Carlos Alberto do Amaral
A eficácia erga omnes e o efeito vinculante com que se pretende ornar as súmulas dos Tribunais Superiores, através de projetos de emenda constitucional em tramitação no Congresso Nacional, não constituem tema inédito, no que concerne à propalada reforma do judiciário.
Muito se tem falado, ultimamente, sobre tal matéria, mas poucos têm lembrado que a idéia surgira, já, através de projeto elaborado por Haroldo Valadão e encaminhado pelo Instituto dos Advogados Brasileiros ao Constituinte de 1946, pretendendo-se, aí, que da interpretação da lei fixada pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de recurso extraordinário, se tomasse assento de observância obrigatória pelos Tribunais e juízes pátrios. Ressurgiu, posteriormente, em 1963, no anteprojeto de Lei Geral de Aplicação de Normas Jurídicas, de autoria do mesmo professor — ainda inexitosamente. E também esteve presente o tema, como objeto do anteprojeto de Código de Processo Civil de Alfredo Buzaid, em 1964, através do qual praticamente restabeleciam-se os Assentos, ao feitio daqueles da Casa de Suplicação, vigentes à época das Ordenações do Reino.
Mais recentemente, por ocasião da pretendida revisão constitucional de 1993, intentou-se novamente conferir às súmulas tal caráter normativo, com eficácia erga omnes e efeito vinculante aos Órgãos do Judiciário e à Administração Pública em geral. Mais uma vez, porém, sem sucesso.
São abundantes, nos dias correntes, as manifestações de operadores do direito, dentre magistrados, agentes do Ministério Público e advogados, através da imprensa, dividindo-se as opiniões sobre vantagens e desvantagens da adoção de uma tal eficácia normativa aos verbetes de súmula dos Tribunais Superiores.
O tema é de extrema importância e desafia, pois, detida análise.
Relembre-se, desde logo, que tal análise não pode perder de vista que dois, basicamente, são os grandes sistemas jurídicos praticados no mundo civilizado: o romanístico-germânico (continental europeu) e o da common law. Ao primeiro deles vincula-se o sistema vigente no Brasil. Ao segundo, o aplicado nos países anglo-saxões, como Inglaterra e Estados Unidos.
Em linhas gerais, — para os efeitos deste singelo apanhado, — pode dizer-se que o sistema do commom law é preponderantemente costumeiro e não-escrito. O direito continental europeu, ao revés, consagra o primado da lei. As normas são positivadas no ordenamento jurídico, sendo indiscutível o a autoridade da norma legal, a cujo império todos devem subordinar-se.
No magistério de JOSÉ PUIG BRUTEAU (1), “o ius honorarium e a equity anglo-saxônica são, ambos, “(… ) a fenda por onde lentamente acaba penetrando um novo direito, que retifica o que se supunha definitivo e inalterável”, vendo-se, portanto, aí, nesse “sistema de previsões jurídicas paralelas ou complementares às do direito estrito”, um ponto de inequívoca afinidade, um verdadeiro elo de ligação entre a jurisdição de eqüidade do pretor romano e a equity do chanceler inglês — e, depois, o common law. As raízes, então, estariam rio ius honoraríum, surgido do modo de atuação do magistrado romano. Este, vinculava-se ao seu próprio precedente, na apreciação de questões iguais subseqüentes. Estabelecia o pretor, desse modo, seu programa de atuação, concebido inicialmente para viger durante o período de exercício da sua atividade. A pouco e pouco, todavia, os precedentes assim estabelecidos passaram a ser adotados pelos novos magistrados, daí surgindo o denominado jus honorarium. A renovação formal, pelo novo magistrado, das resoluções do pretor, constituía o edictum perpetuum. A acrescentação de novas regras dava surgimento ao edictum repentinum, enquanto a parte preservada do edito anterior constituía o edictum translaticium e à parte inovada reservava-se a denominação de edictum novum.
Esse corpo de regras, sujeitando os interessados a buscarem o direito substantivo na medida em que, no período formulário, lhes era ou não concedida a actio, era um verdadeiro sistema de precedentes, à semelhança do adotado, posteriormente, nos países anglo-saxões.
