Teste de integridade proposto pelo MPF e incompatível com a Constituição

Autor: Rômulo Moreira (*)

 

Como foi amplamente divulgado, o Ministério Público Federal apresentou as chamadas “Dez Medidas Contra a Corrupção”, entre as quais encontra-se a possibilidade da realização de um “Teste de Integridade” dos agentes públicos no âmbito da Administração Pública (2º tópico da 1ª Medida), mais uma importação do sistema da common law (do tipo “complexo de vira-latas”).

A origem do chamado “Teste de Integridade”, possivelmente, teve origem no Departamento de Polícia de Nova Iorque, em julho de 1994, a partir das recomendações da Commission to Investigate Allegations of Police Corruption and Anti-corruption Procedures of the Police Department, sob o incentivo do então Prefeito Rudolph W. Giuliani (1994/2001), de triste lembrança (adepto da política criminal “Lei e Ordem”), e hoje cabo eleitoral de Donald Trump.

A partir da experiência norte-americana, o Reino Unido também passou a empregar o Quality Assurance Check, a partir do ano de 1999, criado especialmente para fiscalizar as atividades da Polícia londrina.

Em 2006, também foi implementada na Austrália, por meio do Law Enforcement Integrity Commissioner Act.

Aliás, o Secretariado do Conselho da Europa já recomendou a adoção da referida medida como uma verdadeira “ferramenta de guerra” (como denominaram) contra a corrupção sistêmica.

São exemplos, contudo, que não deveriam ser seguidos, pois o que é bom para eles, não é, necessariamente bom para nós. Aliás, esta coisa odiosa de copiarmos o “que vem de fora”, “só porque vem de fora”, assusta-nos, principalmente quando são institutos e categorias importados de sistemas jurídicos completamente distintos, como o anglo-saxão.

O “Teste de Integridade”, basicamente, consiste na permissão legal de que as autoridades (ir) responsáveis pela persecução penal (Polícia e Ministério Público) possam simular uma situação qualquer, ofertando vantagens indevidas para algum servidor público, justamente com o fim de testar sua capacidade de resistir a uma suposta atuação delitiva. É uma tentativa, portanto, de vigiar os servidores públicos como se se tratassem todos de um bando de corruptos em potencial.

Dentre os seus inúmeros inconvenientes e a sua manifesta inconstitucionalidade, como visto, esta medida visa a combater delitos sequer iniciados, sepultando um dos mais preciosos dogmas penais, segundo o qual a culpa só deverá ser imputada a alguém pela prática de uma conduta objetiva e subjetivamente típica, antijurídica e culpável, além de fazertabula rasa da conhecida máxima de Ulpiano: cogitationis poenam nemo patitur, pois não houve, objetivamente, a prática, sequer, de atos preparatórios. Ora, a (pré) disposição para a prática de um ilícito, seja de índole civil ou penal, não pode ser punida como se já houvesse a sua consumação ou efetiva tentativa.

Pretende-se, portanto, a punição de uma suposta intenção criminosa, a partir de uma farsa empregada pelo próprio Estado. Uma encenação, enfim!

Se analisarmos mais a fundo esta malfadada medida, observamos que ela parte da teoria lombrosiana  de que, a partir  do caráter do agente ou de sua personalidade, possa-se aferir a potencial prática de um delito contra a Administração Pública. Será, na verdade, acaso implementada, uma verdadeira “caça às bruxas”, disfarçada de legalidade, além da consagração do Direito Penal do Autor, ambas de feição nitidamente fascista.

Esta medida também nos remete à velha discussão entre o “flagrante esperado” e o “flagrante preparado”, o primeiro permitido e o segundo ilegal, tal como sumulado pelo Supremo Tribunal Federal (no Enunciado nº. 145). No primeiro caso (flagrante esperado) não há qualquer tipo de simulação, já que o crime seria praticado, independentemente da intervenção (ilegítima) de um agente do Estado. No segundo caso (flagrante preparado), ao contrário, existe a figura do chamado “agente provocador”, tratando-se de crime impossível (art. 17 do Código Penal), como afirma o referido Enunciado (inspirado na tese de Aníbal Bruno), ou, como preferia Nelson Hungria, a prática de um “crime putativo por obra do agente provocador”, “um crime de ensaio”, no qual “o seu autor é apenas o protagonista inconsciente de uma comédia (…), pois, sob o aspecto objetivo, não há violação da lei penal, senão uma insciente cooperação para a ardilosa averiguação da autoria de crimes anteriores, ou uma simulação, embora ignorada do agente, da exterioridade de um crime.” Ora, diz Hungria, “um crime que, além de astuciosamente sugerido e ensejado ao agente, tem suas consequências frustradas por medidas tomadas de antemão, não passa de um crime imaginário. Não há lesão, nem efetiva exposição a perigo, de qualquer interesse público ou privado.” Mutatis mutandis, é o que se passaria com o “Teste de Integridade”.

