Teoria do domínio da posição de comando é distorção do domínio do fato

Autores: Valber Melo, Artur Barros Freitas Osti e Filipe Maia Broeto Nunes (*)

 

Temática deveras complexa e que sempre chamou a atenção dos estudiosos do Direito Penal, a responsabilização dos sujeitos que atuam no crime até hoje causa perplexidade. Buscou-se sempre, por meio das mais variadas teorias, delimitar quem deve ou não ser punido por determinada prática delitiva, tudo isso para se evitar a odiosa e repudiada responsabilização penal objetiva.

Não obstante, porém, os inúmeros estudos doutrinários acerca da responsabilização penal, bem como as diversas teorias para tanto desenvolvidas, o presente artigo terá como foco a intitulada “teoria do domínio da posição de comando”, uma distorção hermenêutica da teoria do domínio do fato.

Assim, afora as conhecidas teorias utilizadas quando da análise do concurso de agentes, tais como a teoria pluralística, dualística (ou dualista) e monista, buscar-se-á explicitar uma recorrente manobra interpretativa que tem sido levada a efeito por alguns operadores do Direito, pela qual, distorcendo-se a teoria do domínio do fato, tem-se aplicado, na verdade, a teoria do domínio da posição de comando, buscando-se, com isso, verdadeiramente legalizar a responsabilização penal objetiva.

Deve-se destacar, ainda que perfunctoriamente, que para o direito brasileiro, em regra, para delimitar quem é autor ou participe de um crime, adota-se a teoria objetivo-formal, pela qual “autor é quem realiza o verbo núcleo do tipo; participe é quem contribui de outra maneira para o delito (Beling, von Liszt, Mezger etc.) ”. [1]

Evidentemente, tendo em vista as inúmeras críticas à adoção teoria objetivo-formal, porquanto deveras restritiva, passou-se a adotar, em alguns casos, a chamada teoria do domínio do fato, pela qual o autor de um delito não precisa, necessariamente, praticar o verbo nuclear do tipo penal.

Isto porque, para a teoria do domínio do fato, conforme escólio de Welzel, autor de um delito “é aquele que o realiza em forma final, em razão de sua decisão volitiva. A conformação do fato mediante a vontade de realização que dirige em forma planificada é o que transforma o autor em senhor do fato”. [2]

A minudenciar o tema, Juan Ferré Olivé, Miguel Nunes Paz, Willian Terra de Oliveira e Alexis Couto de Brito, citando Roxin, esclarecem que

Somente poderá ser autor de um delito de domínio (Tarherrschaftsdelikte) aquele que se possa afirmar que é a figura central da conduta criminosa, quem decide se e como será realizada. Assim, o domínio do fato pressupõe um conceito aberto, que não se estrutura em torno a uma imperfeita definição ou fórmula abstrata, mas sim de uma descrição (Beschreibung) que se ajusta aos vários casos concretos. Este conceito aberto complementa-se com uma série de princípios orientadores. Autor de um delito é aquele que pode decidir sobre aspectos essenciais da execução desse delito, o que dirige o processo que desemboca no resultado. Adota-se um critério material que permite explicar mais satisfatoriamente as diversas hipóteses de autoria e participação. Nos delitos de domínio, o tipo descreve a ação proibida da forma mais precisa possível (o domínio do fato sempre se refere ao tipo). Trata-se de um domínio considerado em sentido normativo (com relação à imputação objetiva) e não de uma perspectiva naturalística (como mero domínio de um processo causal). [3]

Destarte, como se pode perceber, a teoria do domínio do fato possui (vários) requisitos que devem ser preenchidos quando da atividade de subsunção da conduta delitiva que se pretende imputar. Não é, como alguns pensam — ou querem —, um “cheque em branco” a ser “preenchido” ao alvedrio acusatório ou decisório. Não se presta, pois, a responsabilizar sujeitos que não têm responsabilidade penal.

Veja-se, no entanto, que a teoria do domínio do fato em nada se confunde com a nova “teoria do domínio da posição de comando”, utilizada para responsabilizar agentes, ainda que nada tenham feito para receber a tutela penal. Ao que se pode constatar em muitos casos concretos, apesar de não existir qualquer previsão legal, parece cada vez mais corriqueiro seu uso, em total desvirtuamento da teoria do domínio do fato.

Poder-se-ia argumentar que isso é impossível ou, mesmo, que não ocorra em um Estado Constitucional e Democrático de Direito, tendo em mira a vedação à odiosa responsabilização penal objetiva. Em tese, de fato, era para ser algo impraticável; entretanto, infelizmente, não o é.

