Súmula do STF diminui garantia constitucional do HC

por Alberto Zacharias Toron

Superado o entendimento de que o habeas corpus não contempla a possibilidade de concessão de liminar por inexistir previsão legal nesse sentido (1), os advogados passaram a manejar o remédio constitucional em foco reclamando quase que invariavelmente a adoção da providência initio litis. Não raro, porém, a medida liminar é indeferida e surge para o profissional a questão de saber se é possível manejar outro habeas perante o órgão jurisdicional superior atacando apenas o indeferimento da liminar e, assim, sucessivamente, até se chegar ao Supremo Tribunal Federal.

Independentemente das questões processuais que adiante serão discutidas, é preciso registrar que o comportamento dos advogados ao pleitear a concessão de liminares em habeas corpus impetrados sucessivamente perante tribunais de graus diferentes deve ser debitado, ao lado da urgência da medida, à demora no julgamento do próprio writ e, antes ainda, dos agravos regimentais oponíveis contra a decisão monocrática indeferitória da liminar. Assistimos com assombro habeas corpus aguardarem até um ano na conclusão para serem levados a julgamento e, o que é pior, sem que o impetrante seja intimado (2).

Quando se busca a tutela da liberdade do cidadão ou mesmo a da sua dignidade, que a ação penal sem justa causa tisna, é inadmissível a morosidade ou, mais grave, o vazio jurisdicional. Portanto, ao cuidarmos da necessidade da liminar em habeas corpus não estamos falando apenas de uma característica da modernidade como tão bem lembrou BETINA RIZZATO LARA, aludindo ao tempo como medida da eficiência (3). Aqui se fala da eficácia de um instrumento de atuação da denominada “jurisdição constitucional das liberdades”(4).

Há no Judiciário brasileiro, ressalvadas as exceções, uma espécie de praga: a demora na tramitação do remédio que deveria ter como característica a celeridade, aliás, característica esta que, ao lado da tutela da liberdade, representa o seu dístico. Outra praga é representada pela demora na publicação dos acórdãos, que frustram o acesso à jurisdição superior, pois, freqüentemente, os temas ventilados perdem objeto com o advento da sentença de primeiro grau. Lembremo-nos que até se aguardar a publicação do acórdão do habeas corpus temos, em média, quatro meses de espera nos tribunais estaduais e um pouco mais nos regionais federais. Depois, conforme a sorte, outro tanto no STJ e, quando chegarmos ao Supremo, já se terá passado, como regra, quase um ano. Enfim, essas e outras pragas, que contaminam o funcionamento do Judiciário, reclamam, mais do que nunca, soluções urgentes na tutela do mais relevante dos direitos: a liberdade!

Não por acaso, com incomum reiteração, assistimos tanto à prática de se abandonar o uso do recurso ordinário em habeas corpus (RHC), com o manejo da impetração originária, substitutiva daquele e, também, à busca da liminar. Fossem os Tribunais, sobretudo os locais e regionais, mais céleres (5) quer nos julgamentos, quer na publicação das suas decisões, a questão da liminar seria menos preocupante, mais acadêmica, e a própria Súmula 691 não viesse, talvez, a lume.

O objetivo deste trabalho é mostrar que o verbete da Súmula 691, além de criar óbice ao manejo do habeas corpus onde a Constituição não criou, amesquinha essa garantia constitucional, deixando o cidadão ao léu, privado de obter decisão onde, no juízo próprio e diferenciado que marca o espectro cognitivo da liminar, poderia e deveria ter.

A Súmula 691 e seus fundamentos

Ao que parece, mais por excesso de trabalho, do que por racionalização sistemática, o Supremo Tribunal Federal, em 2003, sumulou o entendimento segundo o qual: “não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar”.

