Autor: Carlos André Studart Pereira (*)
Para mim, a sessão plenária do Supremo Tribunal Federal, de 18 de novembro de 2015, em que se julgou o RE 606.358[1], foi histórica, e, por isso, não poderá ser esquecida jamais.
Apesar de os noticiários e as redes sociais colocarem como grande protagonista da iniciativa moralizadora o ministro Gilmar Mendes, na verdade, o seu colega Teori Zavascki foi que deu o piparote inicial, afirmando o que se segue[2]: “Eu só gostaria de fazer uma observação, senhor presidente. Eu penso que está na hora de colocar o ponto final no Brasil essa questão do teto. Ultimamente nós estamos saindo por outros[3]subterfúgios. Não estamos mais chamando de vantagem pessoal, nós estamos chamando de verbas indenizatórias. Que é o modo de sair do teto. Eu penso que está na hora da sociedade brasileira respeitar a Constituição”.
Depois de discussões sobre outras questões, voltou-se ao tema das verbas indenizatórias, tendo o ministro Gilmar Mendes feito as seguintes ponderações: “Uma questão sobre a qual nós devemos meditar. De fato, temos verbas indenizatórias […] Na verdade, passa-se a fazer uma interpretação da Constituição segundo a lei e passa-se a chamar de verba indenizatória opções que são tipicamente vencimentais […] E nós estamos assistindo isso em vários lugares. Passa-se a chamar de verbas indenizatórias, embora elas passem a compor rotineiramente…”. Houve, neste momento, uma interrupção oportuna por parte do ministro Marco Aurélio: “Mas decorre, ministro, do aspecto irreal do teto. Então há o drible. E se passa a emprestar nomenclatura indenizatória a parcelas que não têm essa natureza”. Volta então a falar o ministro Gilmar Mendes: “E o fenômeno que acaba acontecendo é que os únicos que observam o teto são aqueles que estão no teto”. Vem a ministra Cármen Lúcia e complementa: “Hoje o único servidor que observa o teto é o ministro do Supremo”.
Gilmar Mendes e Teori Zavascki também manifestaram preocupação com a gratificação por exercício cumulativo de jurisdição na Justiça Federal, instituída pela Lei 13.093/2015 e regulamentada pela Resolução 341 do CJF. Nesse ponto, espanta-me o fato de que dois membros da mais alta corte do país somente agora, meses depois da edição dos referidos atos normativos, venham falar dessa questão tão sensível, até porque ministro do Supremo não recebe esse tipo de vantagem, quando está substituindo um colega.
Pois bem, dada a palavra para a ministra Cármen Lúcia para o voto, a nobre magistrada falou algo muito pertinente: “Indenização é deixar indene, sem dano. Se não houve dano, não há que se falar em indenização, por óbvio. Aí é português. E, no entanto, sob o nome de verba indenizatória se paga o que não deve”. Aproveito essa oportunidade para traze a lume a questão do auxílio-moradia: estar-se-ia indenizando o que mesmo? Repito: desde quando a Administração tem a obrigação de custear a moradia daquele que trabalha onde está lotado? Não existe isso, pelo menos desde a Constituição de 1988!
Voltando ao julgamento. No momento específico do seu voto, ministro Gilmar Mendes, alfinetando a decisão do ministro Fux na AO 1.773, disse:“Conversávamos há pouco o ministro Teori e eu sobre, por exemplo, a questão do auxílio-moradia, que vem sendo pago, por exemplo, à magistratura em função da liminar pelo Ministro Fux, depois regulada pelo plenário. E como esse se generalizou; praticamente todos recebem, fora os tribunais superiores, talvez fora do Supremo Tribunal Federal, nós temos o seguinte quadro: de que tipo de verba nós tratamos? Claro, mimetizamos o Ministério Público. De que verba nós estamos tratando? É uma verba indenizatória? Mas ela é paga a todos?! Nesse caso os aposentados não poderão reivindicar? Veja a que ponto nós chegamos! Esses dias, me informaram em Goiás que já estão pagando cinco anos retroativos de auxílio-moradia.”
