Súmula Vinculante aniquila a legalidade e a tripartição de Poderes

Por Airton Florentino de Barros
Não é sem motivo que a comunidade jurídica se inquieta com a instituição da chamada súmula vinculante, enunciado da jurisprudência de tribunais superiores que passaria a ser obrigatoriamente obedecido pelos juízes de instâncias inferiores, de acordo com a anunciada reforma judiciária.

De início, é bom considerar que deve o sistema jurídico ser reformado com base em princípios éticos e não puramente econômicos. Todas as reformas recentes e em andamento são justificadas pela crise econômica, até confessando o governo que as faz por pressão de banqueiros internacionais. Sem dúvida que a morosidade dos processos judiciais acarreta prejuízos para os interesses empresariais, mas a justiça deve ter por fim a ordem e a paz de toda a sociedade e não de apenas alguns de seus segmentos, sob pena de grave ofensa ao regime republicano (CF, art.1º).

Representa a súmula vinculante indireta avocação de processos por tribunal superior, pois que tende a subtrair de todos os juízes de instâncias inferiores as prerrogativas de independência caracterizadoras do princípio do juiz natural (CF, art.5º, LIII e 95). Um passo para a criação de tribunais de exceção (CF, art.5º, XXXVII).

Atenta contra a democracia, porque proíbe a participação de autoridades locais na formação da política nacional, contrariando o pluralismo exigido constitucionalmente (CF, art.1º e V). Ora, é o juiz local um agente político que atua conforme a sua consciência, constituída por valores ideológicos, filosóficos, religiosos e sócio-culturais, moldados no julgamento a partir de circunstâncias fáticas do caso concreto, incluindo os costumes de características regionais. Quando exerce plenamente sua função, contribui, pois, o juiz, para a formação da jurisprudência destinada à comunidade contemporânea e, portanto, participa da produção científica inclusive no campo político.

Não seria demais afirmar que a súmula vinculante carrega consigo o sério malefício de embaraçar a natural evolução da ciência jurídica, na medida em que, obedecendo ao comando do poder central, ordinariamente conservador, fecham-se as decisões judiciais às inovações filosóficas ditadas pela academia, pela inteligência e criatividade de todos os órgãos essenciais à atividade jurisdicional do Estado.

Aliás, o regime democrático não se compatibiliza com a uniformização de decisões obedientes ao poder central, sem que seja pelo ordinário caminho da revisão do julgamento do caso concreto, ou seja, da sentença do juiz singular, sem supressão de instâncias, por todos os órgãos colegiados competentes, até chegar às cortes superiores que, só então, estarão suficientemente preparadas para o melhor exame de todas as circunstâncias da hipótese.

Não se pode, ainda, desconsiderar o fato de que, na tradição nacional, a constituição dos tribunais superiores, sobretudo da corte constitucional, não se faz por critério absolutamente objetivo e isento (CF, art.101). Pelo contrário, não são raras as nomeações de ministros baseadas na maior afinidade político-partidária com o chefe do Executivo federal. Pode ser que disso não decorra a leniência das cortes superiores em relação aos abusos governamentais. Entretanto, na maioria dos casos verdadeiramente relevantes para o interesse público que foram na história recente submetidos à última instância judicial, a decisão se aproximou mais do interesse do governo da hora do que da vontade popular, fato que explica, pelo menos em parte, o descrédito da comunidade em relação ao sistema de justiça.

Note-se, por exemplo, que enquanto o artigo 192, § 3º, da Constituição Federal, esteve em vigor, apesar da existência de milhares de processos nas cortes superiores cuidando da obrigatoriedade de observância da taxa máxima de 12% de juros pelas instituições financeiras, a matéria não foi sumulada pela Suprema Corte que, só depois de sua revogação e portanto indevidamente, acabou publicando o enunciado da Súmula nº 648.

Entulham o Supremo Tribunal Federal, ainda, como é público e notório, centenas de milhares de recursos cuidando da correção monetária do FGTS dos trabalhadores. A inexistência de súmula a respeito, se não revela uma benevolência suspeita quanto ao interesse governamental, demonstra que aquela alta corte poderia já ter diminuído bastante a carga de sua própria máquina e a angústia de quem aguarda por mais de 10 anos o julgamento da questão. E nem se diga haver aí dissidência a respeito nas instâncias inferiores, mais uma prova, aliás, de que o problema não é a falta de uniformidade nas decisões judiciais.

De nada adianta a sociedade censurar veementemente a transformação de cortes superiores em foro privilegiado de governantes, em julgamentos por ato de improbidade administrativa, se o mesmo pode acontecer pela via indireta da criação da súmula vinculante.

De outro lado, os atos da administração pública, lato senso, só serão efetivamente respeitados se moralmente legitimados pelo senso comum da sociedade (CF, art. 37), o que não ocorrerá enquanto as decisões judiciais da superior instância não se aproximarem da dita vontade popular.

A propósito, as súmulas da cúpula judiciária, quando aceitas pela população, acabam sendo pacificamente observadas por todas as instâncias judiciais e, com freqüência, até pela comunidade acadêmica. Tanto que, por vezes, servem de inspiração para o legislativo alterar ou tornar mais claro o texto da lei.