Com essa marca, enseja-se, então, a doutrina do stare decisis (..et non quieta movere), que significa, precisamente, ficar com o que já está decidido e não mover o que está em repouso.
Nesse sistema, essencialmente costumeiro (embora, hoje, aí, o direito legislado tenha ganho muito em importância, a ponto de vislumbrar-se uma tendência para convergência dos dois sistemas), natural que o precedente ostente a força normativa capaz de implicar a sua aplicação a novos casos, com os quais guarde identidade. O valor normativo do precedente, assim, assenta na exemplaridade da solução encontrada, e envolve compromisso de fidelidade à DOUTRINA esposada na decisão. Isto é, ostenta-se força normativa não apenas na parte dispositiva da decisão, mas, especialmente, na sua ratio decidendi, ou seja, nas razões que constituem a essência do julgado e que não se apresentam, dessarte, meramente argumentativas (obiter dictum), ao contrário do estabelecido, por exemplo, no art. 469 do nosso C.PC., segundo o qual, em regra, a motivação da sentença não faz coisa julgada, bem como não o faz a própria verdade dos fatos em que se fundamente o ato decisório.
Essa inadequação — que desde logo se aponta — na importação de fórmulas do direito anglo-saxão para o nosso direito é tanto mais relevante quando se constata que, inclusive, o modo de funcionamento da Suprema Corte dos Estados Unidos difere, material e formalmente, do peculiar ao nosso Supremo Tribunal Federal.
Essa diversidade se verifica, até mesmo, no posicionamento físico dos nove componentes da Alta Corte daquela Nação amiga, “todos em fila, de frente para os litigantes, seus representantes e o público”. Às quintas-feiras, a Corte se reúne para a Conference, sessão secreta em que se discutem preliminarmente os casos e são tratadas questões administrativas. Às sextas, reunem-se os juízes, também para discussão dos casos apresentados e votações de requerimentos. A Corte, que dispõe de poder avocatório, exercita, fundamentalmente, uma discrecionary jurisdiction, afastando sumariamente os processos barrados nesse juízo de admissibilidade. Pleiteado o que se denomina writ of certiorari, é necessário que quatro dos nove juízes que compõem a Corte votem pelo julgamento da questão, sem o que estará mantida, por conseqüência, a decisão anterior.
Corolário da força vinculativa do stare decisis, doutrina através da qual se impõe eficácia vinculante ao precedente, — ao qual não se sujeita, todavia, a própria Suprema Corte, — por outro lado, é a aplicação de sanções aos que incidirem em contumácia, de qualquer modo embaraçando, impedindo ou obstruindo a administração da justiça (contempt of Court). (2)
Um tal figurino não serve para o caso brasileiro, em que, como se viu, prevalece o império da lei, num ordenamento jurídico essencialmente codificado.
Isso não importa negar valor à jurisprudência, à qual se reconhece o status de fonte do direito, quer em sentido formal, quer em sentido real, — segundo expressão utilizada, dentre outros, por NELSON DE SOUZA SAMPAIO, — mas que não pode sobrepairar à lei. (3)
Em JOSÉ PUIG BRUTEAU colhe-se o ensinamento de HOLMES de que generalizar é omitir, de tal sorte que regras gerais não resolvem casos particulares. Assim, se generalizar é omitir e legislar é generalizar. o ato de julgamento consiste em enfrentar o caso concreto e nesse enfrentamento o julgador, necessariamente, acrescenta algo de novo ao geral (e, pois, ao omitido), nessa acepção criando o direito. Age o julgador, desse modo, como verdadeiro legislador do caso concreto — função a que, na asserção de HAMILTON, não pode renunciar, diante da rigidez formal a que se pretende sujeitar o direito, sob pena de transformar-se em verdadeiro “autômato” do legislador, ou, como se pretende, do Tribunal Superior. (4)
Reconhecido tal papel à jurisprudência, estaria a atividade do juiz natural, — aquele que se encontra mais perto dos fatos e do jurisdicionado, estando, por isso mesmo, mais apto à prestação jurisdicional adequada, — na hipótese de adoção do efeito vinculante, cortada cerce, ceifando-se a força criativa do direito naquilo que ela tem de mais expressivo: essa capacidade de solver as tensões sociais em presença dos fatos, através da delicada e científica tarefa de adaptação da norma ao caso.
