Autores: Gustavo Henrique Carvalho Schiefler e Luccas Augusto Nogueira Adib (*)
É notória a dificuldade do Estado em gerir programas sociais de atuação preventiva. Não somente pela morosidade em acompanhar modelos inovadores, mas também pelos obstáculos legislativos, burocráticos e administrativos que possui. Some-se o fato de que uma parcela considerável dos recursos financeiros resta provisionada para atender despesas obrigatórias, como aquelas direcionadas aos serviços públicos prestados direta ou indiretamente pelo Estado, ou, ainda, o pagamento de juros e amortização da dívida pública.
Nessa linha é que o Estado do Bem-Estar Social tem se mostrado relativamente ineficaz para corresponder às suas obrigações constitucionais, razão pela qual existe a necessidade de que iniciativas sociais, seja do âmbito privado ou paraestatal, enfrentem, de maneira complementar, as debilidades sociais.
O Título de Desenvolvimento Social (“Social Impact Bond”) se enquadra nesse cenário (de inovação jurídica e financeira). Ele é um instrumento contratual que envolve os três setores da economia, ou seja, o primeiro setor (Estado), o segundo setor (iniciativa privada) e, em diversas hipóteses, o terceiro setor (organizações públicas não estatais). Em síntese, a operação é realizada da seguinte maneira:
A parte privada (“Social Impact Bond-issuing organization”, SIBIO, intermediário ou emissor)[1] observa a oportunidade de atuar em determinado segmento — em que a Administração Pública não atua ou é ineficiente — e provoca o ente estatal mediante a proposição de um projeto. Da mesma forma que a parte privada pode provocar a Administração Pública a respeito de determinado projeto, o contrário também pode (e deve) acontecer. Neste caso, a Administração Pública promove uma chamada pública para que o setor privado proponha projeto que vise atuar na seara pública, atuando em alguma necessidade por ela observada.
Em conformidade com o devido processo administrativo, a Administração Pública aceita a proposta privada e estabelece bandas de eficiência, vinculadas ao resultado do que se pretende obter com o projeto. Caso o projeto social atinja determinados níveis de sucesso, o ente estatal compromete-se a pagar um valor predefinido, por exemplo, o equivalente à integralidade do investimento somado a um ágio remuneratório pela empreitada (“performance-based payments”, os quais fazem parte da estrutura do contrato de Pagamento pelo Sucesso)[2]. Essa remuneração pode ter respaldo em uma consequente economia orçamentária ao ente ou, no caso de o projeto em questão não ser passível de gerar economia ao Estado, em um impacto positivo destinado à determinada população.
Na eventualidade de o projeto não vir a gerar nenhum fruto social (ou, por extensão, não atinja nenhum nível de sucesso), o risco da atividade recai sobre o investidor, eximindo o ente público, a depender da maneira como a operação foi estruturada, de qualquer risco.
Portanto, o Estado remunerará o ente privado na medida em que o projeto for bem sucedido, o qual pode ser determinado, inclusive, pela economia orçamentária gerada para o ente estatal [3].
O intermediário financia as suas operações mediante a emissão de um título ou valor mobiliário, lastreado no contrato celebrado com o Estado, ou celebra um contrato de investimento coletivo com o investidor [4]. Os investidores privados adquirem tais títulos (ou celebram determinados contratos) tendo por base os termos de remuneração determinados entre o ente estatal e o emissor, termos estes celebrados no âmbito do contrato de pagamento pelo sucesso, o qual lastreará toda a operação com os investidores.
O intermediário também será o responsável pelo repasse dos recursos adquiridos para os prestadores de serviços cobertos pelo projeto de impacto social e é, também, quem organiza toda a operação em seus variados aspectos e níveis. Os prestadores de serviços, normalmente com conhecimento do funcionamento dos serviços de utilidade pública, elaboram o programa e o executam a partir do que fora contratado e estabelecido no contrato de Pagamento pelo Sucesso.
Tendo em vista que a verificação do resultado do benefício social muitas vezes depende de uma análise de ordem subjetiva — inclusive nos casos prefixados em instrumento contratual, uma vez que algumas métricas e parâmetros não são numéricos —, as partes podem apontar um terceiro neutro, que atuará para aferir os impactos do programa de maneira imparcial, estabilizando as expectativas estipuladas.
A estrutura esquemática da operação pode ser descrita de maneira ilustrativa conforme o seguinte[5]:
De acordo com pesquisas realizadas, atualmente existem oito operações[6]envolvendo Títulos de Desenvolvimento Social em fase de execução no mundo. Todas elas estão ocorrendo nos países que tomaram a vanguarda do instrumento: Reino Unido, Estados Unidos da América e Austrália[7].
