Autores: Dierle Nunes, Erica Alves Aragão e Lígia de Freitas Barbosa (*)
Em recente decisão prolatada pelos ministros da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial 1.679.909/RS, definiu-se, de forma inaugural, o entendimento de que ao inciso III do artigo 1.015, do CPC/2015 é possível a aplicação de interpretação extensiva ou analógica.
A controvérsia do caso de origem pautava-se na discussão acerca da admissibilidade do recurso de agravo de instrumento contra decisão que rejeitou a exceção de incompetência oposta nos moldes no CPC/73 e julgada na vigência do atual diploma. Os tribunais de Minas Gerais1, Rio Grande do Sul e Distrito Federal, além do TRF da 2ª Região, já tinham admitido a interpretação extensiva do artigo 1.015 do CPC/2015 em julgados isolados.
No acórdão da corte superior, restou consignado que, além de ser aplicável o CPC/2015 em razão da data da publicação da decisão recorrida (Enunciado Administrativo 1), deve-se entender que em face de decisões que versem sobre competência é possível a utilização do recurso de agravo de instrumento, à luz da interpretação extensiva da norma disposta no inciso III do artigo 1.015, “já que ambas possuem a mesma ratio, qual seja, afastar o juízo incompetente para a causa, permitindo que o juízo natural e adequado julgue a demanda”, nas palavras do ministro relator, Luis Felipe Salomão.
Tal entendimento, conforme decisão colegiada, visa possibilitar a recorribilidade imediata e célere de decisões que definam competência, a despeito da não previsão expressa no artigo 1.015, do CPC/2015, haja vista as graves consequências decorrentes da tramitação e julgamento do processo por juízo incompetente e a inocuidade de sua análise no momento do julgamento da preliminar de apelação.
Contudo, a decisão exarada pelo STJ mostra-se, de todo, controversa no ordenamento jurídico. Isso porque, mesmo após quase dois anos de vigência do CPC, ainda existe um intenso debate doutrinário e jurisprudencial no que tange às hipóteses de cabimento do recurso de agravo de instrumento.
A discussão maior está relacionada aos dissensos interpretativos acerca do artigo 1.015, CPC, já que, orientado pelo suposto objetivo de simplificar o sistema recursal e conferir maior rendimento a cada processo, o legislador do código optou por sistematizar erroneamente o recurso de agravo de instrumento com base em hipóteses taxativas de cabimento.
Nesse cenário, parcela da doutrina tem entendido que o rol de decisões agraváveis deve ser interpretado de forma restritiva, respeitados os limites semânticos do texto, sendo que as demais decisões interlocutórias, que não comportem o recurso de agravo, devem ser impugnadas em preliminar de apelação ou em contrarrazões, como prescreve a norma.
Contudo, ainda que o legislador do CPC/2015 tenha se esforçado (especialmente na Câmara dos Deputados) para fazer constar as principais decisões interlocutórias que deveriam ser submetidas imediatamente ao crivo do tribunal, e, mesmo valendo-se de uma interpretação mais ampliativa daqueles incisos que apresentam fórmulas redacionais mais abertas, o fato é que “a riqueza de situações que podem surgir no dia a dia do foro, porém, escapam da inventividade do legislador”.
Dessa forma, não se mostrou acertada a escolha do legislador do CPC/2015 ao restringir o cabimento de recurso imediato em face das decisões interlocutórias de primeiro grau, pois, além de não conseguir abarcar todas as decisões que podem ensejar a futura anulação da sentença, ensejando possíveis retrabalhos procedimentais, ainda acaba por reavivar a figura do mandado de segurança como sucedâneo recursal.
Nesses termos, a corrente que defende o rol taxativo sem possibilidade de interpretação extensiva entende que, caso haja uma decisão interlocutória irrecorrível capaz de causar prejuízo à parte, ferindo direito líquido e certo processual, caberá contra ela mandado de segurança.
Ou seja, a impossibilidade de interposição de agravo não significa que a decisão ficará sem qualquer expediente impugnatório, uma vez que teremos sérios e graves riscos e impactos sobre os direitos processuais das partes, muitas vezes com embaraços ao exercício e proteção do direito material, objeto da postulação em juízo. Essa corrente é sustentada por diversos autores, dentre eles, vale citar: Marcelo Machado, Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda Alvim, Antônio Notariano Jr, Eduardo Talamini e Igor Guilhen Cardoso.
Por outro lado, a opção legislativa pela mitigação da recorribilidade das decisões interlocutórias permitiu que a doutrina, capitaneada por Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha, desenvolvesse a tese de um perfil temático, que proclama o entendimento de que o rol do artigo 1.015, apesar de ser taxativo, comporta uma interpretação extensiva para abarcar situações que se assemelham àquelas previstas nos incisos do dispositivo legal em referência. Argumentam os autores que a justificativa para a adoção dessa tese finca-se no “risco de se ressuscitar o uso anômalo e excessivo do mandado de segurança contra ato judicial, o que é muito pior, inclusive em termos de política judiciária”.
É justamente esse posicionamento doutrinário que foi prontamente incorporado pelo STJ na fundamentação do REsp 1.679.909, autorizando a interposição de agravo de instrumento em face de decisão interlocutória que versa sobre competência, por aplicação analógica ou extensiva do artigo 1.015, III, CPC.