No sistema entre nós vigente, enquadrado dentro da família romanístico-germânica, reafirma-se, de modo incontrastável, o primado da lei. A clássica fórmula de divisão dos Poderes que nos legou MONTESQUIEU, embora com inspiração em LOCKE, — o que o levou a conceber o Judiciário em manifesto segundo plano, sob o influxo do sistema inglês da primeira metade do século XVIII e dos efeitos decorrentes do arbítrio judiciário francês, — permanece, ainda hoje, plasmada no texto da Carta Maior. Embora, modernamente, não haja dúvida no sentido de que o princípio da separação de poderes deve ser entendido com temperamentos, isto é, admitindo-se que, em certa medida, qualquer um deles pratique atos originariamente de competência dos demais, — posto que aí não se compromete a independência e harmonia entre eles reinante, mas, antes, afirma-se a colaboração funcional que deles se espera, — o certo é que a distribuição das competências é objeto do Estatuto Fundamental.
De outra banda, a regra é a indelegabilidade de tais atribuições. Isto significa que a função de legislar é do Congresso Nacional, ao Judiciário reservando-se a jurisdição e ao Executivo incumbindo-se a tarefa de administrar.
Assim, algo que se desvie desse lineamento é, em princípio, atentatório ao princípio constitucional inserto art. 2º da Magna Carta.
Ao Judiciário incumbe, por outro lado, realizar o controle da constitucionalidade, que se pode, fundamentalmente, exercer de duas maneiras: o controle abstrato, em tese, — e que a generalidade dos estudiosos prefere denominar de “controle concentrado”, integrando um sistema “ misto”, a despeito da crítica que, a meu ver com razão, a propósito faz EDVALDO BRITO (5), — através das ações direta de inconstitucionalidade (ADin), e, desde a Emenda Constitucional n° 3/93, das ações declaratórias de constitucionalidade (6), de competência do Supremo Tribunal Federal; e o controle difuso, incidenter tantum, exercido pelos diversos órgãos do Poder Judiciário, na apreciação das causas que lhe são submetidas — produto, este último, do direito americano, desde a famosa questão MARBURY vs. MADISON, em 1803, em que se afirmou a supremacia da Constituição.
Guardião primeiro da Constituição, todavia, nem por Isso o Supremo Tribunal Federal é um verdadeiro Tribunal Constitucional, à maneira do modelo austríaco, — como sublinha, com autoridade, dentre outros JOSÉ AFONSO DA SILVA (7), — até porque não é o único a exercer tal atribuição, tendo feitio e modo de composição diversos, com aplicação prioritária de critérios técnico-jurídicos, e prosseguindo, afinal, a ser o Tribunal do recurso extremo, segundo nossa longa tradição jurídica. E não tem, sobretudo, legitimidade para legislar, até porque essa prerrogativa é, como se viu, do Poder Legislativo, através dos representantes eleitos pelo povo, — fonte de onde emana todo poder, — que não conferiu tal função ao Judiciário.
Ora, a eficácia erga omnes e efeito vinculante de que se pretende dotar a súmula significaria, na prática, emprestar-lhe força acima da própria lei — eis que esta se sujeita à interpretação judicial, enquanto a súmula, do modo como vem concebida no projeto, estaria imune a isso, posto com exegese já predeterminada pelas instâncias superiores.
Restaria, portanto, prática atentatória à própria democracia, no contexto do nosso sistema jurídico.
Representaria, ademais, verdadeiro retrocesso, remontando à prática dos antigos Assentos da Casa de Suplicação, próprios à época das Ordenações Manuelinas e Filipinas, reafirmados, entre nós, pela Lei da Boa Razão, de 1769.