Em outros termos, inúmeras súmulas conseguiram de fato sedimentar-se na jurisprudência nacional porque convenceram pela sua força moral e não pela que lhes possa conceder formalmente a lei.

Incontestavelmente, a súmula vinculante fere o regime federativo (CF, arts. 1º e 25), porque impede cortes estaduais de exercerem em toda plenitude sua competência. É necessário compreender, pois, que o regime federativo adotado pelo Estado brasileiro se caracteriza pela renúncia de competências dos Estados em favor da União. Os Estados renunciam à soberania e a algumas competências de caráter geral, que interessam a toda a Federação, mas mantêm autogoverno com todas as competências que não foram objeto de renúncia. Reduzir, pois, a competência de tribunais estaduais equivale à quebra desse regime.

Não é só. Conforme o texto original da Constituição Federal, às cortes superiores cabe apenas reexaminar o direito, sendo exclusiva dos tribunais estaduais o exame da matéria de fato de cada caso concreto. Ora, se se entender que não pode o juízo estadual dizer que o fato não se enquadra ao enunciado de uma súmula, não se lhe estará reconhecendo plena competência. Se se entender que pode, não terá a súmula grande utilidade. O dilema revela que o melhor caminho é o de dar à súmula a força de orientação, já existente na definição atual, e não da pretendida vinculação funcional.

Com a súmula vinculante, aniquila-se a tripartição de Poderes (CF, art. 2º) e o princípio da legalidade (CF, art. 5º, II e XXXIX), porque a súmula passa a ter superioridade sobre o texto da lei que, por ser vinculante, esta sim, não deixa de se sujeitar à interpretação mais adequada às circunstâncias de cada caso conforme a consciência do juiz local.

Esvazia-se também o princípio do devido processo legal (CF, art.5º, LIII), porque ninguém será mais processado pela autoridade competente, desprovida da independência necessária para julgar o caso concreto. Da mesma forma, anulam-se o direito de ação e o contraditório (CF, art.5º, XXXV e LV), porque impedir o juiz local de analisar livremente as circunstâncias de cada caso equivale a excluir da apreciação judicial lesão de direito.

Sem consistência, ainda, o argumento de que a súmula vinculante contribuiria para conferir mais segurança jurídica à sociedade. Ora, que autoridade moral têm, para dizer que desejam dar mais segurança jurídica ao povo, os governantes que rasgaram a Constituição Federal, mais significativo símbolo da segurança e estabilidade jurídica do país, para fazer as recentes reformas com ofensa a cláusulas pétreas por meio de inadmissíveis emendas (CF, art. 60, § 4º)?

Observe-se, de outro lado, que menos de 10% dos processos comuns chegam ao crivo da superior instância que, para a redução de seus serviços já conta com critérios legais e regimentais que evitam o conhecimento de recursos que contrariam súmulas e facilitam o provimento daqueles por elas amparados (art. 325, II e 358, IV, RISTF).

Aliás, não é a súmula vinculante a solução para o assoberbamento do Poder Judiciário que, na verdade, está emperrado em todas as instâncias, não por ausência de uniformidade das decisões judiciais, mas por falta de recursos materiais e humanos para bem desempenhar sua importante tarefa.

Além disso, a indevida judicialização de procedimentos que poderiam ser presididos por outros órgãos da administração, o excesso de ações e recursos envolvendo o próprio Estado, a ausência de políticas públicas de distribuição de riqueza, emprego, habitação, saúde, educação, segurança, assistência e justiça social, de atribuição dos outros poderes, faz com que o Judiciário seja mais demandado do que seria numa sociedade que não vive a crise em que se encontra o Estado brasileiro.

Se as decisões políticas, para a reforma do Estado, forem tomadas sempre e exclusivamente sob o prisma da economia, a verdade é que se pode até extinguir o Judiciário. Sem dúvida que a redução dos três a apenas dois poderes reduzirá fatalmente as despesas públicas.

Quem sabe seja essa a intenção dos governantes, induzindo a mídia a acreditar na eficácia da reforma. Cria-se a súmula vinculante. Depois, quando os tribunais superiores tiverem sumulado todos os artigos de lei, pode o Judiciário ser extinto, porque qualquer autoridade do poder executivo poderá exercer a jurisdição. Mais ainda, sumulados todos os dispositivos, pode-se encomendar um programa de computador para, no lugar do juiz natural, julgar todos os pleitos, como lamentavelmente tem acontecido com as infrações de trânsito. E, daí por diante, até se chegar à conclusão de que a monarquia absolutista ou a ditadura seria mais econômica, por dispensar também o legislativo.

Em outras palavras, se for menos dispendioso, é melhor que o povo renuncie a sua qualidade de civilizado.

Aliás, se fosse tão fácil, bastaria que se cumprisse a força vinculante da própria lei.

Airton Florentino de Barros Procurador de Justiça em São Paulo, professor de Direito Comercial e integrante do Movimento do Ministério Público Democrático.

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