STJ adotou teoria imperativista ao legitimar desconto de pontualidade

Autor:  João Paulo Rodrigues de Castro (*)

 

Bem advertiu Karl Larenz[1], no clássico metodologia da ciência do direito, sobre o risco de adotar a teoria psicológica do direito, mesmo que sepultada pelo racionalismo ainda no século XIX[2]. Imbuída de forte senso comum, pois calcada no naturalismo, o psicologismo prega que a norma é expressão de um querer reconhecido pelo grupo de comandados.

Desse modo, caberia ao intérprete encontrar a vontade real do legislador em detrimento da racionalidade de lei que se exprimiu na proposição jurídica. À tentação voluntarista cedeu o STJ, ao decidir que o desconto de pontualidade[3] pelo pagamento de mensalidade escolar em dia não configura prática abusiva (art. 52, § 1º, do CDC).

Antes de analisar o julgado, comecemos pelo ponto pacífico: o falseamento da teoria psicológica do direito. Hart[4], seguindo Kelsen, oferece dois argumentos fortes para inadmitir a tese de que a lei deve ser interpretada como um comando.

O primeiro, relativo ao conteúdo: nem todas as leis implicam proibições para serem reduzidas a ordens, pois podem atribuir competência, constituir direito (como o de propriedade) ou feixe de direitos (como a personalidade).

O segundo, de origem: certas regras do direito são originadas pelo costume e não pressupõe ato consciente de criação do direito. Ainda: a autovinculação do legislador é incompatível com a natureza do comando, pois ninguém ordena algo a si mesmo, sem contar a adoção do processo simbólico de votação como regra, em que não faz qualquer sentido perquirir pela vontade real do legislador.

Na outra ponta, do comandado, a irrelevância da vontade no cumprimento do dever jurídico. Conforme bem assinalou Kelsen: posso aderir a um comando e não o cumprir, como o criminoso que aprova a norma que proíbe o homicídio, mas que, em acesso de raiva, mata, e cumprir o comando sem aderir a ordem, como seria o caso do contribuinte que paga determinado tributo com a certeza de que será desviado pelo governante[5].  Assim, seja sob a ótica do comandante ou do comandado, é indefensável a tese imperativista do direito no estado moderno.

Inacreditavelmente, porém, o STJ adotou a teoria imperativista após quase dois séculos de sua derrocada, ao decidir pela validade do desconto de pontualidade em contratos de consumo. Segundo o relator, ministro Marco Aurélio Belize, inexistiria antinomia entre a norma do Código de Defesa do Consumidor, que veda a multa de mora em valor superior a 2% da prestação, e a norma contratual que estipula prêmio pelo pagamento em dia. Enquanto a norma legal conteria comando proibitivo; a contratual traria ordem positiva, um prêmio: sem contradição, portanto, entre ambas.

A adoção velada da teoria imperativista decorre de deduzir do desconto de pontualidade apenas uma norma, decorrente da ficção consubstanciada no desejo dos contratantes. Não se discute que o pagamento em dia favorece simultaneamente o consumidor e o fornecedor. Mas a análise objetiva da cláusula impõe que se observe também o inadimplente, o que é escamoteado pela teoria do comando: que inadmite, pela natureza das coisas, a emissão de duas ordens simultâneas pelo comandante, ainda que logicamente equivalentes.

Analisando a questão sob o prisma da interpretação objetivista, é indiscutível a existência de sanção negativa, proibitiva, na cláusula nominada desconto de pontualidade.  A positiva: se pagar em dia, haverá redução da mensalidade. A negativa: se inadimplir, pagará o valor integral mais 2%, o que contraria a norma proibitiva constante no código consumerista (art. 52, § 1º, do CDC).

Ainda que o julgado do STJ pudesse ser justificado pela teoria objetivista da interpretação, isso implicaria admitir um nonsense: a independência entre as normas proibitiva/permissiva extraídas do desconto de pontualidade.

O julgado seria salvo se considerarmos que o valor cheio pago, em caso de inadimplemento, nada teria a ver com o prêmio suposto na norma positiva, que prevê a mensalidade com desconto. Desse modo, por formalismo puro, não haveria vinculação entre o desconto e a norma que implica o pagamento de multa, que considera o valor cheio, e, por conseguinte, a inexistência de antinomia desta última com a norma legal prevista no CDC.

Todavia, tal conclusão contraria a teoria objetivista da interpretação. É incontestável o vínculo lógico entre a norma proibitiva e a permissiva do desconto de pontualidade. Afinal, o descumprimento da primeira está contido no suposto da segunda. Em outros termos: o inadimplemento é condição para não usufruir do prêmio (logicamente equivalente ao pagamento em dia para a sanção premial) e ao mesmo tempo suposto para o pagamento do valor fixado pela mora. Desse modo, é equivalente afirmar que o inadimplente não terá o desconto ou pagará o valor sem o desconto. Lógica formal que é desprezada pela teoria subjetivista, que se limita ao comando, tendente ao cumprimento da obrigação.

O que, afinal, decidiu objetivamente o STJ foi pela prevalência do sentido mais latente, da suposta vontade dos contratantes de fazer cumprido o desconto de pontualidade, o que é confessadamente dito no julgado. De forma velada, que o emissor não emite comando na forma de descumprimento da sua ordem (ato locucionário).

Enfim, há defasagem de quase dois séculos entre o estatuto interpretado, o CDC, e a teoria adotada, e o que de mais grave: já falseada pela discussão reinante na teoria do direito atual, que pressupõe a ficção em torno da suposta vontade do legislador.

 

 

 

Autor:  João Paulo Rodrigues de Castro é defensor público federal em Cuiabá.

 


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