Ofensa frontal, além disso, consumar-se-ia contra a disposição do art. 60, § 4º, esp. incisos III e IV, da Constituição Federal, eis que as denominadas “cláusulas pétreas” da Lei Maior são insuscetíveis de emenda, e aí estariam atingidas. Do mesmo modo como vulnerados restariam os arts. 1º, inc. II e parágrafo único, e 5º, incisos II (“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”), e, especialmente, XXXV (“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” — o que, na prática, necessariamente ocorreria) e LV (“aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”).
Sobre conferir à súmula efeitos para muito além daqueles objetivados pelos seus idealizadores, dentre eles o Min. VICTOR NUNES LEAL, — que a conceberam como um meio-termo, eqüidistante da rigidez dos antigos Assentos da Casa de Suplicação e da virtual ineficácia dos prejulgados, vendo-a como o repositório autorizado da jurisprudência predominante na Suprema Corte e, sobretudo, como um método de trabalho (8), visando a facilitar a tarefa de pesquisa jurisprudencial dos operadores do direito, com importantes conseqüências, embora, no plano processual, — a projetada reforma, nesse ponto, afigura-se-me (e a expressivo segmento doutrinário) totalmente inconveniente, com discutíveis vantagens, até mesmo do ponto-de-vista pragmático, e notórias desvantagens, do ponto-de-vista do exercício da judicatura e do próprio avanço da ciência jurídica, entre nós.
É, além disso, totalmente desnecessária a adoção da nova fórmula pretendida, diante da constatação indesmentlda de que a súmula goza, entre nós, de incontrastável força de persuasão, constituindo-se, destarte, como o têm reconhecido os estudiosos do tema, – num stare decisis de facto, a contribuir, nessa acepção, para adequada distribuição da justiça.
Muito mais restaria argumentar. Todavia, para os propósitos destas — reafirme-se — ligeiras considerações, já avancei além do que seria desejável. Fica o alerta quanto aos inconvenientes da reforma pretendida e o convite a que os colegas, por certo interessados no tema, desenvolvam seus estudos a propósito, contribuindo para que, afinal, se encontre o melhor caminho para pleno atendimento às pretensões de justiça dos cidadãos brasileiros.
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
(1) “A jurisprudência como fonte do direito”, trad. Lenine Nequete, AJURIS, 1977, p. 81 e seguintes.
(2) “O processo na Suprema Corte dos Estados Unidos”, Sidnei Agostinho Beneti, RT 695/270 e seguintes.
(3) “O Supremo Tribunal Federal e a nova fisionomia do Judiciário”, Nelson de Souza Sampaio, RDP 75/5 e seguintes.
(4) Ob. cit., p. 178 e seguintes.
(5) “Aspectos inconstitucionais da ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal”, na coletânea “Ação declaratória de constitucionalidade”, sob coordenação de Ives Gandara da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes, ed. Saraiva, p. 39 e seguintes.
(6) Mencionada ação foi e é alvo de severas críticas, especialmente em sede doutrinária, no que concerne à sua constitucionalidade. O estudo, que sobre ela se desenvolve, — e que não cabe detalhar, no âmbito destas ligeiras considerações, — tem íntima relação com o tema concernente à eficácia normativa e efeito vinculante que se pretende emprestar às súmulas. Em distinta oportunidade, apreciaria abordar em maior profundidade tal tema, com a largueza que o mesmo reclama. Por ora, fique apenas o registro, para que in albis não passe a forçosa constatação de que a questão enseja madura reflexão, sendo indissociável da matéria ora abordada.
(7) “Curso de Direito Constitucional Positivo”, 9ª ed., Malheiros, p. 484.
(8) Cf., a respeito, “Passado e futuro da súmula do STF”, Victor Nunes Leal, “Jurisprudência Catarinense”, n. 34. Do mesmo autor, “Atualidade do Supremo Tribunal”, Revista de Direito Processual Civil, p. 71 e seguintes.
O autor é advogado em Porto Alegre (RS), diretor do departamento de direito comercial, membro efetivo do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul.