Substituição tributária da contribuição social sobre a remuneração

A Emenda Constitucional de nº 20, de 15-12-98, alterou o inciso I do art. 195 da CF, promovendo o alargamento do campo de incidência da contribuição social sobre a folha de salários. Pelo novo texto constitucional a lei ordinária poderá instituir a contribuição social a cargo de empregador, de empresa ou de entidade a ela legalmente equiparada incidente sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício.

Verifica-se desse novo texto, que não há mais necessidade de a empresa manter quadro de empregados para qualificar-se como sujeito passivo da contribuição. Bastará apenas a relação de trabalho, e não relação de emprego, entre a empresa – empregadora ou não – e o beneficiário de qualquer rendimento pago ou creditado. O beneficiário desse rendimento continua sendo necessariamente a pessoa física. Logo, de contribuição sobre a folha de salários evoluiu para contribuição sobre remuneração em geral, que abarca inclusive honorários percebidos por profissionais liberais. Dessa forma, entendemos recepcionadas as expressões empresários, trabalhadores avulsos e autônomos empregadas pelo art. 22, inciso I da lei nº 8.212, de 24-07-91, que dispõe sobre a organização da Seguridade Social e institui plano de custeio.

Não importa que o STF tenha concedido medida liminar para suspender a eficácia daquelas expressões (Adin 1.102-2-DF, Rel. Min. Paulo Brossard; Lex jurisprudência do STF, v.194, p.42). Aquela decisão judicial não implicou revogação da lei, mas apenas suspensão dos efeitos com relação àquelas expressões. A inconstitucionalidade que havia provocado a atuação jurisdicional da Corte Suprema cessou ipso facto com o advento da Emenda Constitucional nº 20/98, restabelecendo a plena vigência e eficácia integral do mencionado inciso I, do art. 22, da Lei nº 8.212/91.

Antes da referida EC, a Lei Complementar de nº 84, de 18-01-96, já havia promovido o elastecimento do fato gerador dessa contribuição social ao instituir a alíquota de 15% incidente sobre o total da remuneração ou retribuições pagas ou creditadas pelas empresas e pessoas jurídicas, inclusive cooperativas, pelos serviços prestados sem vínculo empregatício, por segurados empresários, trabalhadores autônomos e equiparados, avulsos e demais pessoas físicas.

O Colendo STF, por maioria de votos, e à luz dessa lei complementar, decidiu pela constitucionalidade daquela contribuição social ampliada, isto é, daquela incidente sobre as remunerações pagas a avulsos, autônomos e segurados empresários (RE nº 228.321-RS, Rel. Min. Carlos Velloso, j. em 1-10-98). Na verdade, com todas as vênias, somente uma modificação constitucional, como a que sobreveio com a promulgação de EC nº 20/98, poderia alterar o quadro de inconstitucionalidade antes reconhecido, pois, nenhuma lei complementar tem o poder de inovar expressa disposição constitucional, qual seja, contribuição dos empregadores, incidentes sobre a folha de salários. Por expressão determinação da Magna Carta, antes da EC nº 20/98, o fato gerador da contribuição só podia ser o pagamento da folha salarial pelo empregador. O pagamento de remuneração a avulsos e autônomos, bem como, o pagamento de pro labore aos empresários não integram a folha salarial de cada mês.

Com o novo texto constitucional, a base de cálculo dessa contribuição passou a ser o total das remunerações pagas ou creditadas à pessoa física, a qualquer título, decorrente das relações de trabalho, não de emprego. O elemento nuclear de seu fato gerador é o pagamento dessas remunerações por empregador, empresa ou pela entidade a ela legalmente equiparada.

Feitas essas considerações, cumpre verificar a adequação ou não da Lei nº 9.711, de 20-11-98, que estabeleceu o regime de recolhimento antecipado dessa contribuição na fonte, aos ditames da Carta Magna e do Código Tributário Nacional.

A lei sob exame alterou o art.31 da Lei nº 8.212/91 prescrevendo:

Art. 31. A empresa contratante de serviços executados mediante cessão de mão de obra, inclusive trabalho temporário, deverá reter onze por cento do valor bruto da nota fiscal ou fatura de prestação de serviços e recolher a importância retida até o dia dois do mês subseqüente ao da emissão da respectiva nota fiscal ou fatura, em nome da empresa cedente da mão de obra, observado o disposto no § 5º do artigo 33.