Há, contudo, outros 32 projetos[8] sendo estruturados em outras localidades. Dentre eles, merecem o destaque o auxílio a moradores de rua (Austrália), combate à reincidência criminal juvenil e adulta (EUA e Reino Unido), permanência estudantil escolar e combate à gravidez indesejada (Colômbia), combate ao desemprego (Israel e Reino Unido), combate ao contágio da Malária (Moçambique), combate ao contágio do HIV (Suazilândia), combate ao contágio da “doença do sono” (Uganda), dentre outros[9].
Note-se, no entanto, que a sua operacionalização é bastante recente, sendo que a implementação da primeira experiência ocorreu no ano de 2010, no Reino Unido. Apesar de sua incipiência, o instituto tem se espalhado por diversos países, o que é um indicativo de que o tema merece ser acompanhado de perto pelos juristas e por agentes envolvidos com políticas públicas no Brasil.
A implementação da operação de Título de Desenvolvimento Social, conforme visto, depende integralmente da participação do Estado. Dessa sorte a aplicação do modelo no Brasil está condicionada à conformidade do instituto com o regime jurídico aplicável à Administração Pública brasileira.
Nesse campo, existem duas sugestões de modelagens jurídicas para a estruturação do Título de Desenvolvimento Social no Brasil, uma aplicável ao cenário em que o agente intermediário se qualifica como uma entidade sem fins lucrativos e outra, como uma sociedade empresarial. O modelo pode ser exemplificado pelo diagrama abaixo[10]:
Analisando-se o modelo em que o intermediário se qualifica como uma entidade do terceiro setor, entende-se que a relação entre esta entidade e a Administração Pública poderá se enquadrar no regime jurídico das parcerias voluntárias (Lei Federal 13.019, de 31 de julho de 2014), a qual entrará em vigor em janeiro de 2016.
Nesse modelo, a Administração Pública repassaria, no início da parceria, um determinado montante de recursos públicos que serviria apenas para que a organização da sociedade civil (entidade do terceiro setor) estruturasse a operação de Título de Desenvolvimento Social[11]. Outro repasse de recursos públicos estaria condicionado ao alcance de resultados obtidos pelo projeto.
Ato contínuo, esta entidade celebraria contratos com investidores privados, sendo o lastro desses contratos a perspectiva de um segundo repasse de recursos públicos na eventualidade do projeto ser bem-sucedido. Uma vez atingidos os resultados cominados contratualmente, a entidade do terceiro setor receberia o segundo repasse de recursos públicos, remunerando os investidores privados que outrora aportaram capital na operação.
Caso contrário, a Administração Pública estaria livre de suas obrigações, sendo que o eventual prejuízo seria arcado pelos investidores privados, que não seriam remunerados pela organização da sociedade civil. Neste caso, o prejuízo dos investidores pode ser integral ou parcial, a depender da modelagem dos contratos de investimento e da eventual existência de um terceiro garantidor (figura importante no fomento da tecnologia jurídica aqui descrita dada a sua incipiência).
Em caso de fracasso da operação de TDS, nesta modelagem, o investimento da Administração Pública terá se resumido ao aporte inicial para custeio da estruturação da operação (o primeiro repasse à organização da sociedade civil). Não há dúvidas de que o seu prejuízo seria mínimo quando comparado a um cenário em que o mesmo projeto tivesse sido objeto de fomento pelas vias tradicionais, em que o repasse de recursos seria integral ou, no melhor dos mundos, substancial.
Evidentemente, caso fique comprovado que a falha no alcance dos objetivos da operação de TDS foi provocada pela inexecução de obrigações pactuadas na parceria mantida com a Administração Pública (relacionadas com a própria estruturação da operação), a organização da sociedade civil pode e deve ser obrigada a ressarcir o repasse inicial recebido.
Uma segunda modelagem possível refere-se à operação em que o intermediário se qualifica como uma sociedade empresarial. Nesta, será necessário estruturar o instrumento próprio e típico para a transferência de recursos públicos a entidades privadas com finalidade lucrativa: um contrato administrativo.
Sendo assim, é possível que contratos tenham características semelhantes aos contratos de remuneração variável e contratos de eficiência, seja por meio de contrato administrativo sujeito à Lei das Licitações (Lei Federal 8.666, de 21 de junho de 1993) ou ao Regime Diferenciado de Contratações (Lei Federal 12.462, de 4 de agosto de 2011). Ainda, a depender do objeto e das características do projeto, é possível que o Título de Desenvolvimento Social seja estruturado por meio de uma concessão administrativa ou, até mesmo, uma concessão patrocinada.
