Antonio Augusto Mello de Camargo Ferraz
(Tese aprovada no 11o Congresso Nacional do Ministério Público, Goiânia, GO, 1996; publicada na obra “Ministério Público e afirmação da cidadania”, edição do autor, 1997, p. 108)
I – Introdução
O Ministério Público brasileiro vem marcando sua história pela saudável disposição de aprimorar cada vez mais seu perfil institucional: tem tido disposição para se questionar continuamente, sabendo reconhecer suas eventuais falhas e omissões; tem sido ousado no assumir novas e relevantes responsabilidades, dominando o sentimento corporativo — tão próprio dos órgãos estatais, especialmente aqueles estruturados em carreira — para buscar condições de cumprir eficazmente sua relevante função social.
Os que conhecem mais de perto a Administração Pública sabem ser difícil manter acesa a chama do idealismo em seu seio: a ausência de estímulos e de recursos, a má remuneração, a burocracia de carreiras que, uma vez iniciadas, se desenvolvem inexoravelmente, até o seu final, acabam conduzindo à acomodação e, pois, à péssima qualidade do serviço prestado à população.
A falta de estímulo tem sua gênese na reduzidíssima cobrança social por melhores serviços.
Os mais favorecidos (pertencentes às denominadas “elites”, e que têm voz ativa) pouco dependem da Administração: podem recorrer a despachantes, a escolas e hospitais particulares; prescindem do transporte coletivo; adotam sistemas de segurança particular; podem se valer até mesmo de meios privados de solução de conflitos (prescindindo, pois, inclusive da Justiça).
Quanto aos desfavorecidos — que no Brasil dependem dramaticamente do Poder Público, não têm organização ou voz, não têm nem mesmo, no mais das vezes, consciência de seus próprios direitos — simplesmente suportam, sofrem as conseqüências de uma vida de pobreza e miséria, em que lhes são negadas as condições mínimas da cidadania.
Num País em que cerca de 82% da população é pobre (com renda de até três salários mínimos – 78,76%) ou miserável (sem renda – 3,96%), deveria ser melhor avaliada, por exemplo, a prestação dos serviços da Justiça.
Se esse enorme contingente de pessoas tem acesso restrito à educação (há no Brasil dezenove milhões de analfabetos e apenas metade dos alunos conclui o primeiro grau), à habitação (5,8% dos brasileiros vivem em moradias precárias; 24,61% da população não tem banheiro em casa e há três pessoas, em média, por cômodo) ou à saúde, o que então dizer da Justiça?!
Sob esse prisma, não seria desarrazoado dizer que a Justiça brasileira trabalha apenas para 18% da população, motivo pelo qual nem seria aceitável o argumento de que é perversa a relação de um juiz para 29.000 habitantes, aqui existente (quando seria a metade disso em países de primeiro mundo): considerados os “excluídos” (82% da população), a proporção correta seria de um juiz para 5.220 habitantes!
Por todas essas razões, é preciso registrar o mérito da “inquietação” (termo aqui empregado como antônimo de “acomodação”) de expressivos setores do Ministério Público nacional, que, sem estarem sendo a tanto cobrados, espontaneamente têm buscado a autocrítica e o aprimoramento de seus serviços.
Isso explica, de resto, o extraordinário avanço obtido na Constituição Federal em vigor, onde se encontra formalmente delineado um Ministério Público sem paradigma em todo o mundo.
II – Um diagnóstico possível da situação atual
Dentre os incontáveis problemas que poderiam aqui ser apontados na atividade estatal de repressão ao crime, um apenas será destacado: o do fracionamento da persecução penal.
Realmente, há hoje um absurdo e injustificado abismo entre a investigação dos fatos criminais, pela Polícia, e a ação do Ministério Público e da Justiça Penal.
Esse fracionamento, que é quase absoluto, apresenta conseqüências inevitavelmente deletérias:
a) “burocratiza” a atuação do Ministério Público, fazendo dele mero processador de papéis, na medida em que tem limitado contato direto com a realidade criminal (este, privilégio da Polícia);
b) faz da Polícia Judiciária um órgão destituído de controles eficientes, uma vez que é na prática impossível verificar sua eficiência: todos os fatos criminais estão sendo devidamente apurados?
c) inviabiliza a distribuição da Justiça Criminal em padrões adequados e esperados.
III – As bases de uma nova postura na área criminal
A meu ver, a experiência da ação civil pública veio resgatar o verdadeiro papel do Ministério Público, revelando ter essa Instituição compromisso inarredável com a defesa direta dos interesses sociais: objeto de sua preocupação, pois, é o próprio fato social (cuja relevância determinou fosse confiado à tutela desse órgão estatal) e não apenas o eventual processo judicial onde esse fato transpareça.
Nas hipóteses em que cabe a ação civil pública, não há intermediários entre o fato e o Ministério Público, podendo este investigá-lo diretamente pelo inquérito civil.
Nessa matéria, portanto, sente-se o Promotor de Justiça responsável diretamente pela defesa do patrimônio público, do meio ambiente, do consumidor, da infância e da juventude, do acidentado do trabalho, agindo muitas vezes de ofício.
