Terceirização e sua controvérsia jurídica: o caso da Volkswagen do Brasil

Maria da Consolação Vegi da Conceição*

A terceirização é um processo econômico com importantes efeitos de natureza jurídica. Em razão da difusão crescente dessa prática gerencial a partir dos anos 90 no país, expandiram-se também os problemas e os debates no campo do Direito, em particular o Direito do Trabalho.

No Brasil, não há uma legislação específica que regule, em detalhes, os elementos que envolvem o ato da terceirização. A legislação ordinária regulamentava tão-somente os serviços de vigilância e o trabalho temporário.

O Enunciado 256 do TST, de 1986, foi a primeira referência importante para a tutela das ações judiciais. Mas o Enunciado 256 era ainda bastante restritivo, na medida em que proibia a contratação de terceiros por empresa interposta, à exceção de trabalho temporário e de serviço de vigilância. Salvo estes casos, haveria o vínculo empregatício diretamente com o tomador de serviços.

Já o Enunciado 331 do TST, de 1993, estabeleceu que a contratação de mão-de-obra por empresa interposta era ilegal, à exceção do trabalho temporário, serviço de vigilância, conservação e limpeza e aqueles serviços especializados ligados à atividade-meio da tomadora. Por conseguinte, o referido enunciado representou já uma flexibilização em relação ao Enunciado 256.

Atualmente, a principal referência jurídica ainda é o Enunciado 331. Mesmo assim, as atuais decisões judiciais são contraditórias quanto à sua interpretação. Ademais, face ao ritmo veloz das mudanças no campo da organização da produção, há opiniões de especialistas em Direito de que o referido enunciado deve ser alterado. Muitos propõem uma flexibilidade ainda maior do ordenamento jurídico nacional.

Algumas decisões judiciais também apontam para a flexibilização do Enunciado 331. Dois critérios parecem orientar atualmente essas decisões: a idoneidade financeira da empresa contratada e o fato de que algumas atividades seriam altamente especializadas. Na prática, a eleição somente destes critérios tem possibilitado a terceirização da própria atividade-fim da empresa.

Cabe, no entanto, notar que, se o enunciado apresenta fragilidade do ponto de vista de abarcar as complexas variantes relacionadas à terceirização, ele é ainda hoje – o que é reconhecido pelos estudiosos da ciência jurídica e pelos próprios sindicatos de trabalhadores – a principal salvaguarda legal para evitar uma precarização ainda maior das relações de trabalho.

São distintas as interpretações de juristas e estudiosos em relação ao tema da terceirização, suas possibilidades e limites legais.

Entre outros itens do debate está o fato de o Enunciado 331 prever que a empresa (pública ou privada) não pode terceirizar suas atividades-fim, mas apenas as atividades-meio. Contudo – como mostram alguns autores – é extremamente difícil para o Judiciário definir com precisão qual a atividade-fim e qual a atividade-meio em cada caso concreto, gerando discrepâncias entre um julgamento e outro. A análise da jurisprudência mostra uma enorme subjetividade nas decisões, gerando com isso a insegurança jurídica das mesmas.

Para demonstrar a complexidade que envolve a terceirização no campo jurídico, verifique-se mais de perto um caso empresarial de desverticalização / terceirização. Trata-se da experiência de uma das maiores empresas privadas multinacionais instaladas no país: a Volkswagen do Brasil – especificamente os casos de suas plantas industriais de São Bernardo do Campo (SP) e Resende (RJ). A primeira, uma das mais antigas e verticalizadas no país; a segunda, uma das mais novas do grupo.

No primeiro momento, o processo de terceirização da fábrica da Volkswagen em São Bernardo do Campo circunscreveu-se, de fato, às atividades-meio (ou como denominam muitos gerentes e administradores, às “atividades de apoio”), como segurança, limpeza, manutenção e processamento de dados.

Todavia, nos últimos anos, esse processo tem avançado ou tem planos de avançar para áreas habitualmente consideradas típicas da atividade-fim da empresa: ferramentaria, usinagem, fundição, montagem de pneus, pintura, entre outras.