Óbvio, que não há aqui o chamado flagrante esperado, pois, neste caso, está “previamente conhecida a iniciativa dolosa do agente, a este apenas se dá o ensejo de agir, tomadas as devidas precauções”, como afirma Hungria.

Aliás, há algo ainda mais grave na referida proposta, pois, ao teatralizar uma determinada situação, o Estado estará, na verdade, incentivando a prática criminosa, o que é inaceitável! Como admitir que o Estado tenha a iniciativa de sugerir a um seu funcionário o pagamento de uma propina, por exemplo?

Ao que parece, esta medida confunde Direito e Moral (a respeito, conferir os vários escritos de Lenio Streck), pois nem sempre o que é moralmente reprovável poderá ser um relevante penal, muito pelo contrário (que o diga o incesto). Não estou aqui entrando em terreno movediço, é dizer, o limite entre o Direito e a Moral. Não é o caso. São coisas distintas. Estamos falando de Direito e Ética. É o caso!

Uma outra grave distorção da medida proposta é que ela prevê que a realização do “teste” e seus resultados sejam mantidos em segredo, sem que o agente público tenha o direito de saber que foi alvo da simulação, seguindo o modelo adotado pela Compliance (artigo 11, II, da Lei 9.613/98), incentivando-se um clima de absurda desconfiança entre os agentes públicos, o que não tem nada a ver com a adoção do Accountability.

Ademais, esta medida seria usada, não somente no âmbito das investigações criminais e de atos de improbidade administrativa (quando dependeria de autorização judicial, nos termos do artigo 9º do Projeto), mas também no âmbito do Direito Administrativo (já agora sem a necessidade de qualquer autorização judicial — artigo 4º).

E, há algo mais grave, pois, pelo projeto, permite-se que o representante do Ministério Público mantenha em sigilo absoluto a fonte de informação responsável pelo início da investigação criminal, desde que isso seja essencial à obtenção de dados ou preservação da segurança do noticiante, violando, evidentemente, o contraditório, pois, como se sabe,  a acusação não pode sonegar do acusado os elementos de informação relevantes para o exercício amplo do direito à defesa. Ademais, o artigo 5º, IV, da Constituição Federal veda o anonimato (conferir a Questão de Ordem suscitada no Inquérito 1.957/PR, julgado no Supremo Tribunal Federal, além da Súmula Vinculante 14).

O “Teste de Integridade”, para além das questões acima suscitadas, comporta uma análise acerca de sua compatibilidade ética com o Estado Democrático de Direito. Como diz Hassemer, “não é permitido ao Estado utilizar os meios empregados pelos criminosos, se não quer perder, por razões simbólicas e práticas, a sua superioridade moral.”

Se considerarmos que a normatividade de um Estado Democrático de Direito é o último bastião do seu povo (e não o Poder Judiciário, como se diz, que cumpre apenas observá-la, sem ativismos e decisionismos populistas), no sentido de que as proposições enunciativas nela contidas representam um parâmetro de organização ou conduta das pessoas (a depender de qual norma nos refiramos se, respectivamente, de segundo ou primeiro graus, no dizer de Bobbio), definindo os limites de suas atuações, é inaceitável que este mesmo regramento jurídico preveja esta “bisbilhotice”  em flagrante incitamento à transgressão de preceitos éticos intransigíveis que devem estar, em última análise, embutidos nas regras legais exsurgidas do processo legislativo/constitucional.

Ademais, o uso desse expediente denota fraqueza do legislador que dela abre mão para proteger seus cidadãos. A lei, como já foi dito, deve sempre e sempre indicar condutas sérias, eticamente relevantes e aceitáveis, jamais ser arcabouço de estímulo a perfídias, deslealdades, aleivosias, ainda que para calar a opinião pública (ou publicada) ou satisfazer aos setores economicamente privilegiados da sociedade.

Não podemos arriscarmo-nos ao perigo, já advertido e vislumbrado pelo poeta Dante Alighieri, lembrado por Miguel Reale, quando afirmou que o “Direito é uma proporção real e pessoal, de homem para homem, que, conservada, conserva a sociedade; corrompida, corrompe-a.“ Como se pode exigir do governado um comportamento cotidiano decente, se a própria lei estabelecida pelos governantes permite e galardoa um procedimento indecoroso? Como fica o homem de pouca ou nenhuma cultura (o que não o diminui, por evidente, muito ao contrário) ou mesmo aquele desprovido de maiores princípios/valores, diante dessa permissividade aética ditada pela própria lei, esta mesma lei que, objetiva e obrigatoriamente, tem de ser respeitada e cumprida sob pena de sanção? Estamos ou não estamos diante de um paradoxo?