O fato criminal, no entanto, apesar de sua relevância, e de ter sido historicamente aquele que determinou o próprio nascimento do Ministério Público, dele se encontra muito mais distante.
Por essa razão, é tênue o compromisso que temos com esse fato criminal: não nos sentimos responsáveis pela elevação dos índices de criminalidade, nem são normalmente adotadas políticas específicas de atuação no tocante a delitos de maior gravidade, ou cuja prática venha aumentando, por exemplo.
Esses são problemas de regra atribuídos à responsabilidade da Polícia, das Secretarias Estaduais de Segurança, de outros órgãos do Poder Executivo, ou, até mesmo, a deficiências legislativas e de atuação do Poder Judiciário.
Inexistem, por outro lado, avaliações de eficiência ou de resultado, especialmente na órbita judicial e do Ministério Público.
IV – Uma nova postura na área penal
A) Levantamento e estudo da realidade criminal
O Ministério Público, por meio de seus órgãos competentes (Procuradoria-Geral de Justiça, Escola, Centro de Apoio, Corregedoria Geral e Colégio de Procuradores) deveria desenvolver e estimular o estudo aprofundado da realidade criminal.
Qual o perfil da criminalidade, em cada Estado? Quais as suas causas mais freqüentes ou sensíveis? Qual o perfil médio dos criminosos? Quais os crimes mais graves ou que afetam com maior impacto a comunidade? Em que áreas há indícios de organização para a prática do crime?
O Ministério Público deveria, pois, ser o órgão detentor dos mais profundos e completos estudos de criminologia, realizados por ele próprio ou em convênio com outras entidades públicas ou privadas, a fim de estabelecer estratégias para sua atuação nessa área. Com isso, seria referência obrigatória em matéria penal.
Setor que deveria merecer estudo diferenciado é o do crime organizado. Como pretender atacá-lo sem conhecer profundamente seus meandros: os organogramas mais comuns dessas organizações, seu sistema hierarquizado e fragmentado para proteção dos escalões superiores, os meios de lavagem do dinheiro ganho ilicitamente?
B) Avaliação do desempenho da Polícia e da própria Justiça Penal
Os inquéritos policiais instaurados, os boletins de ocorrência elaborados pela Polícia Civil e pela Polícia Militar constituem valioso material a ser analisado sob o prisma da qualidade do trabalho da Polícia Judiciária.
Quais os delitos mais freqüentemente investigados? Quais aqueles que não estão merecendo maior empenho por parte da Polícia, ou, mesmo, em que pode estar ocorrendo a participação dela própria? Há diferenças sensíveis entre a natureza dos delitos investigados por uma Delegacia em relação às demais, ou por um Distrito Policial e os demais?
Em outras palavras, deve ser eficientemente organizado o controle externo da atividade policial, que nos incumbe desempenhar, com base num conjunto amplo e seguro de informações.
Mas, também o desempenho do Ministério Público e do Judiciário, na área penal, mereceria ser examinado.
Quais os fatos criminais têm sido com maior freqüência levados a Juízo?
Levantamento estatístico, facilmente realizável, revelaria com bastante clareza a natureza dos crimes submetidos ao crivo do Judiciário e, no âmbito deste, os índices de condenação e absolvição, a natureza e quantidade das penas impostas, o perfil dos que são mais (ou menos) freqüentemente condenados, etc.
Quais seriam, por exemplo, os resultados do cotejo entre os índices de apuração e condenação dos crimes de roubo e de tráfico de entorpecentes?
Que argumentos ou que falhas na apuração dos fatos delituosos têm mais freqüentemente conduzido a indevidas absolvições?
Também os estabelecimentos carcerários constituem riquíssimo laboratório que permitiria aprofundar ainda mais esses estudos e conduzir a uma compreensão mais exata do fenômeno criminal: Qual o perfil comum do sentenciado? Quais suas características sócio-cultural-econômicas? Qual sua idade média? Quais os índices de reincidência? Qual a eficácia da re-socialização?
C) Elaboração de políticas criminais e uso das informações
Com base nesses dados e nessas informações objetivas e concretas, assim obtidas, seria possível a elaboração de políticas criminais consistentes.
Isso colocaria o Ministério Público no lugar devido que lhe cabe como titular da ação penal e como órgão estatal incumbido do combate à criminalidade: o de referencial obrigatório em todas as questões que digam respeito ao fenômeno criminal.
A Instituição deve se transformar num centro difusor de diagnósticos, de propostas, de estudos; deve torná-los públicos e encaminhá-los aos Poderes Executivo e Judiciário, desenvolvendo com estes, eventualmente, programas de cooperação e trabalho conjunto para implementação de projetos, especialmente daqueles que visem à prevenção ou ao combate da criminalidade.
D) Intercâmbio estreito com o Poder Legislativo
Da mesma forma, a posse dessas informações relativas à realidade criminal faria do Ministério Público um parceiro obrigatório do Legislativo, sempre que se cuidasse da elaboração ou modificação de textos legais nas áreas penal e processual penal.
O conhecimento profundo daquela realidade permitiria à Instituição sugerir e lutar pela adoção de soluções legislativas mais adequadas, eficazes e consistentes.