Mais adiante, fazendo uma crítica a essas autoconcessões, continuou o ministro: “Em nome dessa chamada autonomia econômico-financeira, vão se produzindo distorções que descumprem o elemento elementar do princípio da legalidade. Claro que em alguns casos estamos copiando o Ministério Público, que também abusou na construção do modelo! […] Esses dias chegou aqui ao tribunal uma discussão sobre se Procurador tem direito a andar de primeira classe ou de classe executiva. Pois é, vejam o delírio a que nós estamos submetidos. O País imerso numa crise, discutindo se paga ou não bolsa-família, e a gente discute se Procurador tem direito ou não a nadar de primeira classe. É muita coragem. Veja que nós perdemos os paradigmas! Nações ricas não têm esses paradigmas. Veja que nós perdemos alguns referenciais. E precisamos sofrer esse choque. […] Mas vamos acionar o desconfiômetro. Vamos olhar a legislação. Estamos fazendo uma leitura extravagante, extravagantíssima da ideia de autonomia administrativa e financeira. Não foi para isso que o Constituinte concebeu. […] Nós temos que fazer uma profunda autocrítica, porque estamos obviamente dando mau exemplo. E ficamos sem condições de olharmos para os nossos servidores, de olharmos para o jurisdicionado, diante dessas gambiarras que nós estamos produzindo: com liminares, com resoluções, com portarias. Portanto, Presidente, é urgente essa discussão, sob pena de nós conspurcarmos as nossas próprias atividades. É claro que é justo que se pague um salário adequado. Mas é importante que o salário seja legal, seja legítimo, e não fruto de concepções cerebrinas e de arranjos, de conveniência. Então é chegada a hora de nós discutirmos. E isso vale para nós e vale também para o Ministério Público evidentemente. Onde nós agora estamos nos mirando. Inclusive temos agora o fenômeno da equiparação agora ao Ministério Público. Claro, avançaram tanto. Mas, como esse sujeito depois vai se olhar no espelho e vai se dizer fiscal da lei?! […] Portanto esse é um tema que está na nossa agenda, não adianta nós fingirmos que não temos nada com isso”.
Mais à frente, falando novamente da gratificação por acúmulo de jurisdição e de processos, tece o ministro o seguinte comentário: “Isso se tornou uma pura remuneração. E daí a dificuldade inclusive de fazer a distinção feita agora pela ministra Cármen entre indenização e…”. Neste momento, a ministra por ele referida faz uma relevante intervenção: “Ou não, né, ministro? Eles sabem que não é indenização, eles pagam e estão sabendo que não é indenização”.
Não posso deixar fazer um registro a respeito: a questão é muito séria. A ministra afirmou que havia claramente uma ilegalidade. E aí? Nada vão fazer? Bem, o ministro Gilmar Mendes já deu a sugestão: “Considero relevantíssimo que o tribunal discuta tanto o tema das vantagens pessoais, como dessas verbas indenizatórias, chegando, talvez, até a um certo analitismo de dizer o que são e o que não são, porque nós generalizamos realmente essa prática, e nós estamos a ver que isso tem consequências. Consequências na comunidade. Nós perdemos a credibilidade. Nós perdemos a legitimidade, se nós incidirmos nesse tipo de equívoco. Isso é delicado. Eles vão lá e metem a mão no cofre. Isso não é digno das nossas atividades, de quem tem que zelar pela boa aplicação do direito”.
Finalmente alguém “imparcial” teve a coragem de tocar nesse assunto tão preocupante para a sociedade brasileira, que, muitas vezes, desconhece as imoralidades que estão sendo indevidamente toleradas.
Não poderia deixar também de fazer alguns comentários sobre a manifestação final do presidente da suprema corte. Bem ele começou falando da questão do reajuste para os servidores do Judiciário: “Recordo o esforço recentíssimo que eu, na qualidade de presidente da Corte, e o eminente Procurador-Geral, Rodrigo Janot, fizemos e empenhamos vivamente para que pudéssemos lograr um aumento que entendemos compatível com a situação atual do País, de 41,3%, enquanto os subsídios dos magistrados e dos procuradores ficou em apenas 5,5%”.
