Tese de que só Polícia pode investigar policiais é ingênua

Cidadania é o atributo que faz do indivíduo um sujeito de direitos e deveres frente à comunidade, de tal modo a patentear perfeita reciprocidade entre o interesse coletivo e o particular. Assim, se a falsidade cometida pelo cidadão é crime, é porque as coisas do Estado devem caracterizar-se pela verdade absoluta e, do contrário, não haveria respeito à dignidade da pessoa humana.

A busca da verdade integra o espírito humano. Tanto que, dos primeiros aos últimos dias de sua vida, trilha o ser humano o caminho da investigação, ora científica, ora religiosa, perseguindo incessantemente evidências de sua própria essência, da natureza e até da existência divina.

É, pois, a investigação um direito natural do cidadão que, investido ou não de função pública, quer, pode e deve ter o completo domínio de si próprio, da comunidade e de suas circunstâncias, sobretudo quando vive numa sociedade regulada por regras cujo desrespeito pode significar a sua destruição. Assim, de um lado, é direito do cidadão, da imprensa e das organizações privadas e, de outro, dever de todo e qualquer órgão público, especialmente a Polícia, investigar a ocorrência e a autoria de infrações às normas que ordenam as relações sociais.

Atento a isso, o Poder Constituinte de 1988 resolveu munir o cidadão de poderes investigatórios, especialmente em relação aos atos praticados por agentes públicos, outorgando-lhe o direito de obter informação dos Poderes Públicos (CF, art.5º, XXXIII e XXXIV), corolário lógico do princípio da publicidade dos atos administrativos (CF, art.37), do acesso à informação (CF, art.5º, XIV) e da legitimação para a ação popular na defesa do patrimônio público (CF, art.5º, LXXIII).

Daí ser inadmissível a um deputado denunciado por desvio de verba da saúde pública alegar em sua defesa a nulidade da prova do seu crime, porque obtida pelo Ministério Público e não pela Polícia, sob o argumento de que o artigo 144, §4º, da CF, teria atribuído somente a esta última os poderes de investigação; que o órgão acusador não teria isenção para presidir investigações e, ainda, por não haver qualquer regulamentação a respeito. Primeiro, o referido dispositivo não dá a ninguém poderes exclusivos de investigação, apenas repartindo atribuições entre Polícias.

Com efeito, dentro do Capítulo III, do Título V, que se destina à Segurança Pública e não ao Ministério Público ou outros órgãos, cuidou a Constituição Federal das atribuições das Polícias da União e dos Estados, estabelecendo com clareza meridiana que os órgãos de Segurança Pública, assim entendidos, as polícias federal, rodoviária federal, ferroviária federal, civis e militares estaduais, são responsáveis pela preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio (CF, art.144, caput e incisos), aí impondo que, entre as referidas polícias, só a polícia federal pode exercer, no âmbito da União, as funções de polícia judiciária (§1º, IV) que, nos Estados, cabem somente à polícia civil (§4º).

O objetivo desse preceito foi apenas o de fixar precisamente as atribuições de cada uma das polícias, de forma a fazer com que, enquanto as polícias militarizadas se responsabilizassem pelo patrulhamento ostensivo de prevenção (§§2º, 3º e 5º), as polícias federal e civis estaduais se incumbissem da investigação criminal, função ordinária da inadequadamente chamada polícia judiciária.

A necessidade dessa distribuição de competências decorre, de um lado, da conveniência de dar a Administração Pública, em parte, sua resposta ao grande debate que se fez e ainda hoje perdura a respeito da unificação das polícias militar e civil, proposta rejeitada pelo Poder Constituinte de 1988 e, de outro, indicar aos cidadãos o específico e adequado canal de reclamação conforme as suas necessidades.

Tanto esse dispositivo constitucional não exclui investigações realizadas por outros órgãos, que a própria Constituição Federal ressalva a possibilidade de apuração de infrações legais por outras instituições, como as Comissões Parlamentares de Inquérito (CF, art.58, §3º), os Tribunais de Contas (CF, arts.71, 74 e 75) e o Ministério Público (CF, arts.127 e 129).

