Teoria do ordenamento jurídico: uma concepção euclidiana.
Uma demonstração geométrica da pirâmide de Kelsen
Carlos Alberto Bittar Filho
procurador do Estado de São Paulo, doutor em Direito pela USP
Dois mundos há que, apesar de distintos, se interpenetram: o mundo do ser e o mundo do dever-ser. Aquele é o mundo da realidade, regido pelas leis naturais, fundadas na causalidade (circular e linear); este, por seu turno, é o mundo do direito, da fenomenologia jurídica e de suas formas de expressão (Rubens Limongi França). A característica distintiva da norma jurídica é, a nosso ver, a incidência – e não a sanção (Marcos Bernardes de Mello). É por intermédio daquela que a norma jurídica faz com que determinado fenômeno natural entre no mundo do dever-ser, juridicizando-se.
No mundo do ser vislumbram-se quatro dimensões: o comprimento (dimensão plana longitudinal), a altura (dimensão vertical), a largura (dimensão plana transversal) e o espaço-tempo (a “quarta dimensão”). O mundo do dever-ser, por sua vez, é formado, do ponto de vista puramente normativo, pela fusão de dois grandes planos (ou semiplanos), unidos por uma relação de instrumentalidade: o direito material e o direito processual (Cândido Rangel Dinamarco). Estes se complementam, fundindo-se em um todo único, que é o ordenamento jurídico, relativamente ao qual também se pode falar em dimensões, que são: a existência, a validade, a vigência e a eficácia jurídica.
Servindo-nos da beleza e elegância da Geometria Espacial, para melhor visualização desses fenômenos, poderíamos considerar o mundo dos fatos como um cubo e o mundo jurídico como uma pirâmide reta quadrada nele inscrita, com a mesma altura, porém com base menor (tanto em comprimento quanto em largura) que a daquele. Isso significa afirmar que o mundo do dever-ser está inserido no mundo do ser, dele partindo e a ele destinando-se. Tudo o que é jurídico importa ao mundo fático, pois o mundo do direito está calcado na realidade, nela haurindo sentido, mas nem todo fato é juridicamente relevante. A forma piramidal do ordenamento jurídico deriva do fato de ser ele hierarquicamente construído, a partir da sistemática de normas fundantes e fundadas (Hans Kelsen).
À medida que se sobe na hierarquia das normas, vão elas numericamente escasseando; inversamente, à proporção que se desce, são aquelas mais e mais abundantes. Por outro lado, subindo-se em tal hierarquia, os campos de incidência das normas tendem a ampliar-se, até que se alcance a maior das normas, cujo campo de incidência abarca todo o sistema jurídico; essa norma constitui o fundamento de validade de todo o ordenamento. As normas jurídicas compõem a tessitura do mundo do dever-ser, sendo suas formas de expressão; as superiores, mais escassas, dão validade às inferiores, mais abundantes. Dessa maneira, é lícito afirmar que as normas superiores permitem o alargamento do sistema jurídico, por darem fundamento de validade às inferiores, as quais são numericamente mais abundantes e também representam, em última análise, desdobramentos eficaciais das primeiras.
Dada a estrutura hierarquizada do sistema jurídico, é lícito conceber cada degrau da escala como sendo o produto da fusão dos planos do direito material e do direito processual (este e aquele são os semiplanos de cuja fusão resultam os planos que, paralelos e superpostos, constituem os degraus hierárquicos do ordenamento). Toda a pirâmide jurídica, por sua vez, apresenta aquilo que a doutrina denomina vigor (Tércio Sampaio Ferraz Jr.), que é sua força, seu poder de império. Dentro da concepção matemática que estamos expondo, o vigor não constitui mais uma dimensão, podendo ser representado como o vetor peso da pirâmide jurídica. Tal não significa que o sistema jurídico seja uma entidade estática; a representação piramidal é apenas e tão-somente um recurso de que se lança mão para que se possa melhor vislumbrá-lo, dada sua natureza abstrata.
Dada a perspectiva matemática que se está dando ao sistema jurídico, impõe-se que se possa traduzir, do ponto de vista da Geometria Euclidiana (que abarca as figuras planas e as sólidas), a principal de suas formas de expressão na atualidade: a lei. É que a linguagem geométrica é universal e perene, sendo dotada de intrínseca e inigualável beleza.
