Supremo chancelou ânsia estatal de vigiar e punir os indivíduos

Autores: Glauco Salomão Leite e Geilson Salomão Leite (*)

 

A partir da segunda quadra do século passado, temos assistido à expansão da jurisdição constitucional em várias partes do mundo como um desdobramento institucional de um novo paradigma de Estado de Direito, que, antes de ser centrado nas leis e nos códigos, baseia-se numa Constituição. Daí a denominação “Estado constitucional”. Nesse contexto, o fortalecimento das cortes se deu, sobretudo, pela necessidade de garantir a proteção efetiva dos direitos e garantias fundamentais, os quais não mais podiam ficar à mercê do jogo de poder que se estabelece nas arenas políticas. Eis o ethos da função jurisdicional no Estado constitucional: a tutela dos direitos e garantias fundamentais, especialmente contra eventuais maiorias políticas.

Por isso, nessa semana, a comunidade jurídica foi surpreendida pelo STF, justamente o órgão que, por incumbência da própria “Constituição cidadã”, deveria resguardar os direitos que ela consagra. As liberdades públicas sofreram um primeiro e contundente ataque com a decisão que, ignorando a literalidade do texto constitucional, permitiu o cumprimento provisório da pena a partir de decisões condenatórias prolatadas por tribunais de segunda instância. Cedeu ao populismo penal. Desta feita, nossa corte constitucional flexibilizou o importante direito individual à privacidade ao permitir a quebra do sigilo bancário por ordem direta da administração pública, sem necessidade de autorização judicial para tanto.

Discutia-se, na ocasião, a constitucionalidade da Lei Complementar 105/2001, cujo artigo 6º dispõe que: “As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente”. Seu parágrafo único estabelece um dever de sigilo para a autoridade fazendária nos seguintes termos: “O resultado dos exames, as informações e os documentos a que se refere este artigo serão conservados em sigilo, observada a legislação tributária”.

Como premissa do Estado constitucional, é a lei que deve girar em torno dos direitos fundamentais, e não o contrário. Assim, a inviolabilidade do sigilo de dados, prevista no artigo 5º, XII, da CF, do que decorre a proteção do sigilo de informações bancárias, fiscais e telefônicas das pessoas, deve funcionar como o parâmetro normativo e limite de eventuais intervenções estatais, devendo-se ressaltar, ainda, que tais prerrogativas constituem um desdobramento do próprio direito à intimidade e à vida privada (artigo 5º, X, da CF). Como parte de seu âmbito de proteção, essas cláusulas constitucionais asseguram o direito à intimidade e à vida privada em múltiplos aspectos (pessoais, familiares e negociais) e compõem o próprio núcleo dos direitos da personalidade e autonomia da vontade. Desse modo, o indivíduo tem o direito de manter consigo informações acerca de sua vida particular e de só compartilhá-las com terceiros mediante seu próprio consentimento. Em sua dimensão negativa, o direito à privacidade projeta um dever de obediência tanto para outros particulares (eficácia horizontal), que não podem ter acesso a informações privadas sem autorização de seu titular, quanto para o próprio Estado (eficácia vertical), cujos órgãos não podem se valer de seus poderes para monitorar, ter acesso e/ou utilizar tais informações, a não ser nas hipóteses constitucionalmente legítimas. A regra, portanto, é a não intromissão na vida privada das pessoas.

É certo, também, que nosso sistema constitucional não considera o direito à privacidade como absoluto, de modo que o sigilo bancário pode sofrer relativizações. Porém, importa destacar, a invasão na vida privada de alguém constitui exceção e, por isso mesmo, deve ser compreendida com cuidados. Assim, a quebra do referido sigilo pode ser decretada, mas não por qualquer ato estatal, e sim por ordem judicial, devidamente motivada. Apenas ao juiz, então, compete avaliar e justificar a necessidade da quebra do sigilo bancário.

A necessidade de autorização judicial afasta a possibilidade de outros órgãos do Estado terem poderes para quebrar o sigilo bancário do cidadão-contribuinte, como os tribunais de Contas, a polícia judiciária e o próprio Ministério Público. Tanto é assim que apenas às comissões parlamentares de inquérito, porque possuem “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”, reconheceu-se a competência para a quebra de sigilos sem ordem judicial. Trata-se de exceção expressamente prevista no texto constitucional (artigo 58, parágrafo 3º). E mais: exceção que confirma a regra.

Além disso, não se pode desconsiderar que a necessidade de autorização judicial para a quebra do sigilo bancário fortalece a proteção desse direito fundamental, evitando ou mitigando os efeitos de uma indesejada hipertrofia ainda maior do Estado em relação ao contribuinte. Nas relações tributárias, é bom lembrar, a administração pública detém muito poder. Cobra tributo elevadíssimos, impõe sanções políticas, aplica multa confiscatória, restringe a concessão de certidões de regularidade fiscal, exige garantias e impõe arrolamentos abusivos aos contribuintes, dentre outras medidas não menos gravosas. A presença da jurisdição constitucional é fator de equilíbrio a favor do contribuinte.