De fato, mais recentemente, a fábrica tem passado por um intenso processo de reestruturação industrial, para a produção do novo veículo mundial da empresa (denominado de plataforma “PQ24”). Esta reestruturação faz-se acompanhar de diversas mudanças na organização da produção, entre as quais: redução em um terço da área da fábrica, aumento da automação e forte incremento da terceirização.

Do total de 500 empresas fornecedoras de autopeças que farão parte da estrutura de fornecimento da produção do veículo, um conjunto seleto de cerca de 12 empresas fornecedoras estarão produzindo e montando módulos no interior da área industrial da Volkswagen. A própria Volkswagen denominou o arrendamento desta área de “Parque Industrial de Fornecedores”. Diante disto, é razoável supor que, em futuro breve, cresça o número de reclamações trabalhistas envolvendo empregados destas empresas terceiras: enquadramento sindical, equiparações salariais, vínculo empregatício, indenizações de acidentes de trabalho, responsabilidade subsidiária, entre outras.

A desverticalização / terceirização da unidade da Volkswagen em São Bernardo ilustra também o quão irrealista é a visão de alguns juristas e estudiosos em relação aos efeitos benéficos da terceirização quanto à geração de empregos. A fábrica Anchieta, que já chegou a possuir mais de 43.000 trabalhadores no final da década de 70, possuía 16.300 em 2001, e hoje – já após a primeira fase dessa reestruturação recente – conta com apenas 14.500. Mais ainda: a empresa já chegou a mencionar a necessidade de um quadro de pessoal no futuro breve não superior a 7 mil funcionários. Logo, é difícil acreditar que as empresas de autopeças e de serviços fornecedoras da Volkswagen consigam incrementar seu volume de emprego na mesma proporção da queda que se implementa na fábrica Anchieta.

Ao analisar o caso da fábrica de Resende, fundada em 1996, constata-se que essa vem sendo considerada por gerentes mais entusiasmados como a “fábrica do futuro”, um “modelo revolucionário”. Em Resende, a Volkswagen estabeleceu parceria com 10 empresas fornecedoras de componentes. Estes fornecedores, além de responsáveis pelo suprimento de componentes (módulos), são também encarregados pela montagem dos módulos no veículo, logística e abastecimento. À Volkswagen, por sua vez, cabe a função de projetar o veículo, supervisão da produção (o que inclui o controle da qualidade) e a venda final do produto.

Vê-se, portanto, que a organização da produção em Resende já foi planejada desde o início de funcionamento da fábrica para que a própria operação de montagem das peças no veículo fosse realizada por empresas terceiras na linha de produção “supervisionada” pela Volkswagen. Não há ali nenhum trabalhador direto da própria VW nessa tarefa produtiva de montar os componentes dos veículos.

Contudo, tendo em conta o Enunciado 331, é difícil admitir juridicamente que atividades como a “montagem” não sejam consideradas atividades-fim de uma “montadora”.

Todavia, à luz dos recentes julgados, que têm como preocupação central a idoneidade das empresas contratadas, pode-se argumentar que este modelo terceirizado seria razoavelmente bem aceito. Isto porque, a princípio, todas as empresas que compõem o Consórcio Modular têm idoneidade financeira e têm parcelas expressivas em seus respectivos mercados. A maior parte é composta por empresas multinacionais.

Mas a questão não se restringe à idoneidade das empresas fornecedoras, embora este seja um elemento de grande importância. Há, na unidade de Resende, uma completa fusão administrativa destas empresas, por meio de políticas orientadas e coordenadas pela Volkswagen, e que estabelecem políticas únicas de RH, níveis salariais idênticos, empréstimos de empregados e constituição de apenas uma CIPA para todo o Consórcio. Além disso, é a Volkswagen que supervisiona o trabalho.

De outro lado, tem-se a impressão que a Volkswagen procurou cercar-se de cuidados quanto à legislação e à própria organização sindical: todos os empregados estão enquadrados em uma única categoria profissional; e são beneficiados pelo mesmo acordo coletivo.

