamentais e atributivo de competências. As competências outorgadas não podem suprimir ou afetar direitos fundamentais.
Talvez o mais importante direito reconhecido ao indivíduo pelo sistema jurídico seja o da liberdade, que consiste em não ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Inclui-se no conceito de lei tanto a que provém do parlamento quanto a norma jurídica do caso específico, a sentença judicial. Por essa razão decisões do TCU não são autoexecutáveis: o direito fundamental à liberdade condiciona a autoexecutoriedade de suas decisões à intermediação do Judiciário.
O STF afirmou não serem autoexecutáveis decisões do TCU em face do particular contratante com a administração pública, e se valeu de fundamento infraconstitucional para isso. Ora, o Tribunal de Contas da União é criação constitucional, portanto, seu rol de competências situa-se na Constituição (art. 71), e não em norma infraconstitucional. Logo, não é o art. 44, § 2º da Lei 8.443/92 que deveria fundar o argumento do STF naqueles mandados de segurança.
Em consequência, o STF suprimiu parcialmente o excesso de competência do TCU, pois deixou em aberto para aquele órgão a indisponibilização de bens de servidores públicos que atuem em contrato de particulares com a administração pública. O juízo de não autoexecutoriedade deve relacionar o direito fundamental de liberdade (Constituição, art. 5º, II) com rol de competência constante do art. 71 da Constituição, e não da Lei Orgânica desse órgão.
O art. 71 da Constituição não atribui nem poderia atribuir caráter autoexecutório a decisões do TCU, restritivas de direitos. É que – repita-se – a obrigação de fazer ou deixar de fazer alguma coisa somente pode ser imposta ao indivíduo por meio de lei, proveniente do Parlamento ou do Judiciário (norma individual). Uma decisão do TCU nem é lei em sentido estrito, nem sentença. E esse direito individual abrange, certamente, tanto o particular quanto o servidor público.
Ainda que o art. 71 da Constituição atribuísse autoexecutoriedade a decisões do TCU, essa atribuição contraditaria direito fundamental do indivíduo, posto no art. 5º, II. Os dois dispositivos não poderiam ter eficácia simultânea, logo, o primeiro (art. 5º, II), direito fundamental e cláusula imodificável, consoante art. 60, § 4º, IV [3], excluiria incidência do segundo (art. 71) nesse particular.
Por isso, a supressão do excesso de competência do TCU foi parcial, porque deixou em aberto o caráter autoexecutório em relação ao servidor público. É como se o TCU tivesse “jurisdição” em face de servidor público, mas não quanto a particular. Ora, a Constituição não estabelece duas classes de indivíduos, aos quais assegura direitos fundamentais diferentes. Logo, nem o Título IV da Lei 8.443/92, que trata da fiscalização de atos e contratos, nem o art. 44, § 2º nela inserido, podem fundamentar decretação de indisponibilidade de bens, seja de servidor ou de particular. E a razão disso é que essa matéria tem regulação constitucional e não infraconstitucional.
A afirmativa do STF de que o art. 44, § 2º da Lei 8.443/92 só é dirigida ao servidor público não parece em harmonia com o art. 1º, I, art. 5º, I e art. 41 dessa mesma lei. É que a amplitude da expressão “daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte dano ao Erário”, aí contida, pode muito bem compreender o particular. Porém, essa questão, além de não ser objeto deste artigo, não influi na tese de que a autoexecutoriedade autoafirmada pelo TCU não se deduz de sua Lei Orgânica, pois é matéria constitucional.
Esse confronto entre diferentes concepções de competência, a que o TCU tem de si, e a que o STF tem do TCU é pouco substancial; a do Tribunal de Contas advém de seu elastecido “ego/ethos”, o que se pode observar de sua Lei Orgânica, e a do Supremo, de argumentar com base nessa Lei e não na Constituição. A falta de substância da divergência entre STF e TCU decorre de que ambos aferem a competência do órgão auxiliar do Congresso a partir da Lei 8.443/92; portanto, é simples reporem-se as coisas em seus devidos lugares, desde que o exame se faça a partir da Constituição. A constitucionalidade desse art. 44, sobretudo de seu § 2º é duvidosa.
Brevíssimo e tópico exame da Lei Orgânica do TCU
Este exame visa a pôr de relevo algumas características da Lei 8.443/92, que possibilitam ao TCU exceder a competência que lhe atribuiu o constituinte; portanto, atuar de modo inconstitucional.
O Congresso Nacional exerce o Poder Legislativo (Constituição, art.44), e é responsável pela “fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta” mediante controle externo (art. 70). O artigo 71 reafirma que esse controle externo se faz pelo Congresso Nacional, e será exercido com o auxílio do TCU. Portanto, trata-se de órgão auxiliar do Congresso Nacional para a fiscalização referida no art. 70.
Explica-se a outorga de poder fiscalizatório pelo constituinte ao Congresso Nacional, porque no plano do dever-ser o parlamento representa o povo. Ora, os recursos do Estado provêm de arrecadação tributária. Por isso o povo, via Congresso Nacional, fiscaliza os recursos que constituem o Tesouro. O TCU é auxiliar do parlamento.