Aliás, o crime falimentar sempre foi apurado por inquérito judicial, em investigação conduzida pelo MP (Dec.lei nº7.661/45, art.103 e 105), o crime financeiro sempre foi apurado por investigação presidida pelo Banco Central (Lei nº4.595/64, art. 34, §1º e 38, §7º; Lei nº6.024/74, art.32; Lei nº7.492/86, art.28) e pela Comissão de Valores Mobiliários (Lei nº6.385/76, art.12), o crime contra a ordem econômica pelo CADE do Ministério da Justiça (Lei nº8.884/94, art.7º, IX e X) e por aí afora como sucede sabidamente com o IBAMA e Polícia Florestal, investigando infrações ambientais, Conselhos de Defesa dos Direitos Humanos, investigando infrações de sua área de atuação e, bem assim, com o Poder Legislativo, investigando crimes políticos.

Consigne-se que todos esses órgãos remetem obrigatoriamente os documentos de investigação criminal ao MP, tendo em vista a sua privativa legitimidade para a ação penal pública. E, de há muito tempo, cotidianamente, o MP tem instruído os processos criminais com tais peças.

Nos longos três (3) lustros de vigência da CF, nunca o Supremo Tribunal Federal reconheceu a invalidade das investigações presididas por essas instituições. Estranho que a ofensiva em andamento se dirija exclusivamente contra o MP.

De qualquer modo, se se reconhecer, por absurdo, que é exclusiva da polícia a atividade de investigação criminal, estará o Estado brasileiro no caminho do caos, pois nenhuma outra instituição poderá mais investigar o que quer que seja. Pior ainda. Se isso ocorrer, será um festival de revisões criminais para questionar condenações transitadas em julgado, com a possibilidade de inúmeros e perigosos criminosos serem libertados da pena já imposta definitivamente., um passo para a desordem e, no mínimo, para uma grave insegurança jurídica.

Segundo, o MP tem sim poderes de investigação criminal reconhecidos expressamente na Constituição Federal, que os prevê com todas as letras e só os desavisados não percebem.

Evidentemente que investigar, no caso, não é praticar a atividade corriqueira da polícia, no sentido de se utilizar da força física, fazendo campana, perseguindo, parando, revistando e detendo pessoas. Quem faz esse tipo de comparação com as investigações do MP, ou não pretende discutir altivamente a questão ou desconhece as diferenças estruturais entre as instituições mencionadas.

Investigação não é apenas o que a polícia tem feito. O termo significa muito mais.

O que faz o MP para se convencer dos fatos senão investigar a validade da colheita das provas pela polícia? O que faz o juiz para ganhar convicção para a condenação ou absolvição do acusado senão investigar, buscando a verdade?

Aliás, no rigor do termo, nem há, como sistema, investigação policial séria no Estado brasileiro. Não por culpa exclusiva da polícia, mas da estreita visão dos governantes, que se contentam com as atuais características do trabalho policial na solução formal dos casos, independentemente da fidelidade das provas e da efetiva apuração da verdade. Realmente, a polícia, na maioria das vezes, dá a investigação por encerrada assim que obtém a confissão do suspeito que, não raramente, assina seu interrogatório sem assistência jurídica e, em algumas oportunidades, mediante coação ou até tortura, como tem constatado o MP, a imprensa e toda a sociedade.

Mais ainda. O abandono da Segurança Pública pelo Estado parece deliberada, a fim de manter a sociedade desorganizada, porque é assim que ela se torna mais facilmente vítima dos políticos desonestos. Mesmo a estatística das ocorrências policiais não é confiável. As vítimas de furto e roubo, em grande número, nem mais se dão ao trabalho de comparecer ao Distrito Policial para o registro do crime, tal é o descaso a que são submetidas.

Por absurdo, o que tem ocorrido é que, mesmo quando se cuida de crime grave, não tem sido rigorosa a apuração dos fatos, pois a polícia, pelas deficiências que lhe são impostas, não tem baseado sua investigação em provas de natureza científica, o que se reflete também na comprovação da materialidade dos delitos, que só apresenta maior qualidade técnica e certeza nos casos de vitimas de maior poder político ou econômico.