Deve-se perquirir, no entanto, acerca da responsabilidade da Volkswagen em relação aos empregados das empresas fornecedoras que fazem parte do Consórcio Modular. Cabe investigar se há vínculo empregatício por conta da subordinação, e se tudo o que está sendo realizado objetiva principalmente a redução de custos com o pagamento de salários aos empregados. Vale notar aqui a grande discrepância entre os salários das fábricas de Resende e de São Bernardo do Campo: os salários da fábrica de Resende representam, em média, um terço dos salários da unidade de São Bernardo.

Um comentário final em relação à Volkswagen reside na forma diferenciada como a terceirização vem sendo realizada em ambas as unidades. No caso de São Bernardo, a desverticalização / terceirização está sendo implementada de um modo exaustivamente negociado com as representações sindicais. Isto guarda, é claro, relação direta com a forte organização sindical verificada nesta região, e com o fato de que o Sindicato e a Comissão de Fábrica buscam interferir na reestruturação produtiva, aliando resistência e proposições alternativas. Isto resultou, por exemplo, em um acordo já ano de 1991, que estabelecia o direito à informação e discussão prévia nos casos de terceirização.

No caso de Resende, a fábrica conta, desde o seu início, com grande flexibilidade de manejo para os processos de terceirização. Não há acordo formal regulando processos de reestruturação (nem em relação ao tema específico da terceirização) entre empresa e representações de empregados. Por isto, a busca pelos sindicatos e Comissões de Fábrica da negociação em nível de grupo econômico Volkswagen no Brasil reveste-se de importância atualmente. Esta negociação no âmbito do grupo poderá reduzir essa grande diferença de formas de implementação do processo de reestruturação produtiva entre as fábricas.

De modo mais geral, cabe concluir que, além da controvérsia “atividade-fim” versus “atividade-meio”, a terceirização faz-se normalmente acompanhar de diversos problemas trabalhistas. Estes resultam, via de regra, em processos judiciais que envolvem, entre outros itens: responsabilidade subsidiária e solidária; idoneidade financeira da empresa prestadora; enquadramento sindical; vínculo empregatício caracterizado pela subordinação direta e pessoalidade; redução de custos (demissão do trabalhador e sua recontratação como terceiro) e; precarização do trabalho (remuneração, benefícios, jornada, salubridade, acidentes de trabalho, entre outros).

Embora não seja objeto do Direito, deve-se discutir o tema dos efeitos da terceirização sobre o nível de emprego. Há aqui também observações e posicionamentos distintos. Verifica-se, no debate jurídico, que alguns defensores da terceirização argumentam que ela, além de aumentar a eficiência produtiva das empresas, traz efeitos positivos em termos de geração de novos postos de trabalho (alguns desses autores acrescentam ainda elementos como a ampliação do número de sindicatos).

Outro conjunto de autores – entre os quais a autora deste artigo se alinha – sustenta, em sentido diametralmente oposto, com base nos dados do mercado de trabalho, que a terceirização, nos moldes em que se realiza atualmente no país, costuma gerar, ao final, desemprego e precarização (incremento de jornadas, redução de benefícios, diminuição de remuneração, degradação do meio ambiente do trabalho).

Dentre outras causas do desemprego e da precarização, está o fato de não existir uma legislação específica que trate o tema da terceirização, e que priorize a negociação coletiva, envolvendo sindicatos/representações de trabalhadores e empresas, em acordos articulados em níveis nacional, regional, grupo econômico e unidade industrial local.

A exigência da negociação pressionaria, entre outros, pelo direito à informação prévia, realocação e retreinamento, manutenção de nível de emprego, delimitação das atividade-fim e atividade-meio, fixação de piso salarial por função, representação sindical, controle das fraudes e imposição de barreiras ao rebaixamento das condições de trabalho. Esta negociação remeteria, por sua vez, a outros temas igualmente relevantes como a necessidade de uma nova estrutura sindical, baseada nos princípios da autonomia e liberdade sindical.

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