Supremo Tribunal Federal errou ao afastar hediondez do tráfico privilegiado ImprimirEnviar25502 10 de dezembro de 2016, 7h13

Autor: Marco Antônio Ferreira Lima (*)

 

Inicialmente, longe de um viés de pensamento dos que defendem teses de inteira e máxima neutralidade de todos os procedimentos jurisdicionais, entendemos que a todo juiz é dado o poder de reconhecer a inconstitucionalidade de lei em sentença por meio de controle difuso, também denominado como controle descentralizado, seja por via de exceção ou meio indireto.

Esse é um controle por via incidental (incidenter tantum), exercido pela provocação de uma das partes ante o caso concreto ou de ofício pelo próprio julgador.

Foi o que o Supremo Tribunal Federal fez ao se debruçar sobre a matéria no que tange o regime integralmente fechado na lei dos crimes hediondos, no aborto de feto anencéfalo, na permissão do aborto até o terceiro mês gestacional, e, agora, ao reconhecer a inconstitucionalidade do regime fechado aplicado no crime de tráfico privilegiado (texto não expresso em lei).

Não poderia ter agido dessa maneira por expresso vício de forma. Habeas Corpus não tem elasticidade legislativa. O que poderia ter feito de forma estritamente técnica e legítima, seria como controle difuso constitucionalidade, aliás como fez nas situações mencionadas que envolviam lei.

Ocorre que quem estabelece a hediondez do crime não é a Lei 8.072/90 e sim a própria Constituição Federal.

Ou seja, a decisão do Supremo Tribunal Federal não está reconhecendo a inconstitucionalidade de lei infraconstitucional, mas sim, de matéria expressa, prevista na própria Lei Maior, no seu pilar que é o artigo quinto.

Incorre, pois, em erro.

Não é de hoje que nossa Corte Excelsa vem fugindo de suas atribuições de guardião (não detentor) da Constituição Federal e invadindo a seara de outros poderes, consagrados desde a teoria da tripartição de poderes (Montesquieu).

É certo que entre os três poderes (independentes e harmônicos entre si) não há uma restrição plena de postura, entretanto, há seguramente uma linha dura quando versar sobre invasão de matéria restrita.

Não pode o STF, diante de eventual omissão legislativa, tomar as vezes do Congresso Nacional e vice-versa.

Portanto, o STF, com a sua decisão, por maioria de votos, cujo ministro Roberto Barroso chegou mesmo a sugerir tornar vinculante, chega a atingir a esfera legislativa primária, qual seja, dar inconstitucionalidade a própria Magna Carta, que é quem dá inequívoca hediondez ao crime de tráfico ilícito de entorpecentes e que, como acima citamos, não advém meramente de lei infraconstitucional, mas sim a própria constituição em seu artigo 5º, XLIII.

Quem dá a hediondez ao tráfico ilícitos de entorpecentes é a própria Constituição, e não a Lei 8.072/90.

O afastamento da hediondez do tráfico de drogas ainda que por equiparação, somente poderia ser feito por intermédio de poder constituinte originário, porque se trata de cláusula pétrea, não passível sequer de emenda constitucional, conforme inteligência do artigo 60, §4º, IV, que veda proposta de emenda tendente a abolir qualquer que sejam os direitos e garantias individuais estabelecidos no rol do artigo 5º.

O julgamento do STF que definiu que o tráfico de drogas “privilegiado” não será considerado crime hediondo, adveio do HC 118.533 [1].

Polêmicos têm sido os julgamentos proferidos pela mais alta corte pátria, como no caso da ADC 43 e ADC 44 que reconheceu que não fere a prisão antecipada após julgamento em 2ª instância, mesmo quando da decisão ainda possa haver recurso, conforme artigo 5º, LVII, que diz em texto límpido, que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Na decisão do HC 118.533 proferida pelo plenário em sua maioria, que concedeu a ordem de ‘habeas corpus’, veio a contrariar a própria jurisprudência dominante da corte, que vinha se formando acerca do entendimento de que o tráfico “privilegiado” não afastava a hediondez do crime, como se verifica dos temas julgados no HCs 121.255, relatoria do Ministro Luiz Fux, DJe 1.8.2014; 114.452AgR/RS, relatoria do Ministro Luiz Fux, DJ 8.11.2012; 118.577, relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, DJe 21.11.2013; e 118.351DJe 21.11.2013; e 118.351, e, também da relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, DJe 16.6.2014.

Importante ressaltar que a pedido de vista, mudaram os seus votos no referido julgamento, os ministros Edson Fachin, Teori Zavascki e Rosa Weber, ficando vencidos o ministro Luiz Fux, que manteve seu posicionamento anteriormente adotado (os ministros Dias Toffoli e Marco Aurélio, não se pronunciaram).

O fato é que a Constituição Federal, ao tratar dos crimes hediondos, deu pontos de partida para que o legislador, por meio de Lei Infraconstitucional, cuidasse dos crimes em espécie contra o Estado, Dignidade da Pessoa humana e Saúde Pública, de modo a impedir que a própria Lei 8.072/90 por exemplo, tratasse lesão corporal de natureza leve, como crime hediondo.

Assim, a nosso ver, não poderia o Supremo Tribunal Federal contrariar a própria Constituição Federal.

Os fundamentos levados pelos nobres julgadores, denotam impropriamente o exercício de prerrogativa e iniciativa que caberia tão somente (e exclusivamente, de forma não concorrente) ao legislativo.

Depara-se em um ativismo jurídico, que não pode prosperar, uma vez que o dispositivo constitucional nos parece claro (da mesma forma com o já explanado acerca da ADC 43 e ADC 44), não cabendo semânticas contrárias neste sentido.

Sob este prisma, no tocante às garantias constitucionais, se deve substituir o “ser” pelo “deve ser”, sempre, pois de maneira inequívoca, assim desejou e garantiu o constituinte de 1988 (repita-se, de forma originária).

A questão não é tão simples como parece.

Como explicar ao jurisdicionado e mesmo aos juízes de todas as demais instâncias, que a jurisprudência da Corte Excelsa muda tal como a composição do tribunal, entretanto, pelos mesmos julgadores?

No que tange até mesmo a repentina mudança de votos, e não que não caiba a qualquer julgador, que aliás deve, sempre exercer uma nova reflexão acerca de tema debatido, como explicar aos inúmeros profissionais e acadêmicos do mundo jurídico, que a mais alta corte brasileira, que deveria ser exemplo de uma jurisprudência mais unificada como preceito de segurança jurídica e menos volátil em um período intertemporal demasiadamente curto, além de manejar afronta ao Texto Constitucional a que compete zelar, altere seus posicionamentos e passe a legislar?

A questão em si não é a de exercer simples controle difuso de constitucionalidade, mas sim, agir como se poder constituinte originário fosse diante de reiteradas omissões legislativas.

Em suma, quem estabelece a hediondez do tráfico de drogas é a Constituição Federal e não a Lei 8072/90, pelo que não pode o STF afastá-la em simples julgamento de HC com força legislativa e com sinais de vinculante.

Em nenhum momento se deixa de reconhecer a incongruência verificada quanto ao tráfico privilegiado com pena possível, muitas vezes inferior a dois anos, e que as mesmas cortes não permitem penas restritivas e regime que não o fechado.

Entretanto, não será por meio de invasão de esfera de poderes que se resolverá a questão. Portanto, não poderia o STF legislar contra expresso texto constitucional, posições ideológicas á parte.

 

 

 

 

Autor: Marco Antônio Ferreira Lima é procurador de Justiça Criminal do Estado de São Paulo e Professor Universitário.


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