Com a devida vênia, essa última parte da fala do ministro Lewandowski não é verdade. De fato, em 2012, foi editada a Lei 12.771[4], que em seu artigo 1º dispõe o seguinte (previsão de aumentos escalonados, de aproximadamente 5% ao ano — o que ocorreu também com restante do funcionalismo federal):
Art. 1º O subsídio mensal de Ministro do Supremo Tribunal Federal, referido no inciso XV do art. 48 da Constituição Federal, observado o disposto no art. 4o, será de:
I – R$ 28.059,29 (vinte e oito mil e cinquenta e nove reais e vinte e nove centavos) a partir de 1o de janeiro de 2013;
II – R$ 29.462,25 (vinte e nove mil, quatrocentos e sessenta e dois reais e vinte e cinco centavos) a partir de 1o de janeiro de 2014; e
III – R$ 30.935,36 (trinta mil, novecentos e trinta e cinco reais e trinta e seis centavos) a partir de 1º de janeiro de 2015.
Ocorre que o inciso III acima transcrito foi revogado pela Lei nº 13.091[5], de 12 de janeiro 2015, que elevou o subsídio para R$ 33.763,00. Então a remuneração dos ministros (e, por conta do efeito cascata, de todos os magistrados e promotores brasileiros) sofreu, na verdade, em 2015, um reajuste de aproximadamente 15% e não de 5,5% (passou, portanto, de R$ 29.462,25 para R$ 33.763,00). Então claramente não procede o afirmado pelo presidente da suprema corte.
Em seguida, o preclaro magistrado foi tratar do auxílio-moradia. Mesmo após os irrefutáveis pronunciamentos acima mencionados, o presidente da suprema corte, demonstrando certo tom corporativista, assim se manifestou: “Quanto à polêmica relativa ao auxílio-moradia, eu queria dizer que é uma matéria, primeiro, que está prevista na Lei Orgânica da Magistratura, houve uma decisão precária, efêmera, desta Corte, no sentido de que esse auxílio era de fato devido”. Quer dizer, ministro, que tudo que estiver previsto em lei é devido, é constitucional, é moral? Não se recorda que a LOMAN é de 1979, quando não existia o regime de pagamento por subsídio? Quer dizer, ministro, que a decisão precária do ministro Fux representa o entendimento de todos da corte? Com a devida vênia, é muito triste ver esse tipo de argumento, ainda mais partindo do presidente do tribunal mais importante do país!
O procurador-geral da República, por ter sido também indiretamente mencionado nos debates, invocando o fundamento de que estava a esclarecer “matérias de fato” (o que não é o caso, pois não se estava julgando mais nada), registrou: “Para que não paire dúvida sobre a situação funcional do Procurador-Geral da República, eu me vejo na obrigação de prestar alguns esclarecimentos sobre a minha situação pessoal, funcional. Eu não recebo e nunca recebi auxílio-moradia, sequer o postulei. Eu nunca viajei em primeira classe em aeronave e nunca autorizei que assim alguém o fizesse. Eu não recebo, até por vedação legal, gratificação por substituição de ofício”. Com o devido respeito, nunca vi tanta demagogia. Não recebe auxílio-moradia (até porque seria indevido, pois ele está trabalhando no local de sua lotação: Brasília), mas um dos seus primeiros atos como procurador-geral foi editar a Portaria PGR/MPU 652 de 18 de setembro de 2013[6], ampliando os casos em que seria devido o auxílio-moradia para os seus colegas (ao ponto de passar a ser devido praticamente a todos os membros do MPU). É que tal ato normativo criou hipóteses de indenização que não necessariamente correspondem a localidades inóspitas ou de precária condição de vida, como previa a LONMP (por exemplo, cidades a 150 km das fronteiras brasileiras, como Erechim (RS), São Miguel do Oeste(SC) e Umuarama (PR) têm, respectivamente, IDH de 0,826, 0,801 e 0,800, à semelhança de países do primeiro Mundo)[7]. Ele não recebe auxílio-moradia, mas o CNMP, órgão por ele presidido, foi que editou a Resolução 117/2014, concedendo a todos os membros do Ministério Público tal benesse no valor de R$4.377,73.
Afirma o ínclito procurador que nunca viajou de primeira classe e nunca autorizou qualquer viagem nessa condição, mas foi ele mesmo que, um dia após tomar posse, por meio da Portaria PGR/MPU 651[8], de 18 de setembro de 2013, garantiu a seus colegas de carreira o direito de viajar ao exterior em classe executiva. E repetiu a proeza na Portaria 41[9], de 25 de junho de 2014, ato normativo este que, inclusive, foi alvo de ação por parte da Advocacia-Geral da União, No caso, foi deferido o pedido liminar[10] para suspender tal regalia, mas logo o Tribunal Regional Federal da 1ª Região cassou a decisão[11]. Por fim, quando à gratificação por substituição de ofício, tal parcela não faz o menor sentido para o procurador-geral da República, até porque seu subsídio já corresponde ao teto remuneratório. Enfim, fica o recado: não basta o chefe da instituição dar exemplo, ele tem que fazer prevalecer o seu exemplo.