ROBERTO ROSAS, no seu prestigiado “Direito Sumular”, comentando o verbete da Súmula em questão, explica que a teor do disposto no art. 102, I, letra, i, caberia ao STF conhecer de impetração originária somente quando a coação emanasse de Tribunal Superior, o que não ocorre quando se trata de decisão monocrática exarada para indeferir liminar (6). A despeito do respeito que o festejado comentarista merece, em se tratando de habeas corpus, o texto constante do referido art. 102, I, letra i, permite o manejo do remédio heróico quando o coator for autoridade cujos atos estejam sujeitos diretamente à jurisdição do STF, por exemplo, Ministro do STJ.

Tanto isso é verdade que a jurisprudência que deu base à construção da Súmula em exame tinha como pilares as idéias bem condensadas pelo Min. MOREIRA ALVES, segundo as quais “a admitir-se essa sucessividade de ‘habeas corpus’, sem que o anterior tenha sido julgado definitivamente para a concessão de liminar ‘per saltum’, ter-se-ão de admitir conseqüências que ferem princípios processuais fundamentais, como o da hierarquia dos graus de jurisdição e o da competência deles” (HC nº 76.347-1-MS; DJ 8/5/98).

Veja-se que a competência aludida é a dos outros tribunais e não a do STF, o que afasta a idéia de que o STF não deteria competência constitucional. O voto-condutor desse habeas sustentava o seguinte na Questão de Ordem suscitada:

“a) se concedida a liminar pelo relator do “habeas corpus” nesta Corte «STF», estarão prejudicados os “habeas corpus” interpostos perante o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal Regional Federal, pela impossibilidade de estes, examinando o mérito — que é o mesmo da liminar — concluírem pela improcedência do pedido, por terem de cassar necessariamente, até por causa do mesmo fundamento, a liminar concedida, no âmbito de sua competência, por juiz que é hierarquicamente superior,

b) com isso, obtém-se indiretamente o que, por falta de competência, não é permitido diretamente, ou seja, que o relator do “habeas corpus” nesta Corte «STF» conceda liminar contra despacho de juiz de primeiro grau; e

c) se se entender, ao contrário, que, com a concessão da liminar pelo relator nesta Corte, não ficam prejudicados os julgamentos dos “habeas corpus” que tramitam no Tribunal Regional Federal e no Superior Tribunal de Justiça, ter-se-á de admitir que, se o primeiro deles julgar o writ perante ele interposto, e que visa ao mesmo fim a que visam os interpostos sucessivamente diante do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, e o indeferir, esse acórdão não só cassará a liminar concedida pelo Ministro desta Corte «STF», como também tornará prejudicado o julgamento pela Turma a que ele pertence do próprio habeas corpus, além de tornar prejudicado o julgamento do writ impetrado também junto ao Superior Tribunal de Justiça, violando por duas vezes o princípio da hierarquia de jurisdição pela cassação de liminar deferida por Juiz superior e por impedir que o Tribunal superior (e, no caso, são dois) delibere, em definitivo, contra o julgado pela Corte inferior” (QO no HC 76.347-1-MS, DJ 8/5/98).

Análise crítica dos fundamentos da Súmula

O primeiro equívoco do julgado que dá base ao erguimento da Súmula em exame está em generalizar algo que nem sempre ocorre, isto é, “que o pedido liminar tem sempre o mesmo objeto da impetração” (cf. supra, letra a). Tal consideração ignora algo rotineiro no meio forense criminal: a impetração, por exemplo, dirigida ao trancamento da ação penal e o pedido liminar voltado unicamente à suspensão do interrogatório e/ou do indiciamento. Neste caso é perfeitamente possível que, impetrado habeas perante o STJ contra o indeferimento da liminar pelo desembargador do Tribunal de Justiça, o Ministro venha deferi-la por entender presente o periculum in mora e não divisar prejuízo para o processo no sobrestamento momentâneo do indiciamento e/ou do interrogatório. Nessa situação, a despeito da liminar concedida pelo órgão da jurisdição superior, nada obsta que o Tribunal de Justiça, com outro espectro cognitivo, já de posse das informações prestadas pela autoridade coatora e do Parecer do Ministério Público, venha a indeferir a ordem.

