Autor: Hugo Crepaldi (*)
A elevada quantidade de demandas de busca e apreensão regidas pelo Decreto-Lei 911/69 em trâmite em nossos tribunais revela que a alienação fiduciária em garantia continua sendo muito utilizada para viabilizar a aquisição de bens móveis e, ainda, que o inadimplemento do devedor fiduciante permanece bastante frequente.
Com efeito, por meio da alienação fiduciária em garantia, tem-se a transferência da propriedade resolúvel da coisa ao credor fiduciário, com a finalidade de garantir o cumprimento da obrigação ajustada entre as partes. Há também o desdobramento da posse, tornando-se o devedor fiduciante possuidor direto do bem. Ocorrendo o pagamento integral da dívida, resolve-se a propriedade fiduciária, consolidando-se nas mãos do então devedor a propriedade plena do bem. Todavia, em caso de inadimplemento, o credor poderá se valer da ação de busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, observando as disposições do Decreto-Lei 911/69.
Não obstante o diploma legal possua tão somente nove artigos e seu procedimento não aparente complexidade prática, diversos temas destacam-se pelos debates gerados, sobretudo nos tribunais. Dois foram selecionados para uma análise que transborda a mera leitura do Decreto-Lei: a possibilidade de se discutir cláusulas contratuais nas ações de busca e apreensão e a existência de conexão entre ações revisionais e as demandas disciplinadas pelo Decreto-Lei.
Discussão de cláusulas contratuais em ações de busca e apreensão
Uma vez que o Decreto-Lei 911/69 apenas estabelece o prazo para apresentação de resposta do devedor fiduciante (artigo 3º, § 3º) e que esta independe do exercício da opção, prevista no artigo 3º, § 2º, pelo pagamento da integralidade da dívida pendente (artigo 3º, § 4º), é manifesto o silêncio deixado pelo diploma legal em relação à matéria de defesa que pode ser alegada. Emerge, então, a controvérsia acerca da possibilidade de discussão de cláusulas contratuais no bojo das ações de busca e apreensão.
De um lado, há corrente que defende a impossibilidade de discussão de cláusulas contratuais, tendo em vista os estreitos limites da ação de busca e apreensão. Segundo esta linha de entendimento, uma vez que tal demanda visa apenas à retomada do bem alienado fiduciariamente, a análise das cláusulas do contrato exigiria o ajuizamento de ação própria[1].
Corrente contrária, por sua vez, envereda-se por caminho distinto, entendendo ser possível a análise de alegações de defesa relativas à eventual abusividade de cláusulas contratuais também em sede de ação de busca e apreensão, não se restringindo, pois, às demandas revisionais[2].
Em que pese o conspícuo posicionamento adotado pela primeira, parece mais adequada a segunda corrente, tendo em vista que a mora é requisito essencial às ações de busca e apreensão (artigo 3º, caput), e, considerando que a cobrança abusiva de encargos descaracteriza a mora do devedor[3], é certo que a análise das cláusulas contratuais consiste em premissa necessária à verificação da mora no caso concreto e à existência, ou não, de fundamento à demanda.
Colocando a questão em termos práticos, pode-se pensar, por exemplo, em uma hipótese na qual, sem que tenha havido sua prévia pactuação no contrato de financiamento, observa-se a capitalização de juros em intervalo inferior a um ano — indo de encontro ao posicionamento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 973.827/RS[4]. Tal prática, por sua vez, acaba por ocasionar o aumento considerável no valor das prestações mensais, inviabilizando seu adimplemento pelo devedor fiduciante, o qual, via de consequência, vê contra si o ajuizamento de ação de busca e apreensão.
Aplicando-se o entendimento da primeira corrente, o devedor não poderia sustentar, em sua defesa, a abusividade da aplicação de juros capitalizados e, por consequência, a descaracterização da mora. Assim, além de serem cobradas prestações em quantia a maior, a demanda de busca e apreensão seria julgada procedente, salvo se o devedor ajuizasse ação própria para discutir a capitalização de juros.
De outra mão, o segundo entendimento permite a análise da alegação de capitalização de juros indevida na própria demanda de busca e apreensão, porquanto consiste em questão prejudicial à caracterização da mora, elemento essencial ao pedido de busca e apreensão.
Trata-se, pois, de posicionamento que prima pela economia processual e celeridade, além de evitar maiores prejuízos ao devedor fiduciante, que poderá evitar a retomada do bem alienado naquela mesma demanda, sobretudo se se considerar que a própria capitalização indevida contribuiu para a elevação das parcelas e, assim, para o inadimplemento.
Conexão por prejudicialidade
Caso o devedor fiduciante inadimplente opte pela propositura de ação destinada à revisão do contrato e, simultaneamente, a instituição financeira ajuíze demanda de busca e apreensão do bem, depara-se com outra importante questão prática: é possível a reunião dos processos para julgamento conjunto?
O CPC-73 adotava o conceito tradicional de conexão, reputando conexas duas ações quando possuíssem objeto ou causa de pedir coincidente (artigo 103), sendo possível sua reunião para julgamento conjunto (artigo 105).