E) Maior aproximação do Ministério Público com relação ao fato criminal
Além do conhecimento amplo da realidade criminal, no atual momento histórico, seria fundamental que a Instituição passasse a encurtar a distância que hoje a separa dos fatos criminais rotineiramente investigados pela Polícia até para identificar quais são os que possuem maior potencial ofensivo e poder maximizar a utilização de seus limitados recursos no combate ao crime.
O Ministério Público precisa, assim, acompanhar mais de perto a investigação desses fatos, como já se disse — se não de todos, ao menos de um número crescente deles, aos quais queira a cada momento atribuir prioridade —, orientando-a para que não haja vícios ou omissões, velando para que seja consistente a prova sobre a qual mais tarde fundar-se-á a denúncia.
O Ministério Público, enfim, precisa passar a acompanhar muito mais de perto o trabalho da Polícia Judiciária.
Tem, de resto, legitimidade para fazê-lo, pois é o destinatário daquele trabalho e sobre quem pesa a responsabilidade de obter em Juízo a reprovação e punição do ato criminoso.
Nada — nem razões políticas, nem jurídicas —justifica que a Polícia atue de forma estanque, independente. Antes, sua atuação reclama, até por injunção constitucional, controle.
De outro lado, cabe também ao Ministério Público, dentro do possível, suprir as falhas da investigação policial, dando maior suporte à sua atuação em Juízo.
É evidente que não se está aqui a pregar o confronto do Ministério Público com a Polícia Judiciária. Muito ao contrário, ambos têm objetivos convergentes que exigem, para serem alcançados com eficácia, atuação coordenada e harmônica, de estreita cooperação.
A aproximação, a harmonia e a atuação integrada devem ser buscadas pelo Ministério Público.
F) Estudo de mudanças na estrutura administrativa do Ministério Público que aumentem sua eficiência na área penal
Finalmente, acredito fosse conveniente estudar algumas modificações na estrutura orgânica da Instituição que pudessem aumentar sua eficácia na área criminal.
É claro que a maior parte dessas alterações seria sugerida pelos dados levantados em conseqüência desse maior domínio da realidade criminal, até aqui defendido. No entanto, algumas medidas poderiam ser desde logo alvitradas.
Assim, a criação de órgãos internos destinados a recolher, sistematicamente, dados relativos à realidade criminal, bem como a interpretá-los e avaliá-los, apresentando conclusões.
A criação de sistema de atuação integrada entre as áreas criminal e cível, que se complementam no tocante a inúmeras questões: improbidade administrativa, loteamentos, acidentes do trabalho, meio ambiente, consumidor, etc.
A criação de órgão de atendimento e amparo à vítima do crime, pois se ao Ministério Público incumbe enfrentar o fenômeno criminal em sua inteireza e lhe é atribuída legitimidade para ajuizamento da ação civil ex delicto, natural que ele se preocupe com as conseqüências do delito, procurando amenizá-las e dedicar sua atenção àqueles sobre os quais recaíram.
V – Conclusões
1ª.) O Ministério Público deve dominar por completo a realidade criminal, mediante o desenvolvimento de sistema de informações formado a partir de estudos aprofundados de criminologia e de dados extraídos de inquéritos policiais e processos penais, por exemplo.
2ª.) Esse sistema de informações sobre a realidade criminal deverá ser usado para a formulação de políticas de atuação na área penal, bem como para o estabelecimento de estreito intercâmbio com os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, tendente à mais eficaz aplicação da lei nessa matéria.
3ª.) Esse mesmo sistema de informações deverá servir de base para uma permanente avaliação crítica da atuação da Polícia Judiciária, da Justiça Penal e do próprio Ministério Público.
4ª.) O Ministério Público deve acompanhar mais de perto a investigação do fato criminal, interferindo de forma mais intensa e freqüente na produção da prova, seja na fase do inquérito, seja na fase processual.
5ª.) Para tanto, deve ser evitado o confronto institucional com os órgãos de Polícia Judiciária e, ao revés, ser buscada uma atuação mais próxima, integrada e harmônica, que permita o cumprimento integral do objetivo estabelecido no item anterior.
6ª.) O Ministério Público deve estudar algumas modificações em sua estrutura administrativa e orgânica a fim de aumentar sua eficácia na área criminal. Assim, por exemplo:
a) deverão ser criados órgãos capazes de desenvolver os estudos e levantar as informações mencionados na primeira proposta;
b) dever-se-á adotar sistema de atuação integrada entre os órgãos do Ministério Público que oficiem no cível e no crime (eventualmente prevendo a reunião das atribuições nas mãos de um mesmo órgão), no tocante a matérias como de improbidade administrativa, acidentes do trabalho, meio ambiente, consumidor, parcelamento e uso do solo;
c) dever-se-á criar órgão de atendimento e amparo à vítima do crime, revelando assim a preocupação da Instituição com o fenômeno criminal em sua inteireza (inclusive, portanto, com suas conseqüências).
ANTONIO AUGUSTO MELLO DE CAMARGO FERRAZ é Procurador de Justiça em São Paulo