Por ocasião da decisão, o ministro Dias Toffoli alegou que, a rigor, referida lei não autorizava quebra de sigilo pelos órgãos fazendários, o que a tornaria constitucional. Considerando que, por força da própria lei, defendeu o ministro, tais órgãos administrativos devem manter o sigilo das informações fornecidas pelas instituições financeiras, então haveria uma “transferência de sigilo” (dos bancos para a administração). Entendemos que esse argumento é meramente retórico e envolve um jogo de palavras, cujo intuito é esconder a violência institucional praticada em desfavor do cidadão. Ora, o núcleo essencial do direito à privacidade consiste em dividir informações pessoais apenas com quem o próprio titular dessas informações desejar. Portanto, decorre desse direito, por exemplo, o ato voluntário de alguém divulgar nas redes sociais seus extratos bancários, movimentações financeiras, faturas de cartão de crédito, aplicações etc. Todavia, o que a LC 105/2001 estabelece é que os órgãos fazendários terão acesso a dados bancários contra a vontade de seus titulares. A circunstância de que esses órgãos terão que manter o sigilo das informações recebidas não apaga o fato de que elas foram obtidas sem ordem judicial e sem anuência do cidadão-contribuinte. Sendo mais claro, o cidadão não anuiu que o banco com o qual ele possui conta bancária repassasse suas informações a um órgão administrativo. E o direito ao sigilo é oponível ao próprio Estado-administração.

Por isso, estamos diante de um lamentável episódio em que o STF chancelou a ânsia estatal em vigiar e punir os indivíduos, sem respeitar suas garantias constitucionais. Pragmatismos e argumentos consequencialistas não são fundamentos adequados para relativizar direitos fundamentais onde a CF não os relativiza. Então, não é de se aceitar que, em nome de uma suposta maior eficiência administrativa, afaste-se a atuação judicial como condição para a quebra do sigilo bancário. Ninguém está a defender desvios ou condutas ilícitas cometidas por maus contribuintes, muito menos sua impunidade. Tampouco se está sustentando barreiras instransponíveis que pudessem frustrar as pretensões fiscalizatórias do Estado. Como se disse anteriormente, importantes órgãos como tribunais de Contas, Ministério Público e polícia judiciária não possuem legitimidade para quebrar os sigilos das pessoas, e nem por isso se diz que tal fator obstaculiza o regular desempenho de suas funções constitucionais. O mesmo vale para o Fisco. Ademais, caso qualquer desses órgãos entenda necessária a quebra de algum sigilo, basta provocar o Poder Judiciário, que, enquanto instituição imparcial na  relação “investigador-investigado”, terá condições de bem avaliar a real necessidade da invasão da privacidade de alguém. E, estando presentes as exigências legais, de certo autorizará a quebra. Ocorre que, diante da decisão do STF, se por opção do legislador a proteção da privacidade pode ser flexibilizada a favor dos órgãos fazendários, não deverá causar maiores surpresas se daqui em diante forem aprovadas outras leis autorizando os demais órgãos estatais a quebrarem o sigilo das pessoas. Vê-se, então, que estamos diante da ponta do iceberg para um completo esvaziamento do direito à privacidade.

Observando a posição do STF sob outro prisma, qual seja, de seu papel institucional na proteção da ordem constitucional, a decisão simboliza um grave retrocesso. Caso a Corte houvesse declarado a inconstitucionalidade do artigo 6º, da LC 105/2001, poder-se-ia levantar questionamentos acerca do caráter antidemocrático da judicial review e da conhecida “dificuldade contramajoritária” do tribunal por ter invalidado uma opção política aprovada pela maioria dos representantes eleitos. Todavia, no âmbito de um Estado constitucional, as constituições devem funcionar como instrumentos garantistas, inclusive voltando-se contra a vontade política de uma maioria ocasional. Nesse paradigma, as decisões majoritárias apenas são legítimas se não agredirem os direitos fundamentais, sob pena de absolutizar a regra da maioria. A função de um tribunal como o STF é exatamente dar concretude aos limites que as Constituições impõe à política.

Portanto, a lição que o constitucionalismo contemporâneo nos oferta é a de que o dogma rousseauniano da infalibilidade das leis caiu por terra, e as tiranias legislativas e majoritárias podem ser tão violentas quanto a tirania dos governos. Sendo assim, o jurista italiano Mauro Capelletti aponta os dilemas que a jurisdição constitucional enfrentaria nos novos tempos: a) manter-se nos estreitos limites da função judicial do século XIX, logo submissão à “vontade da lei” ou b) elevar-se ao nível dos outros poderes, convertendo-se no “terceiro gigante”, para controlar o legislador-mastodonte e o administrador-leviatã. Parece que o STF fez sua escolha.

 

 

 

 

Autores: Glauco Salomão Leite é advogado e professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco, da Universidade Federal da Paraíba e da Faculdade Damas de Instrução Cristã. Possui mestrado em Direito Constitucional pela PUC-SP e doutorado em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco. É membro do grupo Recife de Estudos Constitucionais.

Geilson Salomão Leite é advogado e professor de Direito Tributário da Universidade Federal da Paraíba e do Centro Universitário de João Pessoa. Possui doutorado e mestrado em Direito Tributário pela PUC-SP.


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