As investigações presididas pelo MP, ao contrário, mesmo quando instauradas para a apuração de ilícitos civis, acabam sendo compostas de trabalhos científicos da maior confiabilidade, por isso servindo muitas vezes de base para a condenação dos responsáveis também na ação penal correspondente.

Diante da preocupante ausência da Segurança Pública, com muita freqüência, a vítima se dirige ao MP para reclamar diretamente uma providência, quando não para denunciar constrangimentos ilegalmente praticados por policiais, inclusive contra crianças e adolescentes. Essa é a realidade.

Dizer, assim, que cabe à Corregedoria da própria polícia investigar policiais por abusos, em todas as hipóteses, é pura ingenuidade. É desconsiderar que esse órgão não tem conseguido a necessária independência nem para reprimir as ilegalidades mais visíveis.

É fato. Note-se que, entre os princípios que devem ser obrigatoriamente seguidos pela Administração Pública, estão os da legalidade, moralidade e eficiência (CF, art.37). Pois bem. Dispõe o Estatuto dos Servidores Públicos, de outro lado, ser proibido ao agente público o exercício de qualquer atividade incompatível com o exercício do cargo ou função (Lei nº8.112/90, art.117, XVIII), bem como exercer, mesmo fora das horas de trabalho, emprego ou função em empresas, estabelecimentos ou instituições que tenham relações com o Governo, em matéria que se relacione com a finalidade da repartição ou serviço em que esteja lotado (Lei Estadual nº10.261/69, art.243, IV).

Apesar disso, é do conhecimento geral que oficiais militares e delegados de polícia (inclusive recrutando seus subordinados para o serviço) são hoje empresários na área de segurança privada, setor que não tem o menor interesse por uma Segurança Pública eficiente, por óbvios motivos. Evidente que são atividades incompatíveis. Se o MP não investigar casos como esses, quem investigará?

De qualquer modo, não há dúvida de que, melhor aparelhada, a polícia tenderá a ser mais eficiente, deixando de se prestar ao infeliz papel de colocar na cadeia somente os pobres, verdadeiras vítimas do sistema.

Repita-se, os poderes de investigação criminal do MP estão expressos na CF, que lhe impõe a atribuição de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art.127). Ora, como órgão da Administração Pública direta do Estado, não pode a Instituição furtar-se do dever de obediência aos princípios da legalidade, moralidade e eficiência (CF, art.37).

Não há, pois, observância a esses princípios, se o MP ficar de braços cruzados quando os demais órgãos públicos, incluindo a polícia, deixarem de investigar infrações à lei penal de que tenha conhecimento. Faltará com a legalidade se nada fizer para defender a ordem jurídica. Faltará com a moralidade administrativa se se omitir quando os demais órgãos públicos competentes incidirem em desídia. Faltará com a eficiência se não defender o interesse social, investigando e responsabilizando o infrator.

O que fará o MP ao receber um procedimento investigatório do Tribunal de Contas, apurando concretamente a conduta civil de improbidade administrativa e o crime de peculato de um prefeito? Deverá promover somente a ação civil de improbidade, remetendo à polícia cópia das provas, ainda que mais do que suficientes para a acusação, tão somente para serem convalidadas pela Polícia? O mesmo haverá de ocorrer se o Tribunal de Justiça, por exemplo, encaminhar ao MP procedimento investigatório em que apurou ter um juiz praticado determinado crime? Deverá o MP pedir que a polícia convalide as provas que, como dizem alguns equivocadamente, só podem ser colhidas pela polícia? Evidente que não, até diante do que expressamente dispõe a lei a respeito (CPP, art.40).

Além disso, caracteriza-se a atividade do Ministério Público pela independência funcional (CF, art.127, §1º), o que aponta para o fato de que, tendo a legitimidade privativa para a promoção da ação penal pública (CF, art.129, I), não está obrigado a seguir as conclusões policiais, podendo, à evidência, complementar investigações já iniciadas por inquérito policial (CF, art.129, VIII), além de poder até dispensar tal peça de informação (CPP, arts.39, §5º, 40 e 46, §1º).

