SUMÁRIO : 1.Introdução – 2. Sucumbência nos JE – 3. A proteção da propriedade na CF – 3.1. A Constituição estabelece a propriedade como garantia individual (CF, Art. 5º, XXII) – 3.2. As despesas processuais como direito à propriedade – 4. Conflito entre a proibição de condenação em sucumbência e a proteção constitucional à propriedade – 5. A injustiça de tal sistemática – 6. Solução do conflito entre a Lei nº 9.099/91 e à Constituição – 6.1 Controle concentrado – 6.2 Controle difuso – 7. Conclusão
1. Introdução
Nos processos nos Juizados Especiais, em primeiro grau, salvo a litigância de má-fé, não há condenação em custas e honorários de advogados (Lei nº 9.099/91, Art. 55).
Este texto tem como objetivo a análise de tal preceito frente à determinação constitucional da proteção ao direito à propriedade e as diferentes situações que podem surgir nos casos concretos, buscando soluções justas e compatíveis com o nosso Ordenamento Jurídico.
2. Sucumbência nos JE
Nos termos da Lei 9.099/95, o acesso aos Juizados Especiais, em primeiro grau, independe, do pagamento de custas, taxas ou despesas (Art. 54) e a sentença de primeiro grau não condenará o vencido em custas e honorários de advogados, ressalvados os casos de litigância de má-fé (Art. 55).
De início, como para o acesso aos juizados especiais o legislador estabeleceu que este independeria de “custas, taxas ou despesas” e para a sentença de primeiro grau prescreveu que a mesma não condenará em “custas e honorários”, considerando que na lei não existem palavras inúteis, podemos interpretar, a contrariu senso, que poderia haver condenação em taxas e despesas, já que estas não foram explicitadas. Porém, tal interpretação não tem sido dada pelos diferentes órgãos dos juizados especiais.
Por outro lado, a condenação em custas e honorários é prevista, nos Juizados Especiais, além dos casos de litigância de má-fé, apenas, para o caso do recorrente vencido (Art. 55, parte final).
3. A proteção da propriedade na CF
3.1. A Constituição estabelece a propriedade como garantia individual (CF, Art. 5º, XXII)
Trata-se, em nosso regime econômico-constitucional, do maior traço de existência do liberalismo. “É espécie do direito à segurança, e recebe tratamento especial em homenagem ao regime econômico constitucional previsto que é o de permitir a apropriação individual dos bens de produção. A propriedade, ou domínio, segundo o art. 524 do Código Civil, é o poder de usar, gozar, dispor e reivindicar os bens mensuráveis, isto é, as coisas. (Nagib Slaibi Filho, Sentença Cível – Fundamentos e Técnica – 5ª edição – Rio de Janeiro : Forense, 2000, pag. 430 e 431).
3.2. As despesas processuais como direito à propriedade
A propriedade que a Constituição protege não é só a propriedade restrita e civilista prevista no art. 524 do Código Civil, que é tão-somente a propriedade como direito real absoluto: a propriedade referida no art 5º, caput, e no inciso XXII, tem o conteúdo mais amplo de representar qualquer bem patrimonial, coisa ou serviço, susceptível de avaliação econômica (Nagib Slaibi Filho, Sentença Cível – Fundamentos e Técnica – 5ª edição – Rio de Janeiro : Forense, 2000, pag. 431).
Assim, o direito à propriedade contempla os valores relacionados às despesas, custa e honorários advocatícios.
4. Conflito entre a proibição de condenação em sucumbência e a proteção constitucional à propriedade.
Claro está que existe um evidente conflito entre a proteção ao direito à propriedade, estabelecido na Constituição, e a previsão legal de que não haverá condenação em despesas, custas e honorários advocatícos, pois tal decisão implicará, para o vencedor, a diminuição de sua esfera patrimonial, já que em relação à decisão de mérito nada lhe foi dado a mais do que já tinha direito.
Ora, se o direito à propriedade é garantido na Constituição Federal, só a ela cabe criar às suas exceções, não ao legislador ordinário.
A propriedade merece especial atenção do legislador constituinte, surgindo nos arts. 5º, caput, incisos XXII, XXIII, XXIV (desapropriação), XXV, XXVI, XXIX, art. 153, VI, 155, I, 156, I e § 1º, 158, II e III, 170, II e III, 176, 182, § 2º, 182, § 4º, II, 185, I e II e parágrafo, 186, 190, 191, 222 e art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias ; o domínio é referido nos arts. 20, III, 26, II, 48, V, 149, 183 e § 1º, 189 e parágrafo único, 231, § 6º; a palavra “propriedade” surge nos arts. 5º, inciso XXV, 154. § 4º, 176, § 2º, 182, § 4º, 183, 185, I, 191, 243 e art. 47, § 3º, inciso V, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Em nenhuma dessas passagens é estabelecida qualquer regra que determine a possibilidade do direito a propriedade ceder ao direito ao acesso à Justiça.
Ao contrário, na parte em que a Constituição trata da criação de juizados especiais ela assim se expressa : “Art. 98 – A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.
Verifica-se que nada foi dito em relação às limitações ao direito à propriedade.
Portanto, é questionável a constitucionalidade da determinação estabelecida na Lei nº 9.099/91 que estabelece que não haverá condenação em despesas, custas e honorários advocatícios.