A concessão da liminar pelo grau de jurisdição superior não obsta a eventual denegação da ordem pelo tribunal local ou regional, pois a amplitude e a profundidade cognitiva do Tribunal quando do julgamento definitivo do habeas são diferentes. Pela mesma razão a denegação da ordem pelo Tribunal local não implica em qualquer subversão hierárquica. Como vimos a pretensão do habeas era o trancamento da ação penal e o pedido liminar estava restrito ao sobrestamento do interrogatório e/ou ao indiciamento. Coisas diferentes e julgadas em momentos diversos com um arco mais amplo de conhecimento no julgamento definitivo.

Mas e se o pedido liminar coincidisse com o de fundo, vale dizer, suponha-se que o writ visasse à revogação da prisão preventiva e, em caráter liminar, fosse requerida a soltura do paciente. Aqui também, embora coincidam os pedidos de caráter liminar e de fundo, a cognição do julgador quando aprecia o primeiro é uma; outra, mais aprofundada, quando decide o pedido instruído com as informações e o parecer ministerial. Assim, como na primeira hipótese, pode o Ministro conceder uma liminar por entender, si et in quantum, presente a fumaça do bom direito, mas o Tribunal na origem, julgando o feito, denegar a ordem.

Haveria, em qualquer caso, ofensa à hierarquia dos tribunais ou as suas competências? A resposta, uma vez mais, veementemente, é negativa e pelo simples fato de que uma coisa é o julgamento da liminar e outra, como é cediço, o do processo devidamente instruído. Em ambos os casos, julgada e denegada a impetração pelo tribunal local ou regional, o de grau superior deverá julgar prejudicado o writ que recebera, pois agora a coação por ventura existente decorrerá da denegação da ordem e não mais do indeferimento da liminar. O raciocínio não muda se, por exemplo, o Tribunal Superior chegar até mesmo a conceder a ordem ratificando a liminar. É que a decisão colegiada está cingida aos termos de uma cognição provisória e mais limitada jungida à questão da liminar.

Em resumo: o julgamento da liminar pela instância superior não vincula o juiz quanto ao mérito da ação que vem a julgar como, aliás, se tem visto no cível quando se trata do provimento de agravos tirados de decisões que indeferem liminares. Soa especioso que no campo do processo penal se pense diferente ou se ignore tal realidade. Outro entendimento nos levaria ao absurdo de que em todas as vezes que o Tribunal, no campo do processo civil, por exemplo, provesse um Agravo e concedesse uma liminar o juiz não poderia julgar improcedente a demanda contra a parte inicialmente beneficiada pela liminar. Portanto, o primeiro fundamento que dá origem à Sumula 691, relativo à competência dos tribunais e o da hierarquia não pode ser aceito.

O segundo equívoco do aresto que dá base à Súmula — é importante lembrar que os julgados subseqüentes praticamente repetem o relatado pelo Min. MOREIRA ALVES — está em supor uma sucessividade que nem sempre ocorre. Não é exato que sempre se queira obter, per saltum, do Supremo Tribunal Federal, o que diretamente, “por falta de competência”, não se pode obter, “ou seja, que o relator do “habeas corpus” nesta Corte «STF» conceda liminar contra despacho de juiz de primeiro grau” (cf. supra item b do julgado).

De saída, em desabono dessa intelecção, deve-se dizer que o habeas corpus pode ser concedido, a qualquer tempo, de ofício, pelo julgador o que, portanto, afasta a problemática do “salto” e, conseqüentemente, o rigor que se opõe ao seu manejo diante do indeferimento da liminar. O tema, aliás, foi objeto de atenção no Pretório Excelso por parte do Min. ILMAR GALVÃO quando no período de recesso forense:

“A orientação que vem sendo seguida é a impossibilidade da impetração de writ contra indeferimento de liminar durante o período forense, época em que a decisão impugnada será prontamente examinada pelo tribunal competente, que poderá mantê-la ou não.

Hipótese diversa, contudo, dá-se quando, em virtude do recesso judiciário, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ou o ministro que estiver no exercício da Presidência, revela-se a única autoridade capaz de remediar o constrangimento ilegal porventura existente, mormente se se considerar a possibilidade da concessão da ordem de ofício”. (HC 81.677-1/RJ, rel., j. 25.4.02, decisão monocrática, DJ 3.5.02, pp. 25/26, n.º 265).