Aliás, seria um absurdo que o Promotor, de posse de um inquérito policial concluído, tivesse que devolvê-lo à Polícia apenas e tão somente para formalizar depoimentos de testemunhas que o procuraram ou incluir documentos que a ele foram encaminhados diretamente. Ora, simples raciocínio dedutivo aponta para a possibilidade de o MP colher provas, completando ou substituindo as conclusões policiais. A propósito, inúmeros casos de erro policial apurado pelo MP, ora contra, ora a favor do acusado, já vieram a público, falando por si.

Quando determina a Constituição, de outra parte, que cabe ao MP zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos nela assegurados, promovendo as medidas necessárias à sua garantia (CF, art.129, II), não se pode esquecer que entre tais medidas, muitas vezes, está a investigação, ou seja, a apuração dos fatos a que se refere o preceito.

Ao dizer que é função do MP promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (CF, art.129, III), a Constituição deixou bem claro que o MP não só pode como deve investigar todos os fatos que envolvem tais áreas. E não se investiga se não há dúvida, de modo que, ao se iniciar uma investigação num inquérito civil, não se sabe inicialmente a gravidade da conduta dos agentes investigados. Se a Instituição apurar ilícito civil e, ao mesmo tempo, a conduta comprovada configurar também uma infração penal, não poderá simplesmente fechar os olhos e considerar nulas as provas para a persecução criminal, embora de origem lícita, porque se de origem ilícita fossem não poderiam instruir nem sequer ação civil pública.

Ora, as provas que não podem ser admitidas são aquelas obtidas por meio ilícito ou imoral. E não é o caso.

Ao estabelecer a Constituição que pode o MP expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los (CF, art.129, VI), não quis a Carta superior senão deixar expressamente reconhecidos os poderes de investigação, em qualquer campo, civil ou criminal, porque aí não fez o dispositivo qualquer distinção. E o que a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir.

Ainda, ao impor ao MP o controle externo da atividade policial (CF, art.129, VII), não fez a CF qualquer restrição, numa nítida indicação de que tal controle não exclui a investigação do que a polícia, embora tendo o dever, não investigar ou vier a investigar sem o rigor exigível, ainda mais quando prevê que pode a Instituição requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial (CF, art.129, VIII). Note-se que, nesse último dispositivo, faculta a CF a tomada de duas providências bem distintas. Uma, é requisitar a instauração de inquérito policial, cuja condução é de exclusiva atribuição da polícia. Outra, é requisitar diligências investigatórias, que não se limitam à hipótese de inquérito já instaurado, porque aquela não seria a melhor redação se esse fosse o espírito do dispositivo. Aliás, nem se resume à requisição de diligências de agentes policiais, mas de qualquer órgão que dispuser de melhor aparelhamento para responder às indagações do MP, como, por exemplo, o Tribunal de Contas ou até órgãos de perícia e pesquisa científica.

Como foi dito, estão manifestamente expressos na CF os poderes de investigação do MP. Só não vê quem, por desaviso, conveniência ou má-fé, não quer.

Terceiro, sendo a autoridade policial designada e removida a critério e à conveniência do governante, não se pode comparar a eficácia probatória da investigação por ela produzida com aquela presidida pelo MP, representado por agentes dotados de todas as prerrogativas da magistratura.

Evidente que o ideal seria que a Polícia, cumprindo o seu dever, investigasse todos os crimes e agentes, por mais poderosos, com profundidade e isenção. Ao MP restaria a cômoda função de analisar a suficiência ou não das peças de informação. Sucede que a Polícia se ressente da completa ausência do Estado em todos os campos de sua atividade, não contando com os necessários recursos materiais e humanos para desempenhar a contento suas funções, além de tradicionalmente se mostrar muito mais vulnerável às ingerências políticas e econômicas, dada a falta de independência.

Justamente por isso, nunca antes na história do país, poderosos agentes políticos e econômicos da sociedade foram investigados pela exclusiva ação da polícia, passando a ser encaminhados às barras dos tribunais só depois que a Constituição Federal de 1988 ampliou os poderes de ação do Ministério Público, incluindo logicamente os de investigação em todas as esferas de sua atuação.