Todavia, em razão da insuficiência das hipóteses previstas no antigo Estatuto Processual, o conceito legal era bastante criticado pela doutrina, pois não abrangia situações em que um único processo não se mostrava capaz de solucionar, completamente, os conflitos surgidos a partir de um mesmo contexto de direito material. É como ocorre na hipótese narrada, na qual não se vislumbra coincidência de pedido ou causa de pedir, mas eventual reconhecimento de abusividade nos encargos da normalidade pode ensejar a improcedência do pedido de busca e apreensão, como já discorrido.
Em tais cenários, o julgamento apartado destas ações gera um desgaste desnecessário da máquina judiciária, contrário à garantia constitucional da celeridade processual — trâmites diversos, sobrestamento de processos, perda de objeto de recursos etc. —, além de acometer a segurança jurídica com a possibilidade de decisões contraditórias.
Assim, firmou-se na doutrina e em parcela da jurisprudência o entendimento de ser necessária a reunião dos processos, tendo em vista o forte vínculo constatado entre os direitos discutidos nas demandas, já que eventual vício na relação contratual atingiria diretamente a pretensão objetivada na busca e apreensão. Com efeito, conquanto embasadas em causa de pedir direta de distinta natureza, as ações de revisão contratual e de busca e apreensão possuem causa de pedir mediata comum, qual seja, a relação contratual havida entre as partes, cuja análise é fundamental para se aferir a ocorrência de mora debitoris.
Neste sentido, destaca Cândido Rangel Dinamarco que “A dificuldade para determinar a medida da coincidência entre as causas de pedir, capaz de gerar os efeitos jurídico-processuais da conexidade aconselha que se abrandem os rigores da precisa decomposição da demanda em elementos, inerentes à teoria dos três eadem. O que importa, nos institutos regidos pela conexidade, é autilidade desta como critério suficiente para impor certas consequências (prorrogação da competência, reunião das causas em um só processo) ouautorizar outras (litisconsórcio facultativo). Essa utilidade está presente sempre que as providências a tomar sejam aptas a proporcionar a harmonia de julgados ou a convicção única do julgador em relação a duas ou mais demandas (Redeni). Ainda que ocorra a mera identidade parcial de títulos, será útil a prorrogação da competência, com reunião das causas sob um juiz só, assim como será útil a formação do litisconsórcio (…) ou a admissão da reconvenção — sempre que a convicção para julgar haja de ser a mesma e não deva haver discrepâncias entre os julgamentos.”[5]
Já decidiu o Superior Tribunal de Justiça que “1. Uma causa, mercê de não poder ser idêntica à outra, pode guardar com a mesma um vínculo de identidade quanto a um de seus elementos caracterizadores. Esse vínculo entre as ações por força da identidade de um de seus elementos denomina-se, tecnicamente, de conexão. (FUX, Luiz. Curso de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 2001). 2. A moderna teoria materialista da conexão ultrapassa os limites estreitos da teoria tradicional e procura caracterizar o fenômeno pela identificação de fatos comuns, causais ou finalísticos entre diferentes ações, superando a simples identidade parcial dos elementos constitutivos das ações. 3. É possível a conexão entre um processo de conhecimento e um de execução, quando se observar entre eles uma mesma origem, ou seja, que as causas se fundamentam em fatos comuns ou nas mesmas relações jurídicas, sujeitando-as a uma análise conjunta.” [6]
Na mesma linha é o entendimento do Tribunal Bandeirante, conforme: Agravo de Instrumento 2255871-75.2015.8.26.0000, Agravo de Instrumento 2227511-33.2015.8.26.0000, Apelação 1010952-22.2014.8.26.0037, Agravo de Instrumento 2088821-24.2015.8.26.0000, Agravo de Instrumento 2086815-44.2015.8.26.0000.
Entretanto, o posicionamento não é pacífico, havendo no mesmo tribunal forte corrente em sentido contrário, baseada primordialmente no artigo 105 do CPC-73, isto é, na ausência de mesma causa de pedir ou pedido[7].
O advento do novo Código de Processo Civil, porém, trouxe significativa contribuição ao tratar expressamente do tema, dispondo, no § 3º do artigo 55, que “serão reunidos para julgamento conjunto os processos que possam gerar risco de prolação de decisões conflitantes ou contraditórias caso decididos separadamente, mesmo sem conexão entre eles”.
Sobre o tema, leciona Daniel Amorim Assumpção Neves que “novidade significativa quanto ao efeito da conexão é encontrada no § 3º do artigo em comento. O dispositivo prevê a reunião de processos, mesmo não conexos, sempre que exista risco de prolação de decisões conflitantes ou contraditórias, caso sejam decididos separadamente (diferentes juízos). A reunião nessas circunstâncias já vinha sendo aceita pelo Superior Tribunal de Justiça, ainda que por meio da extensão do conceito de conexão (STJ, 1ª Seção, CC 55.584/SC, rel. Min. Luiz Fux, j. 12/08/2009, Dje 05/10/2009), ou até mesmo reconhecendo não se tratar de identidade de causa de pedir ou de pedido, mas de meras situações análogas (Informativo 466/STJ: 3ª Turma, REsp 1.226.016/RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 15.03.2011).” (in “Novo Código de Processo Civil Comentado”, Salvador: JusPodivm, 2016, p. 80).
A novidade legislativa, assim, acolhe o posicionamento já manifestado na jurisprudência, prestigiando a economia processual e buscando a maior efetividade e otimização da entrega da prestação jurisdicional.
Autor: Hugo Crepaldi é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.