Autor: Ricardo Magaldi Messetti (*)
Conforme publicação intensamente pela imprensa, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) retomou em junho o julgamento, em plenário, da compra das operações do HSBC no Brasil pelo Banco Bradesco. O julgamento que será realizado pelo Cade traz à tona a antiga celeuma sobre de quem seria a competência para analisar os atos de concentração, aquisição, fusão, etc, de instituições financeiras. A competência é do Cade ou do Banco Central do Brasil (Bacen)?
Ora, enquanto a controvérsia não é resolvida e o Cade continua a exercer a análise dos atos envolvendo instituições financeiras, no entendimento que a competência atribuída ao órgão desde a edição da Lei n.º 4.137/62 lhe salvaguarda, o Supremo Tribunal Federal (STF) perde grande oportunidade de colocar “uma pá de cal” no assunto, uma vez que o Recurso Extraordinário n. 664.189/DF não é analisado.
Discute-se no Recurso Extraordinário (RE) em referência se os atos de concentração, aquisição ou fusão de instituição relacionados ao Sistema Financeiro Nacional são de atribuição do Banco Central do Brasil (Bacen), nos termos da Lei 4.594/64, ou se a competência seria do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).
O processo ora em análise pelo STF teve início em mandado de segurança, com pedido de liminar, impetrado por instituições financeiras contra ato atribuído ao Presidente do Cade, que, ao apreciar e aprovar o Ato de Concentração nº 08012.002381/2001-23, que versava sobre operação diversa submetida à referida autarquia, determinou aos impetrantes apresentassem a operação de aquisição do controle de um dos bancos pelo outro.
Na petição inicial, os então impetrantes alegaram, em síntese, ser o Cade incompetente para analisar operações de aquisição de instituições financeiras, tendo em vista a legislação específica que regulamenta a implementação dessas operações e as submete ao crivo prévio do Bacen, a saber, o art. 192 da Constituição Federal, as disposições da Lei 4.595/64 e o Parecer GM-20 da AGU, aprovado pelo Presidente da República. A liminar foi deferida e, no mérito, a segurança restou concedida em Primeira Instância “para desconstituir o ato do Presidente do Cade consistente em determinar a submissão da operação de compra a julgamento por esse órgão.”
Em sede de apelação interposta pelo Cade, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, por maioria, reformou a sentença, com o entendimento de que a atribuição de autorizar as instituições financeiras a ser transformadas, fundidas, incorporadas ou encampadas, outorgada ao Bacen pelo art. 10, X, ‘c’, da Lei 4.595/64, não exclui nem substitui a competência deferida ao CADE pela Lei 8.884/64 para apurar e decidir soberanamente sobre os atos de concentração.
Sobreveio, então, recurso especial, interposto com fundamento na alínea “a” do permissivo constitucional, no qual as instituições financeiras, pleitearam, em apertado escorço: a) o Cade não poderia ter determinado aos recorrentes, por meio de uma interpretação retroativa, que lhe fosse submetida para análise a operação de aquisição realizada muitos anos antes, já aprovada pelo Bacen, e que sem atentar para a gravidade da situação e com chocante afronta à legislação específica, na prática, transferiu para o Cade uma competência inequívoca do Bacen, jamais questionada pelo órgão antitruste, e com efeitos retroativos, alcançando inúmeros negócios já realizados; mediante uma elástica e inadmissível interpretação do art. 54 da Lei 8.884/94, o acórdão recorrido violou frontalmente o art. 10, X, “c” e “g”, e o art. 18, § 2º, da Lei 4.595/64, que estabelece a competência privativa do Bacen para autorizar a fusão, incorporação ou encampação de instituições financeiras, bem como para regular as condições de concorrência entre elas; o acórdão recorrido ignorou os termos do parecer normativo GM-20, da Advocacia Geral da União, aprovado pelo Presidente da República, que reconheceu a competência do Bacen para apreciar negócios de aquisição de controle de instituições financeiras, em inaceitável afronta ao art. 40, § 1º, da Lei Complementar 73/93, que impõe à administração federal (na qual se inclui o Cade) a observância aos pareceres normativos da AGU aprovados pelo Presidente da República.
Ao analisar o Recurso Especial (REsp) n. 1.094.218/DF, o Augusto Tribunal da Cidadania deu provimento ao apelo, em acórdão da lavra da Ministra Eliana Calmon, perfazendo o entendimento de que os atos de concentração, aquisição ou fusão de instituição relacionados ao Sistema Financeiro Nacional sempre foram de atribuição do Bacen, agência reguladora a quem compete normatizar e fiscalizar o sistema como um todo, nos termos da Lei 4.594/64, cabendo ao Cade fiscalizar as operações de concentração ou desconcentração, nos termos da Lei 8.884/94. Assim, havendo conflito de atribuições, soluciona-se pelo princípio da especialidade, conforme se observa da ementa do acórdão.
ADMINISTRATIVO – ATO DE CONCENTRAÇÃO, AQUISIÇÃO OU FUSÃO DE INSTITUIÇÃO INTEGRANTE DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL – CONTROLE ESTATAL PELO BACEN OU PELO CADE – CONFLITO DE ATRIBUIÇÕES – LEIS 4.594/64 E 8.884/94 – PARECER NORMATIVO GM-20 DA AGU.
1.Os atos de concentração, aquisição ou fusão de instituição relacionados ao Sistema Financeiro Nacional sempre foram de atribuição do BACEN, agência reguladora a quem compete normatizar e fiscalizar o sistema como um todo, nos termos da Lei 4.594/64.
