Transfusão de sangue

Luiz Vicente Cernicchiaro

A interpretação jurídica é operação complexa. A intervenção médica é admitida, ainda que ausente autorização do doente. O tema não se restringe ao disposto no art. 146, § 3º, I, do Código Penal, ou seja, ‘‘não se compreendem na disposição deste artigo a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida.’’

Cumpre incursionar na Teoria Geral do Direito.

Sabe-se, ‘‘Testemunha de Jeová’’, considerando a natureza sagrada do sangue, não permite aos seus adeptos submeterem-se a transfusão. E mais. Recomendam manifestar expressamente essa orientação, o que, comumente, é registrada no documento de identidade. Há, pois, movimento nesse sentido. Registre-se, de âmbito internacional, com sérios e profundos estudos. Entre nós, dentre outros, mencionam-se os doutos pareceres dos conceituados professores Manuel Ferreira Filho e Paulo Sérgio Leite Fernandes, sustentando a legalidade da recusa. Em Brasília, anote-se o abnegado trabalho do dr. Pedro de Assis, advogado; durante vários anos honrou e conferiu prestígio ao Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.

O Direito, como sistema, é unidade. As normas formalizadas colocam-se em relação de coordenação e subordinação, No topo da pirâmide, para repetir o nomem iuris de Kelsen, situa-se a Constituição. Em nosso país, por sua característica política — Federação — a Constituição da República.

O Estado brasileiro é laico. Ao contrário da Constituição de 1824, não tem religião oficial. Daí, o disposto no art. 5º, VI — ‘‘é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.’’ E no inciso VIII — ‘‘ninguém será privado de direito por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixadas em lei’’.

No Brasil, como em toda sociedade, há pluralidade de sistemas jurídicos. Chamar-se-á ‘‘oficial’’ o emanado do Estado; convive, soberanamente, e ao lado de inúmeros outros ordenamentos. Exemplo: Direito Canônico, Direito Maçônico, Direito de Testemunhas de Jeová; Direito de associações esportivas, culturais, filantrópicas e profissionais. A relação é meramente exemplificativa.

Pois bem. Convivência significa harmonia, coordenação. O católico, o protestante professam livremente os seus cultos. Todavia, subordinados ao Direito do Estado brasileiro. Ou seja, eventual conflito, prevalece o último. As condições para o casamento variam segundo o Direito brasileiro e o Direito Canônico. A validade do ato num e no outro setor reclama obediência ao respectivo sistema. Há alguns anos, jovem católica concordou com o noivo celebrar o matrimônio na Igreja Protestante, com a contrapartida de orientar os filhos na religião católica. Nascido o primeiro filho, o casal o levou para o batismo na igreja da mãe. Realizada a solenidade, ao receber o certificado, o pai ficou revoltado porque o documento mencionava ‘‘filho ilegítimo’’. A objeção, embora humanamente compreensível, do ponto de vista jurídico não se justificava. Houve casamento segundo as leis do Estado brasileiro; não ocorrera, entretanto, consoante a Igreja Católica. Logicamente, as conseqüências têm que ser diversas. A excomunhão é grave sanção canônica, sem, entretanto, nenhum efeito no Direito do Estado. O suicida é tratado diferentemente no Direito Canônico e no Direito brasileiro.

A pluralidade de sistemas, é lógico, conduz a conseqüências diversas.

Esta realidade normativa precisa estar presente, como premissa para a solução do tema sub judice.

No Direito nacional, o sangue é tido como substância essencial à vida do homem e de alguns animais; poderá ser objeto material do crime de lesão corporal (art. 124), necessário que é à saúde. Os adeptos de Testemunhas de Jeová, ao contrário, além da realidade e características físicas, conferem-lhe natureza sacra e, por isso, intocável, impossível, então, como conseqüência, a prática de transfusão.

O Direito Penal brasileiro volta-se para um quadro valorativo. Nesse contexto, oferece particular importância à vida (bem jurídico). Daí ser indisponível (o homem não pode dispor da vida). A irrelevância penal do suicídio decorre de Política Criminal, a fim de a pessoa que tentou contra a própria vida ser estimulada a mudar de idéia, o que provocaria efeito contrário se instaurando inquérito policial, processo e, depois, condenação, cumprimento da pena.

Em decorrência não configura constrangimento ilegal (compelir, mediante violência, ou grave ameaça, a fazer ou deixar de fazer alguma coisa a que não está obrigada por lei) compelir médico a salvar a vida do paciente de perigo iminente e promover a transfusão de sangue, se cientificamente recomendada para esse fim. Aliás, cumpre fazê-lo, presente a necessidade.

O profissional da medicina (em qualquer especialidade) está submetido ao Direito brasileiro. Tanto assim que as normas da deontologia médica devem ajustar-se a ele. Daí, não obstante, ser adepto de Testemunha de Jeová, antes de tudo, precisa cumprir a legislação vigente no país. Comparativamente, seria o mesmo o juiz de paz (agente do Estado), porque católico, recusar a celebração de casamento porque um dos nubentes é divorciado, o que é proibido pelo Direito Canônico. Hoje, tal pessoa pode, consoante as leis brasileiras, celebrar novo matrimônio.

Luiz Vicente Cernicchiaro
Ministro do Superior Tribunal de Justiça,
Professor titular da Universidade de Brasília e
Autor do livro ‘‘Questões Penais’’

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