Em verdade, não se arroga o MP o direito de substituir a polícia. Pelo contrário, tem nos últimos anos, quando percebe timidez dos organismos de Segurança Pública, estimulado a atividade de investigação policial, até mesmo emprestando-lhe o apoio decorrente de suas prerrogativas.

Custa acreditar, então, que diverso entendimento possa prevalecer, visto que representaria retrocesso para a longa e penosa trilha que o Estado brasileiro vem transpondo em sua história para firmar o regime republicano e democrático.

É que pressupõe a República a submissão de todos à lei e a absoluta transparência da coisa pública. Já a democracia não sobrevive sem a participação popular na atividade do Estado, seja através da atuação política ou funcional, seja através da fiscalização dos atos de governo. Tanto seria impossível fiscalizar sem obter as informações necessárias, como seria obtê-las sem investigar. Nesse contexto, investigar por qualquer dos órgãos incumbidos de zelar pelos seus interesses é incontestável direito do povo, que o exerce por meio da instituição que representa sua voz nos tribunais.

Quarto, o fato de ser parte ou acusador na ação penal não descredencia o MP para a investigação, pois as provas do inquérito são todas repetidas pelo Judiciário, que confere a sua validade, podendo, no final, o próprio MP opinar pela absolvição do réu, como tem feito corriqueiramente.

Por isso é que não vinga o argumento da ausência de contraditório na fase inquisitorial como uma irregularidade. A investigação, pois, não passa de simples apuração de fatos sem conseqüência automática para os envolvidos ou interessados. O máximo que disso pode decorrer é o ajuizamento de demanda judicial e, se isso realmente acontecer, aí sim, por conta dos efeitos de uma possível condenação, deve o Judiciário, como tem procedido, assegurar a produção das provas sob o necessário critério da ampla defesa.

Aliás, não é verídica a afirmação de que teria o MP interesse em determinado resultado da ação penal ou, muito menos, que invariavelmente deseje a condenação. É certo que o Promotor de Justiça já foi confundido com os carrascos da acusação representados pelos espetáculos cinematográficos do Tribunal do Júri norte-americano. No entanto, os verdadeiros profissionais do Direito brasileiro, se não perderam ainda, deveriam ter perdido essa ilusão. É o MP nacional hoje o advogado do povo em Juízo. É o defensor dos interesses de toda a sociedade. Tanto que tem ajuizado incontável número de ações civis públicas para obrigar o Estado a cumprir a lei e destinar recursos à educação, à saúde pública, à proteção da infância e juventude, bem como do idoso e dos portadores de deficiência física. Tem promovido medidas judiciais para a preservação ambiental e proteção dos consumidores, sem contar as tão importantes ações civis públicas de responsabilidade por ato de improbidade administrativa contra autoridades de todos os escalões da República.

Assim, mesmo quando acusa alguém perante os Tribunais, em razão da prática de crime, o representante do MP só o faz na defesa da ordem jurídica e do interesse público. Não é meramente acusador do criminoso. É o defensor da sociedade contra alguém que, num determinado momento, causou grave dano ao bem comum. Nunca age, de qualquer modo, com o espírito da perseguição, porque jamais se despoja da condição de fiscal da lei, não podendo pedir nem mais nem menos do que a lei permite. O seu limite é sempre o da legalidade.

Tanto que, condenado o réu, tem o MP exercido importante fiscalização do tratamento que lhe é imposto no presídio, com a adoção de freqüentes medidas judiciais objetivando garantir, até mesmo por meio de pedidos de interdição de celas e cadeias, tratamento humano às pessoas que cumprem pena de prisão.

Ademais, é muito grande o número de inquérito policiais que são arquivados por despacho do MP, exatamente porque não lhe interessa e nem seria correto acusar alguém com fundamento em prova duvidosa do crime ou de sua autoria, como também não são raras as vezes em que, pela mesma razão, pede a absolvição de quem já está sendo submetido a processo judicial, como se anotou.

Não é por outro motivo que, investigando a própria polícia, apura por vezes a indevida perseguição e exposição de inocentes no inquérito policial já concluído, como ocorreu, por exemplo, no famoso caso do Bar Bodega.