2. Ao CADE cabe fiscalizar as operações de concentração ou desconcentração, nos termos da Lei 8.884/94.
3. Em havendo conflito de atribuições, soluciona-se pelo princípio da especialidade.
4. O Parecer GM-20, da Advocacia-Geral da União, adota solução hermenêutica e tem caráter vinculante para a administração.
5. Vinculação ao parecer, que se sobrepõe à Lei 8.884/94 (art. 50).
6. O Sistema Financeiro Nacional não pode subordinar-se a dois organismos regulatórios.
7. Recurso especial provido.[1]
Observa-se na decisão proferida pelo STJ que, para aquele Tribunal,“enquanto as normas da Lei 4.595/64 estiverem em vigor, a competência para apreciar atos de concentração envolvendo instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional é do Banco Central”. Sotrancou-se, por conseguinte, o entendimento de que “a Lei 4.595/64 destina-se a regular a concorrência no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, enquanto a Lei 8.884/94 trata da questão em relação aos demais mercados relevantes”.
Insata salientar que, irresignado com a decisão do STJ, o Cade apresentou Recurso Extraordinário (RE) n. 664.189/DF ao Supremo Tribunal Federal (STF) sustentando que o acórdão do STJ incorreu em violação dos artigos 131, 173, § 4º, e 192, da Constituição Federal. O Ministério Público Federal apresentou parecer pelo não conhecimento do recurso extraordinário, sendo admitidos como interessados no feito a União e o Banco Central do Brasil.
Distribuído o RE ao Ministro Dias Toffoli, este entendeu por bem de, monocraticamente, em aplicar na espécie as Súmulas nºs 279 e 280 do Pretório Excelso, até porque, em casos similares, esta Corte decidiu serem infraconstitucionais as questões relativas às competências do Bacen. O Cade apresentou Agravo Regimental com o desiderato de ver seu recurso extraordinário conhecido, sendo que o então relator deu-se por impedido nos termos do art. 144 do novo Código de Processo Civil.
Redistribuído os autos ao Ministro Gilmar Mendes em 13.05.2016, este liberou o processo para a inclusão em pauta em 20.05.2016, ou seja, apenas 07 (sete) dias após recebe-lo em seu gabinete. Todavia, em 01.06.2016, por ser o Ministro o Advogado Geral da União signatário do Parecer GM-20, que alicerça o Mandado de Segurança, declarou-se impedido para este ato.
Destarte, que não participarão do julgamento em questão, além do Ministro Gilmar Mendes, o Ministro Dias Toffoli, por ter se dado por impedido anteriormente, e o Ministro Luiz Fux, que já se dera por impedido quando ainda pertencia ao STJ, no julgamento do Recurso Especial.
Ora, a questão colocada em discussão já foi muito bem sintetizada pelo mestre Arnoldo Wald:
“Conclui-se, assim, que em virtude da disposição do art. 192 da Constituição e do art. 18, 2º, da Lei 4.595, os problemas de concorrência entre instituições financeiras devem ser apreciados, exclusivamente, pelo Banco Central, conforme diretrizes do Conselho Monetário Nacional, não sendo nem podendo ser da competência: a) do CADE; b) da nova Agência de Defesa do Consumidor e da Concorrência (a ser criada).”[2]
Os professores Rachel Sztajn e Marcos Paulo de Almeida Salles compartilham com o entendimento do STJ:
“Não revogado o art.100 da Lei4.5955/64, compete privativamente ao BACEN autorizar a fusão, incorporação e encampação de instituições financeiras (art. 10, inc. X, c , da Lei 4.595/64). Autorizada a operação de concentração pelo BACEN, poderia o CADE desaprová-la nos termos do art. 54, 8º, 9º e 10? A resposta é negativa, pois a Lei n. 8.884/94 não altera a competência do BACEN; mas, se a regulamentação da concorrência prevista na Lei n. 8.884/94 tem suporte fático em mercados sem barreiras à entrada, enquanto os arts. 10 e 18 da Lei n. 4.595/64 se aplicam exclusivamente ao mercado financeiro, os escopos regulatórios são diferentes e, portanto, prevalece a regra especial sobre a geral, impedindo qualquer superposição de competência, inclusive sujeitando o organismo genérico CADE às reparações indenizatórias de lesões que venham a causar em conflito de competência com o regulador especial, BACEN.”[3]
Não obstante isto, o a Advocacia Geral da União (AGU), em 28.03.2001, apresentou o Parecer nº GM – 020, no âmbito de Conflito Positivo de Competência entre o Bacen e o Cade, aprovado pelo então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso e publicado no Diário Oficial da União do dia 25.04.2001, com a seguinte conclusão:
“(…) à luz da legislação vigente, a competência para analisar e aprovar os atos de concentração das instituições integrantes do sistema financeiro nacional, bem como de regular as condições de concorrência entre instituições financeiras, aplicando-lhes as penalidades cabíveis, é privativa, ou seja, exclusiva do Banco Central do Brasil, com exclusão de qualquer outra autoridade, inclusive o CADE.”[4]
Como se pode constatar, mesmo já persistindo posicionamento tanto doutrinário como jurisprudencial sobre a matéria, o STF pode ainda demorar para analisar a questão, o que faz perpetuar uma insegurança jurídica que poderia há muito ter sido afastada com o julgamento do mérito do RE apresentado. Como ensina o filósofo americano William James: “aquele que se recusa a abraçar uma oportunidade única perde o prémio tão seguramente como se tivesse falhado,” assim, confiemos que o Supremo não venha a falhar.
Autor: Ricardo Magaldi Messetti é advogado em Brasília, ex-Conselheiro do Carf, especialista em Direito Tributário pelo Centro de Extensão Universitário e em Direito Econômico pela Fundação Getúlio Vargas, membro da Comissão de Assuntos Tributário da OAB/DF.