§1º. O valor retido de que trata o caput, que deverá ser destacado na nota fiscal ou fatura de prestação de serviços, será compensado pelo respectivo estabelecimento da empresa cedente da mão de obra, quando do recolhimento das contribuições destinadas à Seguridade Social devidas sobre a folha de pagamento dos segurados a seu serviço.

§2º. Na impossibilidade de haver compensação integral na forma do parágrafo anterior, o saldo remanescente será objeto de restituição.

§3º. Para os fins desta lei, entende-se como cessão de mão de obra a colocação à disposição do contratante, em suas dependências ou nas de terceiros, de segurados que realizem serviços contínuos, relacionados ou não com a atividade fim da empresa, quaisquer que sejam a natureza e a forma de contratação.

§4º. Enquadram-se na situação prevista no parágrafo anterior, além de outros estabelecidos em regulamento, os seguintes serviços:

I – limpeza, conservação e zeladoria;
II – vigilância e segurança;
III – empreitada de mão de obra;
IV – contratação de trabalho temporário na forma da Lei nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974.

Como se vê, a substituição tributária do sujeito passivo natural (prestadora de serviços) foi feita ao arrepio das normas legais e constitucionais pertinentes. Nos termos do CTN só pode ser contribuinte quem tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador (art. 121, I), e responsável tributário, a terceira pessoa vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, expressa e legalmente designada como tal (art. 121, II, c.c. art. 128). Pergunta-se, onde a vinculação da empresa contratante (tomadora de serviços) com a situação que constitua fato gerador da obrigação tributária da empresa prestadora de serviços? O fato gerador dessa contribuição é o pagamento da folha de salários e demais rendimentos do trabalho à pessoa física, por expressa definição legal e constitucional. Indaga-se, o que isso tem a ver com o pagamento do preço do serviço contratado? Onde a correlação entre o preço pago a uma empresa, por conta do serviço avençado, e a remuneração paga à pessoa física?

Por isso essa substituição tributária não tem amparo no § 7º do art. 150 da CF, que faculta a tributação por fato gerador presumido, assegurada a restituição preferencial e imediata na hipótese de sua inocorrência, nos seguintes termos: A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido. Esse dispositivo constitucional não autoriza concluir que o pagamento de fatura de serviço, apresentada pela empresa contratada, irá representar o montante da remuneração a ser paga, no final do mês, às pessoas físicas que lhe prestaram serviços com ou sem vínculo empregatício. Muito ao contrário, o bom-senso está a indicar que nenhuma empresa, sob pena de cair em insolvência, pode pagar, a título de remuneração do trabalho, o mesmo montante de seu faturamento. E mais, empresas que utilizam tecnologias avançadas têm um custo menor na utilização de mão de obra. Outrossim, essas empresas prestam serviços a diversas empresas contratantes, no mesmo mês, através de mesmos empregados, avulsos ou autônomos. Não há dúvida, pois, que a antecipação do tributo não é feita com base no fato gerador presumido que, por si só, já é uma violência contra a vetusta teoria do fato gerador da obrigação tributária, introduzida pela EC nº 3/93.

Realmente, o indigitado art. 31 implica alteração da base de cálculo – total da folha de remunerações e demais rendimentos do trabalho – para o total do preço dos serviços contratados, como se tratasse de contribuição sobre a receita ou o faturamento. Altera, pois, o fato gerador dessa exação fiscal. E mais, implica tratamento diferenciado das prestadoras de serviços vulnerando o art. 150, II da CF. E essa agressão ao princípio da isonomia é agravada com a delegação contida no § 4º do art. 31, afrontando o princípio da reserva legal (art. 97 do CTN).

De fato, a ordem de serviço nº 203, de 29-01-99 do INSS, que substituiu a anterior de nº 195/98, ainda que excluindo do regime de retenção na fonte os contratos de empreitada, que tenham por objeto a utilização de conhecimentos ou capacidades especiais da contratada (consultoria, instalação e manutenção de software, de serviços de advocacia, elaboração de projetos etc.), submeteu a esse mesmo regime de recolhimento antecipado um número infindável de serviços, aleatoriamente enumerados em seus diversos itens.