Então, ante tanta clareza da Constituição, por que o art.1º da Lei Orgânica do TCU omite tratar-se de órgão de auxiliar do Congresso Nacional na função fiscalizatória? Embora refira tratar-se de órgão de controle externo, não informa quem exerce a fiscalização. Ora, se órgão é, então o TCU não existe sem um “corpo” ao qual integre. Não há nenhuma razão que justifique a omissão de ser auxiliar do Congresso.
A pretensão de não se ter como auxiliar do Congresso Nacional, e de dotar-se de jurisdição, não a de sentido claramente conotativo, como consta do texto constitucional, mas a jurisdição funcional do Poder Judiciário, se extrai de alguns outros dispositivos dessa Lei, além do art.1º.
Realmente, na enumeração das competências do órgão, o art. 1º, parágrafo primeiro faz reprodução sinonímica do caput do art. 70, para estabelecer que “[…] o Tribunal decidirá sobre a legalidade, a legitimidade e a economicidade dos atos de gestão e das despesas deles decorrentes […]. ” Ora, atos de gestão são espécie de atos jurídicos, e um órgão auxiliar do Congresso Nacional na fiscalização contábil e financeira não pode ser competente, concorrentemente com o Judiciário, para exame de legalidade ou legitimidade de sua prática ou emissão! Todavia, o destaque assim feito em parágrafo, apartado da informação inequívoca de constituir-se o TCU em órgão auxiliar, possibilita leitura exacerbante de sua real competência
É certo que a própria Constituição claudica aqui e ali ao outorgar competência ao TCU para “julgar as contas dos administradores […]” (art. 1º, II); “aplicar aos responsáveis […] as sanções previstas em lei […] (art. 1º, VIII); “sustar […] a execução do ato impugnado […]. ” (art. 1º, X); e conceder ao TCU “[…] jurisdição em todo o território nacional […]” (art. 73). Não há dúvida que o constituinte utilizou conotativamente esses verbos e expressões (julgar, aplicar sanções, sustar execução e tem jurisdição), pois não poderia outorgar competência concorrente com a do Judiciário.
O art. 4º da Lei 8.443/92 elastece a atribuição de jurisdição ao TCU pelo art. 73 da Constituição, com o emprego da expressão “jurisdição própria e privativa”: “O Tribunal de Contas da União tem jurisdição própria e privativa, em todo o território nacional, sobre as pessoas e matérias sujeitas à sua competência”. Ora, sem dúvida o art. 5º, XXXV, da Constituição torna esse dispositivo vazio de conteúdo, pois a jurisdictio é privativa do Judiciário, jamais do TCU.
Veja-se, por fim, a criticável técnica legislativa, e absoluta falta de sentido, em uma lei ordinária ressalvar ou reafirmar o que quer que seja em relação à constituição, visto que o conteúdo de uma lei infraconstitucional tem de estar em conformidade com a constituição. É o que faz o art. 6º da Lei 8.443/92: “Art. 6° Estão sujeitas à tomada de contas e, ressalvado o disposto no inciso XXXV do art. 5° da Constituição Federal, só por decisão do Tribunal de Contas da União podem ser liberadas dessa responsabilidade as pessoas indicadas nos incisos I a VI do art. 5° desta Lei”. Claro está que a garantia constitucional de acesso ao judiciário não é concessão da Lei 8.443/92.
Estado intervencionista e corrupção
A intervenção do Estado nas mais simples ou complexas atividades produtivas do indivíduo, empreendedor ou empregado tem por objetivo a apropriação de parte de tudo (ou quase tudo) o que é produzido por esses, para que possa manter-se e a seus servidores. Daí é que surgem e se expandem ligações de alguns empresários com o poder atuante no momento, e com a burocracia sempiterna, para tornarem-se contratados pelo Estado para obras e atividades próprias da iniciativa privada (estradas, portos, escolas, hospitais, filmes, transportes, etc). Pois é do Estado que provêm os recursos para essas obras e serviços.
Nesse ambiente de tênue limite entre interesse privado e interesse do Estado surgem e se flagram transferências indevidas de recursos do Tesouro para empresários privados. Ou a “contrapartida” desses a políticos e burocratas pelos negócios havidos. Corrupção, assim, nada mais é que expressão do manus manun lavat[4].
Conclusões
O excesso cometido pelo Tribunal de Constas da União, ao tornar indisponíveis bens de duas empresas e de seus diretores, foi a tempo reparado pelo Supremo Tribunal Federal. Infelizmente, por fundamento inapropriado, pois o art. 44, º 2º, da Lei 8443/92 não é a fonte de competência do TCU, mas, sim, o art. 71 da Constituição.
Ademais, restringir o alcance daquele dispositivo de lei a servidores públicos, além de não ser consentâneo com a própria Lei Orgânica do TCU, permite a ilação de que quanto a esses o Tribunal de Contas tem competência para indisponibilizar bens, tese que não se prova. Esse dispositivo é de constitucionalidade duvidosa, porque invade competência do Judiciário. A Lei 8.443/92 deveria ser revista para que o TCU não seja “maior” que a Constituição.
Autor: José Carlos Zanforlin é advogado.