Tão somente para se argumentar, pode-se dizer que o fim visado pela proposta (o combate à corrupção), justificaria a sua utilização, ou, em outras palavras, o fim legitimaria o meio. Ocorre que tal afirmação é de toda aética, aliás, próprio do sistema político defendido pelo escritor e estadista florentino Niccolò Machiavelli (1469-1527), sistema este dito de um realismo satânico, na definição de Frederico II em seu Antimaquiavel, tornando-se sinônimo, inclusive, de procedimento astucioso, velhaco, traiçoeiro, etc., etc… Chega de eficiência no Processo Penal!

Óbvio que o Sistema Jurídico deve se revestir de toda uma estrutura e autonomia, a fim de poder realizar seu trabalho a contento, sem necessitar de expedientes escusos na elucidação dos delitos. A Polícia e o Ministério Público, por exemplo, têm a obrigação de, por outros meios (menos eficientes, é bem verdade…), valer-se de meios efetivos para a consecução satisfatória de suas finalidades (que não são as mesmas do Sistema Social, Econômico e Político, diga-se de passagem).

Em nome do combate à corrupção, propõe-se um sem número de novos comandos legislativos sem o necessário cuidado com o que se vai prescrever. Não podemos nos valer de meios esconsos, em nome de quem quer que seja ou de qualquer bem, sob pena, inclusive, de sucumbirmos à promiscuidade da ordem jurídica corrompida.

E, já concluindo, lembremos: 1) O artigo 5º, LVI da Constituição Federal, estabelece expressamente que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. 2) O mesmo artigo 5º, LIV, impõe a observância do devido processo legal para que alguém seja privado da sua liberdade. 3) O devido processo constitucional exige a obediência aos princípios da República Federativa do Brasil (que se constitui em um Estado Democrático de Direito), estabelecidos expressamente na Constituição, dentre os quais, o respeito à cidadania, à dignidade da pessoa humana e a prevalência dos direitos humanos (artigos 1º, caput, II e III e 4º da Constituição). 4) Ademais, constitui um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil e do Estado Democrático de Direito, constituir uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, I, da Constituição). 5) O artigo 157 do Código de Processo Penal (alterado em 2008, pela Lei 11.690) estabelece que deve ser entendida como prova ilícita aquela obtida em violação a normas constitucionais, devendo ser desentranhada dos autos. 6) Se o “Teste de Integridade”, por tudo quanto foi dito acima, fere aqueles princípios e objetivos da Constituição Federal, ela é uma prova ilícita. 7) “O Estado, enquanto reserva ética, não pode assumir este papel vingativo”. Isso “somente serve para gerar mais violência e degradação dos valores éticos mínimos para a coexistência social”.

Mutatis mutandis, podemos seguir este raciocínio de Juarez Cirino dos Santos, quando trata da possibilidade da interceptação telefônica:

“Se um procedimento clandestino de investigação criminal, autorizado por exceção à regra da inviolabilidade das comunicações, lesiona os princípios constitucionais superiores (a) do devido processo legal, mediante radical negação da igualdade de armas entre acusação e defesa, (b) do contraditório, que define o espaço exclusivo de produção da prova válida no processo penal, indispensável para avaliação crítica da legalidade da prova pela acusação e defesa, (c) da ampla defesa, excluída da produção de prova criminal clandestina, da qual não pode participar, (d) da proteção contra autoincriminação, mediante invasão enganosa ou ardilosa das esferas garantidas da privacidade e da intimidade do cidadão, (e) da presunção de inocência, substituída por odiosa presunção de culpa contra o cidadão, então o procedimento da interceptação de comunicações telefônicas, instituído em direta oposição a garantias constitucionais superiores do cidadão no processo penal, é inconstitucional.”

Portanto, será mesmo o “Teste de Integridade” compatível com a Constituição Federal? Não! Na verdade, trata-se de mais um aspecto do neoliberalismo que “não destrói apenas regras, instituições, direitos. Ele também produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades. Em outras palavras, com o neoliberalismo, o que está em jogo é nada mais nada menos que a forma de nossa existência, isto é, a forma como somos levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e com nós mesmos.” Enfim, “o neoliberalismo emprega técnicas de poder inéditas sobre as condutas e as subjetividades.”

 

 

 

 

 

Autor: Rômulo Moreira é procurador de Justiça e professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador (Unifacs). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e membro-fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.


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