Mas, deixando-se de lado a possibilidade da concessão da ordem de ofício e a questão do recesso forense, fora da situação alvitrada pelo julgado relatado pelo Min. MOREIRA ALVES, referente à sucessividade, pode se dar perfeitamente que o habeas corpus tenha sido julgado pelo Tribunal local, ou regional, e denegado. Contudo, com uma impetração substitutiva do RHC alcance-se o STJ e nessa Corte tenha-se indeferida a liminar. Ora, neste caso o STF vai apreciar, sem nenhum salto, tema que não decorre diretamente da decisão do juiz de primeiro grau, mas de Ministro de Tribunal Superior que julga em nome do Tribunal, como órgão fraccionário, e que tem, em matéria de habeas corpus, por expressa disposição constitucional, seus atos diretamente debaixo da jurisdição da Suprema Corte (art. 102, I, letra i).

A Súmula neste último caso pesa dizê-lo, não poderia ir contra a expressa previsão constitucional e vedar a impetração de habeas contra a denegação da liminar. E, tampouco, se a impetração fosse decorrente de uma sucessão de negativas de liminares iniciada pelo relator no tribunal local ou regional. É que, primeiramente, não está em jogo diretamente a decisão do juiz de primeiro grau, mas a do Relator no Tribunal.

Depois, não vedando a Constituição o manejo do habeas corpus contra o indeferimento da liminar, soa especioso que, pela via exegética, se queira restringir o alcance da tutela da liberdade do cidadão. Ainda mais quando está em foco o acerto ou desacerto da concessão da liminar que, pode, embora raro, encontrar no Pretório Excelso guarida sem que, como visto, se atinja ou se restrinja a competência do tribunal inferior quanto ao julgamento do mérito da ação constitucional ou, por outra, se fira a autoridade da decisão do Supremo Tribunal Federal nos limites do que decidiu.

Em síntese, como advertia o então juiz DANTE BUSANA ao relatar um memorável habeas corpus no extinto Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, “garantia constitucional e ação de direito processual constitucional, o habeas corpus não conhece outros limites que os estabelecidos na Carta Magna” (7). A propósito, nesse memorável julgado, a Procuradoria da Justiça de São Paulo opinava pelo não conhecimento do mandamus porque a coação emanava de sentença, o que inviabilizaria o seu manejo.

Na oportunidade, o Relator do writ, grande nome que o próprio Ministério Público havia emprestado ao Tribunal paulista, com apoio no escólio de PHILADELPHO DE AZEVEDO, sublinhava: “entendemos que, durante o curso do processo e independentemente de despachos ou sentenças, com ou sem a concorrência com outros quaisquer recursos, deve ser concedido o habeas corpus sempre que ficar provado incontinenti a nulidade substancial de qualquer espécie ou a carência da ação penal intentada; devem ser suprimidas da legislação quaisquer referencias à dita Lei (Lei n.º 2.033, de 1831), que, disfarçando uma regulamentação do texto constitucional amplo e liberal, a cinqüenta anos e sob o regime imperial originava veementemente protestos e hoje constitui verdadeira aberração; assim, fazemos votos para que no mesmo sentido se uniformize a jurisprudência do STF em respeito à liberdade individual e como lição aos Tribunais e Juízes dos Estados Federados. (“O Habeas Corpus em concorrência com os demais recursos” p. 63 – destaques da transcrição).”(8)

Parafraseando PHILADELPHO AZEVEDO, que atacava, como agora, a limitação que se queria impor ao manejo do habeas corpus, causa perplexidade que diante de uma Constituição com um “texto amplo e liberal” erga-se uma súmula tão restritiva e, com a licença que se impõe pedir, tão equivocada nos seus pressupostos lógicos e jurídicos. Não é por outra razão, como veremos na seqüência, que os próprios ministros do Supremo Tribunal Federal começam a temperar o rigor da Súmula 691, deixando de fora os casos teratológicos ou de patente constrangimento ilegal.

