Autor: José Jácomo Gimenes (*)
O ministro Luís Roberto Barroso publicou artigo na Folha de S.Paulo(23/2/2018), transcrito pela ConJur, no qual reconheceu excessos de processos no Supremo, excessos de decisões monocráticas, oscilação de jurisprudência, pedido de vista sem limites e excesso de poder do relator e presidente para definir data de julgamento.
O professor Lenio Luiz Streck, mesmo reconhecendo a importância da manifestação para o discurso público, apresentou duas divergências: a primeira sobre a solução apresentada pelo ministro Barroso para diminuição dos processos no Supremo, a segunda sobre a crítica do ministro às ideias conservadoras e o papel iluminista do Supremo.
É necessário destacar a relevância desse diálogo para aprimoramento do Judiciário. Dois luminares da academia jurídica debatendo problemas do Supremo que afetam toda a sociedade e emperram o desenvolvimento do país. Vamos tentar aprofundar o debate sobre o problema principal e determinante dos demais, o excesso de processos no Supremo.
Um fato é certo, reconhecido pelo ministro Barroso e não contestado pelo professor Lenio: o Supremo está inviabilizado em suas funções pelo excesso de mais de 100 mil processos por ano. Destoa de todas as supremas cortes do mundo civilizado. A quantidade de recursos de casos particulares inviabiliza a função de corte constitucional.
O jurista Sacha Calmon concorda. Recentemente criticou essa anomalia do Supremo. Apontou que a nossa suprema corte “julga tudo”. Lembrou que os americanos perceberam e evitaram esse vício, delimitando o poder da Suprema Corte às questões relativas à inconstitucionalidade das leis e atos normativos em face da Lei Maior.
Relatório oficial registra que 96,6% dos processos recebidos são recurso extraordinário, recurso extraordinário com agravo, Habeas Corpus e reclamação para cumprimento de decisão. Destaque para o recurso extraordinário com agravo, com 71,1%, recurso misto que reclama o encaminhamento do respectivo recurso extraordinário ao Supremo.
Para limitar o número de processos no Supremo, o ministro Barroso lançou a ideia de conceder discricionariedade ao tribunal para escolher os recursos que vai julgar em um ano, transitando em julgado os demais. O professor Lenio respondeu com artigo interrogativo: “E o que seria a discricionariedade transparente do ministro Roberto Barroso?”.
A solução apontada pelo ministro Barroso aproxima-se do modelo americano, que permite à Suprema Corte escolher os casos que entende importantes para julgar. O precedente histórico e a função política do Supremo permite a defesa dessa ideia, confiando na elevada cultura e experiência dos magistrados maiores para escolha de temas fundamentais.
Outras soluções são possíveis. Sustentamos recentemente, no texto “Recurso extraordinário e RE com agravo devem ser extintos” (ConJur, 7/2/2018), a proposta consistente em transferir toda a competência recursal do Supremo para os tribunais superiores, especialmente o STJ, que passariam a ser a última instância recursal, assim concluindo todos os processos particulares em, no máximo, três instâncias.
Nesse modelo, o controle constitucional das decisões dos tribunais superiores pelo Supremo poderia ser feito, por exemplo, de forma concentrada, com ampliação da ação direta de inconstitucionalidade, permitindo que alguns legitimados constitucionais representativos promovam ação reparadora contra jurisprudência dos tribunais superiores, com um número mínimo de demandas, como ocorre no controle de constitucionalidade de leis e atos normativos, permanecendo o Supremo nos limites de verdadeira corte constitucional, como deve ser.
Esse procedimento supera a crítica do professor Lenio contra o poder de escolha e discricionariedade na solução apresentada pelo ministro Barroso. Ao mesmo tempo, mantém o Supremo em situação passiva, aguardando adequada provocação por representantes democráticos da sociedade, experiência já consolidada nas ações de inconstitucionalidade das leis e atos normativos.
A redução da competência vai permitir que o Supremo foque atuação nas questões fundamentais, produzindo rapidamente jurisprudência constitucional definitiva, espraiando essa eficiência para o sistema judicial e fortalecendo a confiança na Justiça. A modernidade exige decisões rápidas e sistemas regulatórios estáveis.
Por outro lado, a redução também vai permitir que a corte suprema funcione na sua forma correta, colegiada, diminuindo a quantidade exagerada de decisões liminares, que muitas vezes não representam a posição do Plenário do Supremo e tanto estrago causam à segurança jurídica e ao Judiciário.
A mudança é uma revolução necessária, como muito bem explicou o ministro Barroso na entrevista “Precisamos fazer uma revolução no modo como o Judiciário funciona”, ao jornal O Estado de S. Paulo (4/9/2016). Destacou: “É preciso criar uma cultura de que o devido processo legal se realiza em dois graus de jurisdição, o primeiro e o segundo”.
O ilustre jurista Vladimir Passos de Freitas, ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, colunista da ConJur, também tem denunciado a falência do sistema judicial. “O problema está no sistema. O Brasil, outrora orgulhoso de seu sistema judicial, está caindo em descrédito. A demora dos processos, fruto de 4 instâncias, faz com que nada termine antes de 10 anos. No cível e no crime” — confirmando a necessidade de mudança.
Recentemente (3/3/2018), o jurista Oscar Vilhena Vieira, professor de Direito Constitucional da FGV-SP, doutor pela USP e pós-doutorado por Oxford, afirmou que “o Supremo, que vinha exercendo uma função moderadora, passou a se comportar de forma cada vez mais errática, contribuindo para aumentar a insegurança e a instabilidade política”.
O professor Conrado Hübner Mendes, doutor em Direito e Ciência Política da USP, é mais veemente. Sustenta “que a corte, numa espiral de autodegradação, passou de poder moderador a poder tensionador, que multiplica incertezas e acirra conflitos”.
O estado judicial presente pode ser uma zona de conforto para alguns poucos interesses setoriais, permitindo dezenas de recursos processuais, amplo campo de trabalho e espaço de poder, mas certamente não é para a sociedade brasileira, que merece um sistema judicial muito mais eficiente e justo.
Excesso de competência do Supremo e quatro instâncias de julgamento são defeitos estruturais incontornáveis. Devem ser prioridades. E é bom lembrar que não serão resolvidos com reformas na legislação infraconstitucional, códigos de processo novos, procedimentos e gestão, por mais eficientes que possam ser.
A história ensina que o desenvolvimento e s pujança da nações depende do desenho e da estruturação das suas instituições fundamentais, entre as quais o Judiciário, órgão responsável pela pacificação social. As crenças nas instituições determinam as escolhas humanas, induzem a aprender, evoluir e contribuir para o crescimento.
É necessário e urgente recompor a autoridade do Supremo. O primeiro passo é a fixação de competência processual adequada à uma suprema corte, via reforma constitucional, na quantidade em que possa cumprir a sua fundamental função estatal com dignidade institucional e eficiência exemplar.
Movimentos de redução da competência do Supremo, redução do número de instâncias e dos recursos processuais, conclusão dos processos subjetivos na terceira instância e regulamentação dos poderes dos ministros do Supremo devem ser fortalecidos. A sociedade precisa cobrar dos parlamentares mudança nesses pontos, mas é dever do Ministério Público, OAB, magistratura, juristas e operadores do Direito liderar a revisão e retirada desses entraves, para o bem do Brasil.
Autor: José Jácomo Gimenes é juiz federal e professor do Departamento de Direito Privado e Processual da Universidade Estadual de Maringá (PR).