Em arremate, o nobre ministro Fux assim se pronunciou: “Só porque houve uma citação específica, eu gostaria de dizer que eu não sou destinatário da decisão que eu deferi. Eu não recebo auxílio-moradia também. Mas vou colocar sub judice essa questão num momento próprio, tendo em vista que estamos deliberando a matéria na LOMAN”. Mais adiante, quando se estava discutindo a tese a ser fixada no julgamento, afirmou ele: “Terceiro lugar, todos nós estamos preocupados, assim como o ministro Gilmar, com esses penduricalhos que são criados”. Quanto moralismo, hein?! Momento próprio? Vai aguardar a finalização da minuta de projeto de lei orgânica, que se arrasta há anos, para só então colocar em pauta a questão do auxílio-moradia? Não seria mais coerente discutir o tema antes de se pretender inserir tal benesse em uma nova lei? Sem falar que tal pagamento está acarretando um custo anual de quase um bilhão de reais! A questão, portanto, não pode esperar. Qual é o medo de se colocar o tema em pauta, ministro? E dizer que está preocupado com os penduricalhos, quando, na verdade, fez inúmeras sugestões para aumentar o rol de privilégios no novo estatuto da magistratura[12]? Com certeza, estão achando que nós somos idiotas, bestas, ignorantes!
Por fim, apesar de a sessão não ter tido um final feliz, confesso que estou de alma lavada. Quero ver agora dizerem que os ministros da suprema corte estão invejando os seus pares de instâncias inferiores. Ah, e minha esperança de que essas imoralidades acabem vai aumentar com a ministra Cármen Lúcia na presidência da suprema corte!
[1] Em que se discutiu se vantagens pessoais se submetem ou não ao teto remuneratório.
[3] Não deu para compreender seguramente qual foi a palavra utilizada pelo Ministro.
[6]http://bibliotecadigital.mpf.mp.br/bdmpf/bitstream/handle/123456789/26161/PORTARIA%20PGR%20N%BA%20652-2013%20E%20ANEXO.pdf?sequence=3
[7]Ranking decrescente do IDH-M dos municípios do Brasil. Atlas do Desenvolvimento Humano. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) (2010).
[8]http://bibliotecadigital.mpf.mp.br/bdmpf/bitstream/handle/123456789/26181/PORTARIA%20PGR%20N%BA%20651-2013%20E%20ANEXO%20(1).pdf
[9]http://bibliotecadigital.mpf.mp.br/bdmpf/bitstream/handle/123456789/52202/Portaria%20PGR-MPU%20n%C2%BA%2041-2014%20-%20Di%C3%A1rias%20e%20Passagens.pdf?sequence=6&isAllowed=y
[10]http://www.conjur.com.br/2015-jul-29/justica-cassa-norma-autorizava-servidores-mpu-viajar-executiva
[12] Com base em reportagens, tomei conhecimento de algumas sugestões dadas exclusivamente pelo Ministro Fux. Seriam, dentre outras, as seguintes:
– O próprio STF poderia, sem a participação do Congresso Nacional, majorar o subsídio de seus ministros, aplicando ao teto do funcionalismo público (que corresponde à remuneração do Ministro da Suprema Corte) os mesmos parâmetros usados para aumentar o salário mínimo – inflação passada mais crescimento do PIB.
– O aumento das férias dos magistrados, pois os feriados compreendidos no período de descanso não devem mais ser contados para os 60 dias de férias.
– Extensão para juízes aposentados do pagamento de verbas supostamente indenizatórias, como auxílio-moradia.
– Garantia de um adicional por tempo de serviço de 3 em 3 anos até o limite de 60% do subsídio.
– Juízes auxiliares passariam a receber, além do subsídio, o auxílio-moradia (que é corretamente devido, no caso de o agente público passar a trabalhar em local diverso da lotação de origem) o e, ao mesmo tempo, diárias para trabalhar em Brasília.
http://jota.info/como-deve-ser-a-loman-aos-olhos-do-ministro-luiz-fux
Autor: Carlos André Studart Pereira é procurador federal.