O STF e do STJ diante da Súmula 691

As decisões mais recentes do STF vêm afirmando a possibilidade de se manejar o habeas contra o indeferimento de liminar quando a situação retratada for manifestamente ilegal ou mesmo teratológica. Veja-se a propósito a recente decisão do Min. CEZAR PELUSO que, a despeito da Súmula em comento, concedeu liminar por entender inaceitável a decisão originariamente atacada (HC nº 85.185-1-SP, DJ 9/12/04). Na oportunidade o Min. lembrou o precedente do AgRg no HC nº 84.014, do qual foi relator o Min. MARCO AURÉLIO, o qual tem o seguinte teor:

“A Súmula do Supremo Tribunal Federal revela, como regra, o não-cabimento do habeas contra ato de relator que, em idêntica medida, haja implicado o indeferimento de liminar. A exceção corre à conta de flagrante constrangimento ilegal que, uma vez não verificado, impede a seqüência do habeas corpus” (Ag. Reg. no HC n.º 84.014, DJ 25/06/04).

A hipótese decidida pelo Min. CEZAR PELUSO tinha como pano de fundo uma ação penal por crime fiscal na qual o crédito tributário ainda estava sendo discutido no âmbito administrativo-fiscal. Embora se tivesse observado ao juiz de primeiro grau essa circunstância, S. Excelência, dando de ombros ao decidido pelo Pleno do STF no julgamento do HC nº 81.611 e em vários outros casos posteriormente, salientou que as instâncias eram independentes e que o entendimento do Supremo não o vinculava (9).

Submetida a questão da falta de justa causa para a ação penal ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região, repetiu-se a mesma idéia tendo o relator negado a liminar para o simples sobrestamento da ação penal. Considerando-se que a matéria estava pacificada pelo Plenário do STF, no sentido de que inexiste justa causa para ação penal por crime fiscal enquanto o crédito tributário não estiver definitivamente constituído, ainda com o intuito de ver sobrestada a ação penal, bateram-se às portas do STJ atacando-se apenas o indeferimento da liminar. O min. Relator não apenas negou a liminar, como também negou seguimento ao writ invocando a Súmula 691 como óbice ao trânsito da pretensão. Somente aí é que os impetrantes alcançaram o Supremo Tribunal Federal para ver reconhecida a legitimidade da liminar pretendida que visava apenas o sobrestamento da ação penal diante do constrangimento ilegal representado pelo recebimento de uma ação penal sem justa causa.

A liminar pleiteada foi concedida. Teria o fato, acaso, tirado o direito de os Tribunais anteriores negarem a ordem? Evidente que não. Conquanto a decisão monocrática tenha reconhecido a densa plausibilidade jurídica do pedido, não quer isso significar que tenha extrapolado os limites da temática da liminar que, na autorizada expressão do STF, em aresto da lavra do Min. CELSO DE MELLO, “tem o caráter de providência cautelar”. Desempenhando “importante função instrumental, pois destina-se a garantir — pela preservação cautelar da liberdade de locomoção física do indivíduo — a eficácia da decisão a ser ulteriormente proferida quando do julgamento definitivo do writ constitucional” (10).

Outra hipótese interessante pode ser resumida assim: no julgamento de uma apelação envolvendo um ex-Prefeito do interior de São Paulo, por 2 votos a 1, improveu-se o apelo do réu, sendo que o voto vencido reduzia substancialmente a reprimenda, permitindo-se até um regime de pena aberto caso viesse a prevalecer quando do julgamento dos embargos infringentes. Quando ainda se aguardava a publicação do acórdão, mas passadas algumas semanas do julgamento, o relator, em decisão monocrática, determinou a expedição de mandado de prisão contra o apelante. Impetrado habeas corpus perante o STJ sob o argumento de que i) a sentença condicionara a expedição do mandado de prisão ao término do julgamento da apelação e este não se completara e ii) os embargos infringentes a serem opostos têm efeito suspensivo, o seu Relator, Min. JOSÉ ARNALDO, indeferiu o pleito liminar sob o argumento de que os recursos especial e extraordinário não têm efeito suspensivo. Alertado de que a matéria discutida era outra, S. Exa. manteve, sem maiores considerações, a decisão denegatória da liminar, mandando os autos ao Ministério Público Federal.

Ora, uma decisão completamente divorciada da causa petendi, mais do que teratológica equivale, como assinala ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO à falta de fundamentação. Seria razoável que se impedisse em um caso assim o acesso à própria jurisdição? Evidente que não. Todavia, submetido o tema em novo habeas corpus, voltado este contra o indeferimento da liminar pelo Relator do STJ, o Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE não apenas indeferiu a liminar como negou seguimento ao writ sob o argumento de que o verbete da Súmula 691 impedia o seu trânsito. Interposto Agravo Regimental, a decisão veio a ser parcialmente reconsiderada, tendo o preclaro Ministro realçado que “essa dissonância entre a causa proposta e a fundamentação de sua decisão judicial, mais que à falta de motivação, corresponde à negativa de prestação jurisdicional” (Ag. Reg. no Habeas Corpus nº 85.186-0-SP, decisão de 7/12/04, ainda não publicada).

Embora o Min. PERTENCE tivesse reconsiderado parcialmente a decisão que negara seguimento ao writ e, igualmente, tivesse concedido parcialmente a liminar apenas para determinar que a autoridade coatora decidisse a matéria nos termos em que posta, S. Exa. sustentou sua fidelidade à Súmula em estudo sob o argumento de que “se e enquanto não cancelada, segundo o procedimento regimental próprio, a Súmula há de ser observada: se a cada decisão individual ou de órgão fracionário se facultar afastar-lhe a aplicação, à vista de peculiaridades do caso concreto, o instituto da Súmula perde sua razão de ser e se restabelece a “loteria judiciária”, que a sua criação visou a abolir”. Mas, se assim é, como admitiu o trânsito do habeas impetrado contra o indeferimento da liminar pelo Min. do STJ?

Explica o Min. PERTENCE, com a argúcia que lhe é peculiar, que a motivação da Súmula 691 “é restrita, como se vê, ao descabimento do HC ao STF contra o mérito do indeferimento da liminar em HC requerido a Tribunal Superior”. Limitada, no entanto, a impetração dirigida ao STF ao questionamento da validade da anterior decisão e, portanto, não implicando na sua substituição, torna-se viável o manejo do habeas corpus perante o STF.

Com todas as venias que se impõe pedir ao Ministro PERTENCE, embora em menor extensão, na verdade, o grande magistrado do Supremo Tribunal Federal propõe uma releitura da própria Súmula 691, a qual deve ser lida, doravante, assim: “não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar” , salvo quando se questionar sua validade formal.

Bem ou mal, o que se tem nesse caso é uma aplicação mitigada da Súmula que, a não ser assim, vai permitir campear no delicado terreno do processo penal todo o tipo de abusos ou toda sorte de arbitrariedades em detrimento da liberdade alheia. Exemplo maior é o caso relatado pelo Min. PELUSO no citado HC nº 85.185, em que o paciente sujeitou-se à “loteria judiciária” das ilustres autoridades que, às suas custas, superpuseram seus doutos entendimentos ao do Supremo Tribunal Federal na questão já batida e superada da “independência das instâncias penal e administrativa” em matéria tributária. Ou bem o próprio Supremo Tribunal Federal afirma a autoridade dos precedentes do seu órgão Pleno, ou bem, por conta de um obtuso e canhestro formalismo, o cidadão será vítima do despotismo da consciência individual do julgador.

O fato, porém, é um só: a Súmula 691 precisa ser cancelada ou, ao menos, revista para que o Supremo Tribunal Federal exerça com plenitude a competência constitucional que lhe é reservada, sobretudo a concernente à tutela constitucional da liberdade, de modo a impedir situações de arbítrio.

Revista Consultor Jurídico

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