Supremo Tribunal Federal não pode ter papel iluminista no Estado

Autor: Bruno Torrano (*)

 

É possível atribuir um papel “iluminista” ao Supremo Tribunal Federal?

O professor Luís Roberto Barroso acredita que sim. Segundo ele, além das funções contramajoritária e representativa, o STF detém o papel institucional de servir como “vanguarda iluminista” da sociedade como um todo. Em alguns momentos específicos, agindo de forma mais ativa, deve o tribunal “promover, em nome de valores racionais, certos avanços civilizatórios e empurrar a história”[i].

No Brasil, ainda nas palavras do ministro, o exemplo paradigmático dessaatitude moralizante, que deve ser realizada com “grande cautela, parcimônia e autocontenção”, é a decisão proferida na ADPF 132, que deu um “empurrãozinho legislativo”[ii] na questão da união estável homoafetiva.

Mas precisamos realmente de um poder estatal dito “iluminista”? Necessitamos de uma cúpula, formada por 11 magistrados, que tenha como uma das atribuições “empurrar”, de cima para baixo, a sociedade civil para uma determinada direção ética considerada como indispensável à evolução de consciência?

É lamentável que muitos estejam dispostos a responder “sim” a essa questão. Desde logo, saliente-se: a tese da “vanguarda iluminista” parte de algumas premissas problemáticas que são simplesmente presumidas, por seus defensores, como verdades objetivas. Primeiro, supõe que o Supremo Tribunal Federal compõe-se (e tem a potencialidade, ao menos em curto prazo, de vir a compor-se) apenas, ou em sua maioria, por indivíduos cuja erudição, conhecimento de fatos relevantes e maturidade ética legitimam a tomada de uma postura ativa de educação cívica.

Segundo, presume a superioridade absoluta do conhecimento especial (special knowledge) adquirido por magistrados nas faculdades de direito em detrimento do conhecimento mundano (mundane knowledge) difundido na experiência de milhões de indivíduos[iii] e canalizados pela participação política em grandes assembleias de representantes do povo.

Terceiro, admite que termos vagos, abstratos e extremamente controversos como “justiça social” ou “progresso moral” só podem ser interpretados com êxito quando vinculados a uma única vertente ideológica — aquela com a qual o magistrado concorda. E quarto, presume que o mundo é um ambiente geralmente receptivo às vontades de mudanças “cima-baixo” de uma cúpula estatal centralizada.

Há algum autoritarismo[iv] nisso tudo. E duas são as razões.

Primeiro: uma das maiores preciosidades morais da existência de um sistema normativo distinto e pretensamente autoritativo como o “direito” diz respeito aos limites que as formas jurídicas impõem aos poderes constituídos. Os atributos formais do direito não somente colocam os detentores do poder diante de uma lista de restrições às suas vontades pessoais, como também repousam sobre a ideia de que sujeitos de direito são, necessariamente, agentes moralmente autônomos capazes de interagir com a existência de regras gerais e abstratas e com os processos comunicativos que delas derivam[v].

Nessa linha de raciocínio, infere-se que, na maioria das vezes, o problema do ativismo judicial não tem a ver com o “quê” da solução proposta pelo magistrado — que pode até ser, de fato, tida pelo teórico ou magistrado como mais razoável ou justa do que a legislativamente construída —, e sim com o “como” essa solução entra no ordenamento jurídico.

Segundo: a teoria da democracia faz-nos curvar diante de um fato social empiricamente descritível: desde o mais humilde vendedor de pipocas até o mais gabaritado pós-doutor em filosofia, os cidadãos de uma sociedade como a brasileira, ao argumentarem de boa-fé, discordam entre si sobre quais são os rumos políticos e éticos adequados para o futuro comunitário.

E tanto a relação co-originária entre democracia e direitos (morais) quanto as regras procedimentais de participação política fundamentam-se na ideia de que não existe, nesse desnível de erudição ou formação acadêmica, nada que permita a imposição da visão de mundo daquele que tem mais estudo — ou um cargo relevante na carreira pública — àquele que tem menos preparo intelectual.

Como bem salienta Jeremy Waldron, o “respeito pelas opiniões e consciências dos outros significa que um único indivíduo não detém o tipo de controle sobre resultados políticos que parece ser prescrito por sua consciência e seus próprios princípios”[vi].

Todavia, uma vez iniciado o processo de “vanguarda iluminista”, não há mínimo espaço para a noção democrática de respeito às formas do direito – nem no que concerne à competência constitucional para realização de grandes inovações legislativas, nem no tocante à necessária submissão a instrumentos de freios e contrapesos. O Poder Estatal — no caso, o STF —, imiscui-se na prerrogativa de delimitar a extensão de sua própria autoridade, sem se sujeitar a nenhum limite externo (nem mesmo os limites do texto constitucional).

Afinal, se seguirmos à risca o pensamento de Barroso, teremos invariavelmente um, e só um, critério para determinar se um caso pode ou não servir como “mola moral” da sociedade: o juízo individual, seletivo e interna corporis de “cautela, parcimônia e autocontenção”, feito por ele mesmo[vii] ou, no limite, pelo colegiado da instituição jurídica que integra — o Supremo Tribunal Federal.

Caso essa tese seja levada realmente a sério, o cenário piora: não há mínimos elementos de previsibilidade quanto ao conteúdo substantivo que pode vir a ser atribuído ao vago termo “progresso moral”. Diferentes magistrados com diferentes concepções pessoais de Justiça, visando “empurrar” a sociedade para “avanços civilizatórios”, podem manipular a contento a expressão, produzindo consequências diversas e conflitantes entre si em um espectro que varia desde o moralmente próspero reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar até a perigosa violação de direitos e garantias fundamentais em casos penais permeados por forte clamor público de punição.

Nesse debate, convém lembrar a lição de Scott Shapiro: um genuíno Estado de Direito só pode florescer onde os intérpretes das normas jurídicas possuem autodisciplina. Para que a lógica democrática do planejamento social bem funcione, magistrados devem “resistir ao impulso de tomar a interpretação jurídica como um convite para filosofar sobre as grandes questões morais e políticas de seus tempos”[viii].

A “vanguarda iluminista” proposta por Barroso é a defesa mais nítida do oposto: mais do que convidar, ela instiga o Supremo Tribunal Federal — e, creio, por arrastamento todo o Poder Judiciário — a arrogar para si, de tempos e tempos, um papel de fiscal e ortopedista da moralidade pública, selecionando casos paradigmáticos que podem servir como “impulso moral” da sociedade na direção do “progresso”.

 

 

 

Autor: Bruno Torrano é mestre em Filosofia e Teoria do Estado, especialista em Direito Penal e Criminologia e assessor de ministro no STJ.


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