Tem-se percebido, hodiernamente, que muitos operadores do Direito, de forma deliberada, têm feito escabrosos contorcionismos hermenêuticos para, a pretexto de valer-se da teoria do domínio do fato, responsabilizar penalmente pessoas que detém certas posições que lhe proporcionam, em razão do ofício, o “direito/dever” de proferir ordens. A essa travestida responsabilização penal objetiva, dar-se-á o nome de “teoria do domínio da posição de comando

Ora, como se sabe (ou deveria se saber), uma coisa é a responsabilização do agente com base na teoria do domínio do fato — teoria esta de há muito existente no cenário jurídico mundial; outra, bem diferente, é a (indevida) responsabilização criminal (objetiva) do sujeito com base no que se propõe a chamar de “teoria do domínio da posição de comando”.

Nesta contextura, toda e qualquer retórica ou contorcionismo hermenêutico devem ser veementemente refutados, sob pena de ilegalmente legitimar-se a responsabilização penal objetiva, e pior, vilipendiando a original teoria de Roxim. Importante ressaltar que, para alguns estudiosos do direito penal, a teoria do domínio do fato passou a ser adotada no direito brasileiro quando do julgamento da paradigmática Ação Penal 470, conhecida “por alguns” de “caso mensalão”. Porém, no referido processo e de modo geral, ainda existem (muitos) equívocos por parte dos intérpretes.

De modo bastante severo, Pablo Rodrigo Alflen, criticando as distorções que têm sido feitas no tocante à aplicação da teoria do domínio do fato, explica que ela:

[…] foi utilizada como simples retórica para fins de atribuição de responsabilidade, em flagrante violação ao art. 93, IX da Constituição Federal. O grau de desvirtuamento da teoria é estratosférico, visto que, partindo de posicionamento completamente obsoleto, frisou-se em determinado momento que “presumidamente, os detentores de controle das atividades do banco Rural, conforme dispõe o ato institucional da pessoa jurídica, há de se imputar a decisão (ação final) do crime. Não se pode admitir na ordem jurídica brasileira a presunção do domínio do fato, de modo que, a simples disposição de ato institucional não atribui poder de condução a ninguém.[4][5]

A toda evidência, não se pode(ria) tolerar, num Estado Democrático de Direito, imputações por presunção. Vale dizer, mesmo com a aplicação da teoria do domínio do fato, deve haver, até mesmo por imperativo de justiça, a comprovação exaustiva da imputação que se leva a efeito em desfavor de quem quer que seja. Repita-se à exaustão: a teoria do domínio do fato não é um “coringa” a ser utilizado para condenar pessoas por crimes que não tenham praticado.

O que se tem notado, infelizmente, é um total desvirtuamento da teoria do domínio do fato. Na prática, é cada vez mais comum se ver denúncias citando a predita teoria, sem, contudo, preencher os seus requisitos. Onde se avoca a teoria do domínio do fato, sem o preenchimento de seus pressupostos, se está, na verdade, aplicando a teoria do domínio da posição de comando, que não tem qualquer respaldo no ordenamento jurídico nacional e internacional.

Ora, condenar-se alguém por ostentar uma posição de comando, ao argumento de que, por ter superioridade hierárquica, deve responder pelos delitos levados a cabo por seus subordinados é algo totalmente ilegal, conquanto tenha sido comum hodiernamente.

Infelizmente, tem se tornado quase que corriqueiro, em processos envolvendo delitos de “colarinho branco”, tendo como foco, por exemplo, ex-gestores públicos e diretores executivos de grandes empresas, imputações automáticas em relação àquele que tem o poder de emanar ordens, ainda que os crimes, eventualmente praticados sob sua gestão, não tenham ligação alguma com o detentor da “posição de comando”. Tudo isso para lograr-se êxito numa responsabilidade penal inexistente.

Nesta senda, a corroborar o quanto dito, vale mencionar relevante voto do ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento AP 898/SC, no qual deixou assentado que

“Imputar a alguém uma conduta penal tão somente pelo fato de ocupar determinado cargo significa, na prática, adotar a responsabilização objetiva na esfera penal. Ao contrário. A responsabilização penal nos crimes comissivos impõe a regra de certeza acerca da conduta criminosa praticada, não podendo ser suprida por ilações, por mais coerentes ou lógicas que se apresentem, decorrentes da exclusiva condição de ser prefeito”.

Com efeito, ao desvirtuar-se a teoria do domínio do fato, faz-se às avessas uma fraude interpretativa, verdadeiro contorcionismo hermenêutico, alegando-se o uso de tal teoria, para imputar/condenar quem não tem responsabilidade alguma, como se referida teoria a isso se prestasse. Típico caso de aplicação da inaceitável “teoria do domínio da posição de comando”.