Quinto, quem atentar para os dispositivos pertinentes da CF (art.127 e 129), do CPP (arts.4º, parágrafo único, 40, 46, §1º, 47) e da LOMP (Lei nº8.625/93, arts.26/29), não dirá que falta regulamentação aos poderes de investigação do MP e que eventuais abusos não passam pelo controle jurisdicional, por meio de habeas corpus ou mandado de segurança.

De fato, ao reconhecer que a competência da polícia não excluirá a de autoridades administrativas na investigação criminal, a lei processual, ao mesmo tempo, rechaçou o alegado poder exclusivo da polícia para investigar crimes e impôs a qualquer autoridade que investigar o dever de seguir os seus preceitos (CPP, art.4º, parágrafo único).

Registre-se, ainda, que só argumenta com ausência de regulamentação legal da investigação criminal presidida pelo MP quem não comparou tais poderes de investigação com os do próprio Judiciário. É que a Lei Orgânica da Magistratura dispõe que os crimes praticados por juiz são investigados pelo Tribunal a que o suspeito está funcionalmente vinculado (Lei Complementar nº35/79, art.33, parágrafo único), sem, entretanto, estabelecer regras de procedimento, deixando, então, para o regimento interno do Tribunal essa incumbência.

Não se pretende dizer que há ilegalidade nisso, porque é evidente que o Judiciário, assim como o MP, é obrigado a seguir rigorosamente as normas do CPP a respeito. De qualquer modo, se se entender que só a polícia pode investigar crimes, também o Judiciário estaria até agora, dezesseis (16) anos depois da promulgação da CF-88, procedendo de forma a desrespeitar preceitos constitucionais.

Ademais, quem diz que o MP estaria a fazer ilegalmente a condução coercitiva de testemunhas que se recusam a atender sua notificação para depor, desconsiderou os dispositivos pertinentes das Leis Orgânicas dos Ministérios Públicos da União e dos Estados ( Lei Complementar nº75/93, art.8º, I e Lei nº8.625/93, art.26, I, a), que legitimam tal providência, desde que justificada.

Sem qualquer substância ainda o argumento de que o inquérito do MP, por não ser registrado em cartório judicial, perderia a credibilidade necessária.

A anomalia não está aí, mas sim na indevida intervenção judicial nos inquéritos policiais ou peças de investigação, ainda que pelo mero registro e pelos despachos ordinatórios neles proferidos. Não pode quem vai julgar a causa correspondente imiscuir-se na investigação dos fatos. A investigação judicial deve ocorrer apenas e tão somente se instaurada concretamente a ação penal, oportunidade em que o juiz competente reproduz e confere as provas inquisitorialmente colhidas, já então sob o amparo do contraditório, para a importantíssima finalidade do julgamento.

Na verdade, de origem curiosa, tal aberração – distribuição de inquérito policial em cartório judicial – decorreu da impossibilidade à época da edição do CPP, há mais de meio século, de o MP controlar entradas e saídas de inquéritos, visto que desprovido então de estrutura cartorária própria. Em seu gabinete, não contava o Promotor Público com espaço e auxiliares para o serviço de expediente. O jeito encontrado pelo legislador foi emprestar ao MP o cartório judicial. E, como não seria lógico e nem conveniente que o MP exercesse comando sobre o cartório judicial, previu-se o controle de entrada, saída e arquivamento de inquéritos policiais por despacho do juiz.

Agora, todavia, a situação é bem outra. Já dispõe o MP de estrutura para a operacionalização desse serviço. Tanto que tem se desempenhado razoavelmente bem do controle dos inquéritos civis sem a necessidade de utilização da estrutura do expediente judiciário.

Nesses termos, não pode ser bem intencionada a assertiva de que os procedimentos de investigação instaurados pelo MP não são submetidos a registro. Todos, ao contrário, são registrados e compostos por peças que entram pelo protocolo institucional para possibilitar o devido acompanhamento pelos interessados, nos exatos termos do que ocorre com os procedimentos instaurados pelo Judiciário.