O Título de Desenvolvimento Social é uma forma de se alinhar perspectivas de geração de impacto social com a ideia de se auferir lucro (operações sustentáveis), em especial a partir de atividades que o ente estatal não consegue atender, notadamente aquelas de caráter essencialmente preventivo. A experiência estrangeira aponta que se trata de um instrumento novo, mas a criação e o desenvolvimento de Títulos de Desenvolvimento Social por diversos entes públicos de países desenvolvidos, apoiados por fundações e bancos importantes, sugere que o modelo deve se provar bem-sucedido nos próximos anos.
O Brasil possui carências na área social que só tendem a melhorar com o advento de iniciativas como o Título de Desenvolvimento Social. A alternativa apresentada pode ser um começo de um caminho para que juristas e agentes públicos fomentem tais tipos de instrumento. É mais uma maneira, dentre muitas, de se pensar o desenvolvimento sustentável e social do Brasil, trazendo para a cena da política pública outros atores que não só o Estado e o terceiro setor. Em um cenário de recessão técnica, cortes de gastos públicos, busca por eficiência e novas oportunidades, o Título de Desenvolvimento Social pode ser um escape interessante.
Em paráfrase a respeito do pensamento de Anthony Giddens[12], a crise do Estado do Bem-estar Social faz com que novas modalidades de organização da economia sejam perseguidas. Nessa linha, buscar-se-ia uma sinergia entre os setores público e privado, com utilização do dinamismo dos mercados, sem perder de vista o interesse público. É nesse contexto, mais do que nunca, que surge a temática dos recém-nascidos Títulos de Desenvolvimento Social.
[1]KPMG. Social Impact Bonds: Planting for Future Growth. Abril de 2013. pp. 14. Disponível em: <www.kpmg.com/uk/localgovernment>. Acesso em: 11 de junho de 2014.
[2]LIEBMAN, Jeffrey B., Social Impact Bonds: A Promising New Financing Model to Accelerate Social Innovation and Improve Government Performance. Washington D.C.: Center for American Progress, Fevereiro de 2011, pp. 11-12. Disponível em: <www.americanprogress.org>. Acesso em: 13 de junho de 2014.
[3]O requisito de geração de economia orçamentária para o Estado, com o intuito de estimular a sua remuneração, não é e nem deve ser um pré-requisito para a estruturação dos contratos de Pagamento pelo Sucesso. Isso, pois, o maior bem gerado para o ente é o ganho social por intermédio de um serviço cuja competência, em última análise, era de si próprio.
[4] Como será observado mais adiante, tal emissão pode ser revestida de uma oferta pública ou não; tudo irá depender da maneira como o TDS será estruturado. Em um primeiro momento, entender o contrato de investimento coletivo não como um valor mobiliário, mas sim como um contrato típico a ser celebrado pelo intermediário e os investidores.
[5]ADIB, Luccas A. N., Títulos de Desenvolvimento Social: uma abordagem societária. Tese de Láurea. Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). 2014. pp. 21.
[6]FIELD, Anne. A New Way to Finance Aid to Developing Countries. Forbes Magazine. 12 de julho de 2014. Disponível em: <http://www.forbes.com/sites/annefield/2014/07/12/a-new-way-to-finance-aid-to-developing-countries/>. Acesso em: 15 de julho de 2014.
[7]Cf. SOCIAL FINANCE, op. cit., MCKINSEY & COMPANY, op. cit. e INSTIGLIO. op. cit.
[8]FIELD, Anne. op. cit.
[9]DERMINE, Thomas. Establishing Social Impact Bonds in Continental Europe. Harvard Kennedy School, Mossavar-Rahmani Center for Business & Government. Maio de 2014, pp. 59. Disponível em: <http://www.hks.harvard.edu/var/ezp_site/storage/fckeditor/file/dermine_final.pdf>. Acesso em: 15 de julho de 2014.
[10]ADIB, Luccas A. N., op. cit. pp. 21.
[11] Este primeiro repasse de recursos, a título de custeio da estruturação da operação, não é um requisito obrigatório para a modelagem proposta. Contudo, este detalhe pode representar um importante incentivo diante de um cenário em que as organizações da sociedade civil não se encontram suficientemente estruturadas e em que a operação de TDS ainda é desconhecida pelos agentes de mercado.
[12] GIDDENS, Anthony. A Terceira Via e Seus Críticos. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001, pp. 126.
Autores: Gustavo Henrique Carvalho Schiefler é doutorando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo, mestre e bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Luccas Augusto Nogueira Adib é bacharelando em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP).