Súmula do STJ está na contramão dos atuais conceitos de registro da propriedade

Autor: Rodrigo Marcos Antonio Rodrigues (*)

 

Não se olvida de que os terrenos de marinha e seus acrescidos sejam bens da União Federal. O que parece ter sido esquecido é a necessidade de estremá-los da propriedade particular, sob pena de o Registro Imobiliário (RI) fracassar no exercício de seu papel de repositório fiel da propriedade no território. Observe-se o que diz a Súmula 496 do STJ: “Os registros de propriedade particular de imóveis situados em terrenos de marinha não são oponíveis à União”.

A princípio, a referida súmula deixa a desejar ao não reconhecer a existência de imóveis que, mesmo situados em terrenos de marinha, possam estar sob o domínio particular por terem sido alienados pela União Federal ou por conta da remição de um contrato de aforamento, neste caso consolidando-se o domínio pleno da propriedade no foreiro, ou seja, no particular.

Note-se que “estar situado” confere ao imóvel o sentido de encaixar-se no conceito de terreno de marinha, que corresponde, primordialmente, a propriedade estar localizada dentro da faixa de 33 metros de profundidade, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha da preamar-média de 1831.

Ora, como dito, a propriedade pode estar situada dentro da faixa, mas ter sido desafetada, porquanto tenha sido seu domínio pleno alienado ao particular, passando a ser um imóvel alodial, e neste caso o registro de propriedade particular é, sem qualquer margem para dúvidas, oponível à União, independentemente de o imóvel “estar situado” em terreno de marinha.

Entretanto, o ponto que ora se faz relevante ao presente ensaio é a aplicação da Súmula 496 do STJ, pelos Tribunais, nos casos em que o particular exibe seu título de registro de propriedade, que reflete um imóvel alodial desde os primórdios de seu assentamento registral, e, por outro lado, a União Federal “informa” ao juízo “estar” o imóvel “situado” em terreno de marinha, portanto sob seu domínio.

Aqui não se discute se os terrenos de marinha são ou não bens da União, pois eles o são. Entretanto, o verbo “ser” não nos parece guardar o mesmo sentido do verbo “estar”.

Para o imóvel “estar” situado em terreno de marinha, elidindo-se qualquer mera presunção, é preciso que tenha sido, em primeiro lugar, regularmente demarcado. Poder-se-ia dizer, em contraposição a essa afirmação, o seguinte: o imóvel encontra-se situado em terreno de marinha porque está posicionado na costa marítima, de frente para o mar. Ocorre que não é o estado atual das marés que determina a faixa que compreende essa espécie de bem público, mas, sim, o estado das marés no longínquo ano de 1831 ou o mais próximo de que se conseguir chegar.

A discussão poderia cingir-se, ainda, sobre o fato de tratar-se de um terreno alagado, de mangue, portanto, comprovada estaria a ação das marés. Ainda assim, nada provaria no sentido de tratar-se de terreno de marinha, frente ao já dito.

Estando regulamente concluído o processo de identificação e demarcação do bem da União, in casu o terreno de marinha, caberá a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), órgão este que administra os bens da União Federal, lavrar o termo competente de incorporação do imóvel a este sujeito de direito público, com força de escritura pública, que deverá, juntamente com a certidão de inteiro teor, plantas e outros documentos que permitam a correta caracterização do imóvel, ser apresentado ao Serviço Registral Imobiliário da circunscrição competente, a fim de que seja feito o registro.

A disposição acima não é nova, existe desde a entrada em vigor da Lei n° 9.636/98. O registro da propriedade de bens imóveis da União, assegurado o contraditório em eventual procedimento de dúvida registraria, já deveria ter sido feito em atendimento ao determinado por diplomas legais anteriores, a exemplo da Lei n° 5.972/1973.

Como se vê, não há como negar que o Registro de Imóveis atraiu a propriedade pública, em especial os imóveis da União. Se este sujeito de direito publico pretende distinguir sua propriedade da particular deverá realizar o registro.

Seria fácil abraçarmos, de forma exclusiva, a tese de que o imóvel público não precisa ser registrado no RI para constituição do direito de propriedade, a fim de encerrar qualquer discussão, sob o mantra de que “os terrenos de marinha e seus acrescidos são bens da União” garantidos constitucionalmente, ocorre que, assim como o particular, a União Federal também deve respeitar os ditames da legislação especial, a fim de fazer valer seu direito de propriedade, sob pena de, não o fazendo, estar exercendo sobre o imóvel o domínio eminente e não o patrimonial.