A propósito, se o controle externo da Polícia deve ser realizado pelo Ministério Público, destinatário dos inquéritos policiais, aí utilizados como instrumento para a defesa da ordem jurídica e da sociedade e, ainda, se deve o Judiciário distanciar-se da investigação para preservar a sua indispensável isenção com o fim de tornar possível o mais justo veredicto, nem está mais conforme o comando constitucional o ainda praticado registro e controle do inquérito policial pelo juiz.

De tudo que se expôs, não se pode extrair outra conclusão. Trata-se, pois, de mais um capítulo da campanha que antes tentou impor ao MP a lei da mordaça, querendo agora submetê-lo à lei da algema. Não basta que seja ele forçado a não divulgar o que investiga. É necessário que deixe de investigar.

Não seria demais anotar que a investida do três Poderes e outras instituições públicas e privadas contra as prerrogativas do MP vem crescendo na exata proporção da intensidade que se imprimiu nos últimos anos justamente na investigação de infrações cometidas pelos mais influentes agentes políticos e econômicos da República, começando pela tentativa de suprimir o direito de quebra de sigilo bancário e fiscal de autoridades e de tornar mais abrangente o foro privilegiado de agentes públicos, pela federalização dos direitos humanos, pela absurda contagem de prazo processual para o MP no dia da remessa do processo pelo Tribunal e não de sua intimação pessoal, a súmula vinculante, entre outros injustos ataques.

Ora, tudo não passa de um golpe contra a cidadania, visto que nada mais é o MP do que instrumento do povo na defesa do Estado Democrático de Direito.

Para completar, a Instituição ainda tem sido vítima da crítica incoerente. Se arquiva o inquérito, a vítima afirma que é porque está beneficiando o suspeito. Se ajuíza a demanda, assevera o réu que a única razão é o espírito da perseguição. Ora se diz que o MP abusa porque divulga investigações, ora porque submete-as ao decreto do sigilo.

Mentirosa a afirmação de que agentes do MP procuram a imprensa, fabricam fatos e se utilizam da notícia correspondente para forçar acusações temerárias, até porque seria o mesmo que subestimar a inteligência dos jornalistas e do Judiciário. Para uma condenação, não basta a reportagem jornalística, mas a confirmação dos fatos a partir do conjunto probatório exigido pela lei processual.

Não procura o MP a imprensa que, aliás, nem suportaria a enorme carga se todas as milhares de investigações conduzidas pela Instituição lhe fossem encaminhadas para divulgação. Menos de 3% dos casos, na verdade, é que alcançam publicidade. É a imprensa que se dirige diariamente ao MP que, felizmente e a bem da verdade, passou a abrir-lhe as portas nos últimos anos, seja por considerá-la o mais legítimo canal para dar satisfação de seus serviços à coletividade, seja pelo profundo respeito que tributa à plena liberdade de informação, assegurada constitucionalmente.

De qualquer maneira, abusos excepcionais dos representantes do MP não podem justificar a destruição da Instituição, assim como os de alguns jornalistas não podem comprometer o interesse social pela imprensa livre. Todos, a propósito, se sujeitam ao regime jurídico vigente, que já regula a responsabilidade civil e penal pelos ilícitos que venham a cometer.

É bom esclarecer que é exatamente por isso que o MP é dotado de todas as prerrogativas necessárias para a sua independência. Se divulga fatos do seu domínio é em respeito ao princípio da publicidade da Administração Pública (CF, art.37) e do processo (CF, art.93, IX), mesmo porque deve prestar contas ao último e mais legítimo destinatário de seus serviços, o pagador de tributos, o tão sacrificado cidadão comum do povo. E se impõe sigilo é sempre no interesse público, para impedir que o investigado conheça os passos do inquérito, antecipando-se na destruição de provas, mas com fundamentação legal em todas as hipótese (CPP, art.20).

Para concluir, afinal, como a Justiça Criminal se baseia no princípio da verdade real, não importa quem deve revelar a verdade, mas que seja ela efetivamente apurada para que, em benefício de todos, os delinqüentes, os inescrupulosos exploradores dos recursos populares e, especialmente, os protagonistas de organizações criminosas sejam correta e severamente condenados e aos inocentes seja assegurada a tão sagrada liberdade.

Airton Florentino de Barros é procurador de justiça em SP e presidente do Movimento do Ministério Público Democrático.

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