5. A injustiça de tal sistemática
Num primeiro momento, podemos ser levados a analisar os Juizados Especiais como sendo o instrumento para que o cidadão desprovido de recursos acione uma grande empresa para ver garantido o seu direito.
Nestes casos, é mais aceitável a possibilidade de não haver condenação em honorários e despesas para evitar que o temor do humilde cidadão em tal prejuízo, numa eventual derrota, faça-o desistir em lutar pelos seus direitos.
Porém, muitas vezes, temos dois cidadãos em situação equivalente que litigam.
Aí, é injusto que o vencedor no processo, para o qual teve que arcar com despesas e gastos com honorários advocatícios, não possa ser ressarcido em tais valores, pois isto implicará a redução de sua esfera patrimonial.
Imaginemos a situação de um cidadão que, sem qualquer fundamento, porém de boa-fé, busque o Juizado Especial para acionar outro cidadão e, no pedido, já que isto em nada muda o seu risco, peça o valor máximo possível naquele órgão judicial, ou seja, 40 salários mínimos.
O réu, neste caso, terá, por imposição legal (Lei nº 9.099/91, Art. 9º), que constituir advogado, portando, arcando com os valores desta contratação.
Este réu, se vencedor, de acordo com a determinação legal em análise, não terá direito ao ressarcimento de suas despesas, num flagrante desrespeito ao seu direito à propriedade que é constitucionalmente garantido.
Mais ainda, na hipótese em tela, caso o autor houvesse sido moderado e não dado a causa valor superior a 20 salários mínimos, o que não faz exigir a assistência de advogado, se vencedor na primeira instância, forçaria também o réu a constituir defensor para recorrer (Lei nº 9.099/91, Art. 41, § 2º), e, se este for, ao final, o vencedor, o que atestaria que sempre esteve com o direito, não seria, também, ressarcido, pois a lei só concede tal condenação ao recorrente vencido (Lei nº 9.099/91, Art. 55 in fine).
Novamente, a inconstitucionalide de tais preceitos é patente.
6. Solução do conflito entre a Lei nº 9.099/91 e à Constituição :
Dado que existe um conflito entre a norma estabelecida na Lei do Juizados Especiais e o direito à propriedade – que tem nível constitucional – há que ser estabelecida a solução. Para tal, verificamos as seguintes possibilidades.
6.1. Controle concentrado :
6.1.1. Pelo controle concentrado, seria necessária uma ação direta de inconstitucionalidade para que fosse declarada a pertinência ou não da norma que não permite a condenação em honorários, na primeira instância, nos juizados especiais.
6.1.2. Tal processo poderia ter como resultado :
6.1.2.1. Improcedência total do pedido, com a conseqüente declaração da constitucionalidade da norma em análise, o que, pelo aqui exposto, entendemos não ser a solução adequada;
6.1.2.2. Procedência total do pedido, com a declaração de inconstitucionalidade das normas que impedem a condenação em honorários e, assim, não haveria mais os conflitos em relação à proteção ao direito à propriedade.
Entendemos que, tal solução, por expurgar do ordenamento jurídico a norma declarada inconstitucional, seria uma medida drástica, porque, em certas situações, inibiria o cidadão de lutar pelos seus direitos.
6.1.2.3. Solução de interpretação das normas conforme a Constituição, sem redução de texto, ou seja, buscando um interpretação, dentre as possíveis que permitisse a proteção à propriedade e, para certas situações, a impossibilidade da condenação em honorários para o sucumbente.
Entendemos que a proibição de tal condenação seria possível, por exemplo, para o caso de uma relação de consumo, sendo o consumidor o reclamante, pois a própria Constituição estabeleceu como princípio a proteção deste (CF, Art. 5º, XXXII). Portanto, haveria o aparente conflito de normas constitucionais, o qual seria resolvido pelo princípio da proporcionalidade.
Noutros casos, em lides entre cidadãos, a impossibilidade da proibição na condenação em honorários seria a solução para não ser ferida a proteção à propriedade.
6.2. Controle difuso.
É perfeitamente possível, em termos de controle constitucional, por via de exceção, o controle difuso das normas em tela, ou seja, poderá o juiz decidir, no caso concreto, pela inconstitucionalidade da norma que proíbe a condenação em honorários ou mesmo dar ao referido preceito interpretação conforme a Constituição, entendendo que, em certos casos, como o de consumidor lesado, seja possível o ressarcimento nas despesas efetuadas com a defesa.
Neste sentido, é importante destacar que nos Juizados Especiais o juiz adotará em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum (Lei nº 9.099/91, Art. 6º).
7. Conclusão
De todo o exposto, chegamos à conclusão de que é perfeitamente possível, em casos específicos, atendendo ao princípio constitucional da defesa da propriedade, a condenação em honorários e despesas nos juizados especiais, mesmo na primeira instância.
BIBLIOGRAFIA
SLAIB FILHO, Nagib . Sentença Cível : Fundamentos e Técnica . 5. ed. Forense, 2000
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Tutela antecipada e tutela cautelar. In RT-742 Agosto de 1997 86º Ano.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional, 4. ed . São Paulo : Atlas , 1998
NEGRÃO, Theotonio. Código de processo civil e legislação processual em vigor . 32. ed . Saraiva
Autor: Valdecy José Gusmão da Silva Junior Fonte: Infojus