Ora, se esse regime de antecipação do tributo implica cometimento de atribuição de responsabilidade tributária ao tomador de serviços, claríssimo está que, ao teor do art.121, II c.c art.128 do CTN, a nominação desses serviços, para efeitos de substituição tributária, só poderia ocorrer por lei em sentido estrito. Patente a infringência do princípio da legalidade tributária, não bastasse a afronta ao princípio constitucional da isonomia tributária ao discriminar, por lei e de forma casuística, os tipos de empresas prestadoras de serviços, discriminação essa agravada com a inclusão de outros tipos de atividades por ato legislativo de menor hierarquia.

A substituição tributária, com fundamento no art. 128 do CTN e no art. 150, § 7º da CF, só poderia operar-se validamente se se respeitasse o fato gerador dessa contribuição a ser desencadeado pela empresa prestadora de serviços, ou seja, o pagamento de remunerações às pessoas físicas que lhes prestem serviços, bem como, a sua base de cálculo, isto é, o provável montante dessas remunerações a ser pago, em cada mês pela mesma empresa prestadora de serviços. Se a retenção da contribuição a cargo da empresa substituenda (contratante de mão de obra) incide sobre fato atípico – pagamento do preço do serviço contratado – descaracterizada estará a figura da substituição tributária para frente quer por violação da sua base de cálculo, quer pela afronta ao próprio elemento objetivo do fato gerador da contribuição social incidente sobre a folha salarial e demais remunerações do trabalho.

Na verdade, a sistemática adotada pela Lei nº 9.711/98 conduz, necessariamente, à repetição de indébito por tomar, deliberadamente, como base de cálculo uma situação que mais favorece o fluxo de caixa do INSS, mas que nada tem a ver com o fato gerador presumido da contribuição social em tela. Arrecada-se antecipadamente o que sabe ser indevido e faculta-se ulterior restituição como se tratasse de uma benesse do poder tributante. Sabe-se que a regra da imediata e preferencial restituição inserida no texto constitucional, na prática, está completamente desmoralizada, porque legisladores palacianos têm baixado Normas Regulamentares, ora para fixar parcelas mensais de restituição de acordo com o fluxo de caixa do Tesouro, ora estabelecendo uma espécie de ordem cronológica, a partir da data do pedido de restituição. À medida que o Judiciário vai se familiarizando com a legislação abusiva para repelí-la, os legisladores de plantão vão engendrando outras mais exorbitantes. Esse espúrio regime de antecipação da contribuição social não configura uma substituição tributária, mas um autêntico confisco vedado pelo inciso IV, do art. 150 da CF.

Ex positis, é absolutamente inconstitucional o art. 31 e seus parágrafos, bem como, a Ordem de Serviço do INSS de nº 203/99 que, a pretexto de disciplinar a sistemática de recolhimento da contribuição sobre as remunerações pagas à pessoas físicas, desfiguraram essa contribuição social prevista na letra a do inciso I, do art. 195 da CF. Nem se argumente com o bis in idem (bi-tributação econômica) invocando o fato gerador da contribuição social incidente sobre receita ou faturamento (letra b, do inciso I, do art. 195 da CF), pois, a competência impositiva dessa última contribuição social é da União, cabendo a sua fiscalização e arrecadação à Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda. Tão gritante a inconstitucionalidade do procedimento adotado pelo art. 31 da Lei nº 8.212/91, com a redação conferida pela Lei nº 9.711/98 que em 9-2-99 foi concedida medida liminar pela juíza da 14ª Vara da Justiça Federal de São Paulo para afastar a exigência dessa retenção na fonte (MS nº 199.61.00.003395-6; Impetrante: Cavan Pré Moldado SA; Impetrado: Superintendente Regional do INSS).

*Kiyoshi Harada
Diretor da Escola Paulista de Advocacia, professor de direito administrativo, tributário e financeiro, ex-procurador-chefe da consultoria jurídica da procuradoria-geral do município de São Paulo (SP)

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