A promulgação da lei apresenta a natureza de ato jurídico propriamente dito, supondo, portanto, uma declaração de vontade (Antônio Junqueira de Azevedo). Destina-se a produzir efeitos jurídicos em nível de hierarquia, tratando-se, assim, de ato de hierarquia (especificamente, cuida-se de ato normativo). Geometricamente, é um vetor (segmento de reta orientado), que se adentra no mundo do dever-ser, tornando-se uma lei existente – e dotado de uma dimensão: a existência, que é o seu “comprimento”. Ora, os fatos compõem a base extensa sobre a qual incidem as leis – essa extensão justifica a aproximação entre o “comprimento” (dimensão do mundo fático) e a “existência” (dimensão do mundo jurídico).
A conformidade com o ordenamento jurídico faz com que a lei seja dotada de mais uma dimensão: a validade, que é a sua “altura” (a lei como que recebe a sanção, de cima para baixo, dos planos hierárquicos superiores do ordenamento). Assim, de simples segmento de reta passa a ser uma figura geométrica plana: um triângulo, perpendicular ao estrato hierárquico (plano) a que pertence. A aproximação entre a “validade” (mundo ideal) e a “altura” (mundo real) é justificada pelo fato de que aquela é a pilastra sobre a qual está erigido todo o dever-ser, funcionando como verdadeiro fio de prumo para a organização normativa de uma dada sociedade.
Para que possa ser invocada para a produção de efeitos, a lei há de ter vigência, que é sua dimensão temporal (tempo de validade) (Tércio Sampaio Ferraz Jr.). Sendo vigente, passa a ter campo de incidência próprio, o qual poderia ser representado geometricamente como um triângulo semelhante (e maior) àquele da própria lei.
Se vem a produzir efeitos jurídicos (através do desdobramento eficacial em leis hierarquicamente inferiores e/ou na incidência sobre suportes fáticos concretos), acaba o triângulo sofrendo uma expansão por alargamento, adquirindo a dimensão eficácia jurídica (“largura”) e sendo representado por um sólido geométrico (pequena pirâmide de base quadrada). A produção de efeitos jurídicos dá à manifestação de vontade uma extensão maior, fazendo com que dela nasçam relações jurídicas. Em tal caso, ela é dotada da dimensão eficácia jurídica – aproximada da “largura” por representar o alargamento da base do próprio mundo do dever-ser. Afinal, de uma só lei pode decorrer uma série de efeitos, os quais, conjugados a todos os outros produzidos pela totalidade dos diplomas legais de uma determinada coletividade, fazem com que se alarguem os horizontes do mundo do direito.
Observe-se, aqui, que não haveria sentido em atribuir ao comprimento e à largura diferentes valores, pois tanto a existência quanto a eficácia jurídica são igualmente importantes no contexto da lei. Daí se infere que a base da pirâmide representativa da lei é geometricamente um quadrado, estando inserida no plano hierárquico a que aquela pertence.
Em síntese, dentro do mundo do dever-ser, a lei é um ente potencialmente tetradimensional, podendo apresentar as seguintes dimensões: existência (“comprimento”), validade (“altura”), vigência (dimensão temporal) e eficácia jurídica (“largura”).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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TOMEI, Carlos. Euclides: a Conquista do Espaço. São Paulo: Odysseus, 2003.
APÊNDICE: DISCURSO DE SAUDAÇÃO AOS PROFESSORES DO PRIMEIRO ANO DA FADUSP (*)
Caros colegas,
Ilustres Professores:
Hoje estamos iniciando uma longa jornada de cinco anos. Jornada que nos irá levar a um mundo novo, o mundo do Direito.
Passamos pelo grande e difícil desafio do vestibular, conquistando o privilégio de estudarmos numa das melhores Faculdades de Direito do Brasil e da América Latina. E agora estamos começando uma importante etapa de nossas vidas, plena de esperança e de idealismo.
Em nome da Turma Ímpar da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, gostaria de saudar os Professores que nos conduzirão pela estrada do Direito ao longo dos próximos cinco anos. Estrada em que definiremos nosso futuro profissional. Estrada em que aprenderemos as leis de nosso País. Estrada em que nos tornaremos adultos. Que as lições de nossos Mestres nos ensinem a lutar pela Justiça!
Arcadas, Sala João Mendes Jr., março de 1987.
(*) Este texto é a súmula de uma série de discursos que tivemos a honra e o prazer de proferir no começo do Curso de Direito, em saudação a vários dos Professores.