Contudo, é necessário fazer algumas ressalvas a essa opção doutrinária e jurisprudencial. Inicialmente, cumpre ponderar que, se o legislador quisesse incluir a hipótese de recorribilidade das decisões interlocutórias que versam sobre competência no rol do artigo 1.015, CPC, ele assim o teria feito de forma expressa.
Até porque, quando o projeto do CPC ainda tramitava no Congresso, o seu texto chegou a ser alterado pela Câmara dos Deputados para que fosse incluída tal hipótese (artigo 1.028, X), sendo, contudo, rechaçada pelo Senado Federal. Assim, a ausência de previsão legislativa em relação à matéria impede que seja conferida à norma uma interpretação elástica a ponto de se criar hipóteses de recorribilidade de agravo que não estejam previstas no texto legal.
Ademais, a justificativa de adoção de uma interpretação extensiva para afastar o uso excessivo do mandado de segurança torna-se muito frágil frente aos impactos que essa opção interpretativa pode causar no ordenamento jurídico brasileiro.
Assim, verifica-se que o uso da interpretação extensiva é bastante controverso e, embora possibilite a recorribilidade de hipóteses necessárias que não estão elencadas no artigo 1.015 do CPC/15, tal técnica introduz diversos efeitos indesejáveis ao sistema de recorribilidade das decisões interlocutórias.
Dessa forma, tem-se que é possível delinear variados impactos em torno do uso dessa interpretação extensiva, uma vez que não é possível definir, a princípio, qual seria o limite interpretativo dessa técnica, abrindo-se, então, a possibilidade de outras discussões interpretativas em torno de cada um dos incisos do artigo em comento, o que, certamente, não era o objetivo inicial do legislador. Essa técnica, portanto, apresenta sérios riscos de extrapolação e de decisionismos que mitigam a previsibilidade inerente ao sistema processual.
Ademais, “há um limite interpretativo para a academia e a jurisprudência”, de forma que o juízo pessoal de desaprovação das hipóteses não pode se sobrepor ao texto legislado nem deve se criar novas hipóteses de cabimento do agravo de instrumento não previstas no CPC/2015 por meio de interpretações extensivas.
Acrescenta-se, ainda, o sério risco que esse método da interpretação extensiva pode oferecer para o sistema preclusivo e, consequentemente, à segurança jurídica. Isso porque, ao estender as hipóteses de recorribilidade imediata a outras situações não previstas expressamente no artigo 1.015, pode-se criar, por conseguinte, novas hipóteses de preclusão imediata que, potencialmente, levarão ao contexto “de grave insegurança jurídica, em que os profissionais não terão mais segurança do que preclui ou não de imediato”, sendo possível prever que muitos profissionais passarão a agravar de qualquer decisão a fim de se evitar a configuração da preclusão, gerando-se, com isso, o efeito reverso à eficiência procedimental.
Portanto, admitir-se a aplicação da interpretação extensiva ao artigo 1.015 significa, em última análise, a criação de novas hipóteses de cabimento do agravo de instrumento pelos tribunais, violando frontalmente a separação das funções do Estado e a própria segurança jurídica, considerada uma das principais balizas do atual diploma.
Assim, tem-se que o uso da interpretação extensiva se soma aos problemas já existentes em torno do artigo 1.015 do CPC vigente, abrindo amplas possibilidades de recorribilidade bem como de discussões interpretativas em torno de cada um dos incisos do referido artigo, contrariando, dessa forma, toda a proposta legislativa que norteou a elaboração do diploma vigente.
Diante desse cenário, conclui-se que o uso da interpretação extensiva não é o meio adequado para corrigir as eventuais distorções e incompletudes do modelo atual de recorribilidade das decisões interlocutórias, de modo que mostra-se necessária a implementação de uma pontual reforma legislativa, a qual, sim, se revela como a via correta e adequada para a solução da controvérsia gerada em torno do artigo 1.015 do CPC/2015 e para resolver o tumulto processual já existente nos tribunais brasileiros.
Defende-se, portanto, a alteração legislativa, a qual deve ser amparada, primeiramente, por dados estatísticos e empíricos para avaliar a realidade nacional acerca da recorribilidade das decisões interlocutórias (jurimetria), pois somente assim será possível desenvolvermos um modelo ideal de cabimento do recurso de agravo de instrumento.
Sabe-se que a decisão do STJ não possui a força normativa de um precedente, podendo se tornar mais um exemplo de julgado isolado que se perde na história jurisprudencial do tribunal, como já se teve no passado, inclusive em decisões iniciais acerca de reformas processuais.
E, apesar de um dos autores já ter combatido essa nefasta opção legislativa (do rol taxativo) durante todo o trâmite do CPC, embasado em dados empíricos colacionados, crê-se que a mantença da incerteza (pela diversidade interpretativa instaurada) só possa ser corrigida por uma alteração legislativa, eis que os limites semânticos do CPC induzirão a mantença do atual quadro de dúvidas e problemas para os jurisdicionados e profissionais. Algo intolerável!
Autores: Dierle Nunes é advogado, doutor em Direito Processual, professor adjunto na PUC Minas e na UFMG e sócio do escritório Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia). Membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do CPC/2015. Diretor acadêmico do Instituto de Direito e Inteligência Artificial (Ideia).
Erica Alves Aragão é advogada e mestranda em Direito Processual pela PUC Minas.
Lígia de Freitas Barbosa é graduada em Direito pela UFMG.