Posicionando a matéria à luz da Lei dos Registros Públicos, se o imóvel está registrado no RI em nome de um particular, sem qualquer menção ao fato de estar localizado em terreno de marinha, perante terceiros é uma propriedade particular, até que se prove o contrário. O registro do título permanecerá surtindo efeitos até que seja cancelado, sendo obrigação do terceiro, que sentir-se prejudicado, obter o competente provimento jurisdicional que determine o cancelamento do registro.

E ainda que possa considerar-se que o procedimento demarcatório de terras da União tenha caráter meramente declaratório e o registro da propriedade particular, no Direito Brasileiro, goze de presunção juris tantum, admitindo prova em sentido contrário, não há como negar, repita-se,  que o Registro Imobiliário tenha atraído a propriedade pública, em especial os bens da União, dado seu caráter (RI) de repositório fiel da propriedade no território e por constituir-se relevante serviço de organização técnica e administrativa apto a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos (art. 1º da Lei n° 8.935/1994).

Como já tivemos a oportunidade de expor, em obra de nossa autoria: “[…] a propriedade pública, em princípio, não precisa de registro, o Registro de Imóveis seria apenas um repositório fiel da propriedade particular, mas Afrânio de Carvalho, um dos maiores mestres da matéria registral, já previa no ano de 1982 um futuro por vir: “Nada obsta, porém, que a Administração Pública resolva futuramente subordinar todos os imóveis públicos no Registro, a fim de que este reflita a imagem completa do território do País. Essa fase provavelmente será atingida mais adiante como natural decorrência do cadastro […]” (1982). O cadastro citado é o proveniente da LRP, que inovou com a criação de uma matrícula imobiliária para cada imóvel. À época, em referência à Lei n°  5.972/1973, Afrânio comentou: “A administração federal já deu um passo nesse sentido ao mandar promover o registro dos bens imóveis da União, regulando o procedimento para isso” (1982). Compartilhamos da visão de Afrânio” (Curso de Terrenos de Marinha e seus Acrescidos. 2. ed. São Paulo: Pillares, 2016).

A nosso ver, a melhor interpretação que pode ser conferida à Súmula 496 do STJ é a de que não é oponível à União um registro de propriedade particular de imóvel para afastar o “regime jurídico” dos terrenos de marinha, todavia devendo ser observado, caso a caso, se o imóvel não foi alienado pela União Federal ao particular e, portanto, tenha perdido sua qualidade de bem público; se não foi objeto de sentença judicial com força de coisa julgada que tenha afastado o domínio da União; dentre outros fatores que necessitam ser analisados antes da aplicação do entendimento sumular.

E, dentre esses outros fatores, encontra-se o de sopesar a qualidade da informação prestada de que o imóvel ”está situado” em terreno de marinha, tendo em vista que há ato administrativo, previsto em lei, correspondente à sua incorporação ao patrimônio da União. Enquanto o terreno não tiver sido regularmente identificado e demarcado pela SPU, há apenas uma presunção de existência da linha da preamar-média de 1831 e, por conseguinte, da faixa que se constitui o terreno de marinha, não podendo se dizer, ao certo, sua exata localização no espaço físico territorial, ou seja, se corresponde ou não ao espaço que ocupa o imóvel descrito e caracterizado no registro público como uma propriedade particular.

A presunção ou não de sua existência não elide a obrigação da União em cadastrar o imóvel, por intermédio da SPU, sob competente número de Registro Imobiliário Patrimonial (RIP), em virtude de este registro fazer as vezes da matrícula do imóvel na SPU, individualizando-o perante este órgão para que assim gere a publicidade necessária a terceiros, especialmente em decorrência da falta de atendimento à disposição legal que determina o assentamento do termo de incorporação no Registro Imobiliário.

Não se diga que o terreno de marinha, por ter sido incluído entre os bens da União pela Constituição Federal de 1988, ganhou a presunção juris et de jure no que pertine à sua localização, pois seria o mesmo que sustentar que o título de propriedade decorre de lei, sem a existência do imóvel, que é o objeto dela. Em outras palavras: não há propriedade sem título, como não há propriedade sem a existência de um objeto, seja ele móvel ou imóvel. Para que o imóvel exista, na forma patrimonial (bem), é preciso que ele esteja devidamente descrito e caracterizado (demarcado) no espaço físico territorial.

 

 

 

 

Autor: Rodrigo Marcos Antonio Rodrigues  é advogado e professor, especialista em Direito Notarial e Registral Imobiliário, membro da Comissão de Direito Notarial e Registros Públicos da OAB-SP, autor do livro Curso de Terrenos de Marinha e seus Acrescidos – Laudêmio, taxa de ocupação e foro


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