Nesse sentido, importantes são as observações de Alaor Leite e Luiz Greco, alunos de Roxin que bem explicam a teoria do domínio do fato. Segundo os autores, “a teoria do domínio do fato não condena quem, sem ela, seria absolvido; ela não facilita, e sim dificulta condenações. Sempre que for possível condenar alguém com a teoria do domínio do fato, será possível condenar sem ela.[6]

Deve-se, pois, compreender que, havendo preenchimento de todos os requisitos, quem está no topo hierárquico de determinada estrutura, pública ou privada, e ordena que ilícitos sejam praticados merece, pela teoria, por eles ser responsabilizado. Isto porque há relação de mando do “chefe” para com seus “subalternos”, no sentido de cometer crimes.

Neste contexto, poder-se-ia responsabilizar penalmente determinado gestor que, ciente dos ilícitos que estão a ser praticados sob seu comando, em vez de coibi-los, os fomenta. Veja-se, assim, que todo ato praticado por um subalterno, a mando do superior, pode a este ser imputado. Contudo, não é qualquer ato, mas, sim, aqueles em que há expressa ordem delitiva, repita-se, por parte do superior hierárquico, o dominador do fato.

Diferente é a responsabilização penal objetiva, pela qual condena-se alguém por um resultado ocorrido, sem que tenha contribuído para que este viesse a existir. Condenar alguém por uma posição (de comando) que ocupa não é condenar com base na teoria do domínio do fato, e sim com base na teoria do domínio da posição de comando.

Com efeito, casos há — aos montes — em que pessoas são acusadas (e condenadas) não por um ato que tenham praticado, mas, sim, por uma posição — de comando — que ostentavam. Corroborando o quanto exposto, vejam-se novamente os ensinamentos dos pupilos de Roxin, Alaor Leite e Luis Greco, que caem como luva:

A teoria não serve para responsabilizar um sujeito apenas pela posição que ele ocupa. No direito penal, só se responde por ação ou por omissão, nunca por mera posição.

O dono da padaria, só pelo fato de sê-lo, não responde pelo estupro cometido pelo funcionário; ele não domina esse fato – noutras palavras, ele não estupra, só por ser dono da padaria.[7]

Portanto, “o chefe deve ser punido, não pela posição de chefe, mas pela ação de comandar ou pela omissão de impedir; e essa punição pode ocorrer tanto por fato próprio, isto é, como autor, quanto por contribuição em fato alheio, como partícipe”[8]. Do contrário, estar-se-á utilizando, equivocadamente, com falso nome de teoria do domínio do fato, a “teoria do domínio da posição de comando”, que, em síntese, visa punir determinada pessoa tão somente pela posição que ostenta, e não pelo fato que tenha porventura ordenado ou que, sendo obrigado a evitar, tenha anuído.

A caminho de conclusão, precisa é a advertência feita por Bitencourt no sentido de que “é indispensável que resulte demonstrado que quem detém a posição de comando determina a prática da ação, sendo irrelevante, portanto, a simples ‘posição hierárquica superior’, sob pena de caracterizar autentica responsabilidade objetiva”[9]. E continua o penalista gaúcho, “para que se configure o domínio do fato é necessário que o autor tenha controle sobre o executor do fato, e não apenas ostente uma posição de superioridade ou de representatividade institucional, como se chegou a interpretar na jurisprudência brasileira”[10].

Destaque-se, por derradeiro, que essa “teoria do domínio da posição de comando” não é estudada na doutrina, tendo em vista que não foi projetada ou cientificamente estruturada. Começa a ser debatida, agora, por conta dos desvios exegéticos que têm sido levados a efeito quando da (falsa) aplicação da teoria do domínio do fato. Em arremate, é mais um desvio hermenêutico da teoria do domínio do fato, do que verdadeira teoria. É, em conclusão, algo que não deveria ser ou, mesmo, existir.

 

 

 

 

 

Autores: Valber Melo é advogado, especialista Direito Penal e Processual Penal. Especialista em Direito Público, Pós-graduado em Ciências Criminais. Professor licenciado de Direito Processual Penal e Direito Penal da Universidade de Cuiabá. Membro da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB-MT.

Artur Barros Freitas Osti é advogado, pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra e em Direito Eleitoral e Improbidade Administrativa pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Mato Grosso (FESMP/MT).

Filipe Maia Broeto Nunes   é acadêmico de Direito da Universidade de Cuiabá – UNIC; Estagiário no Escritório Valber Melo Advogados Associados.


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