Transparência ajuda no combate à impunidade

Por Taís Ferraz

Diversas pesquisas vêm apresentando e a imprensa vem divulgando dados larmantes sobre os homicídios e sobre os baixos índices de elucidação e de condenação nestes crimes. O Brasil é o primeiro no mundo em número absoluto de mortes violentas (pesquisa da ONU). Cresceu vertiginosamente o número de homicídios envolvendo jovens no país (mapa da violência – Ministério da Justiça). Temos, aqui, 25 homicídios para cada 100 mil habitantes, quando a média mundial é inferior a 10 por 100 mil. Em algumas capitais caracteriza-se verdadeiro cenário de guerra civil, chegando este índice a 40 por 100 mil (mapa da violência).

As investigações, na maior parte das vezes, não chegam à elucidação do crime – arquiva-se mais do que se denuncia (Inqueritômetro – CNMP). Os dados, apresentados de forma consolidada, realmente são chocantes. Mas a situação não é nova, tem origem na história da segurança pública. A verdade é que nossa capacidade de indignação em face do homicídio está adormecida. Se não conhecemos o autor ou a vítima, ou se não somos induzidos por manchetes sensacionalistas, ouvimos a notícia sobre um assassinato com a mesma resignação que reservamos para as notícias sobre o tempo. E este comportamento, em um verdadeiro círculo vicioso, alcança os gestores públicos, responsáveis pelos investimentos no aparato policial e, ao final, os atores do sistema de justiça e segurança pública, aqueles que têm a missão de realizar a persecução penal dos crimes de homicídio.

E por que? Um problema que é de toda a sociedade e do Estado vem sendo tratado, historicamente, de forma absolutamente fragmentada, numa constante atribuição recíproca de culpas, sob a premissa de que “o problema não é meu”, ou de que “eu faço a minha parte”. Fazer cada um a sua parte, neste contexto, é insuficiente. É preciso saber o que toca aos outros agentes e órgãos, saber de que forma as ações se impactam reciprocamente, já que a atuação de todos é interdependente. Se um não funciona, o resultado não ocorre para todos. É preciso fluidez na comunicação e compartilhamento de informações. A integração de ações, a atuação em rede, a cooperação, o planejamento interinstitucional são condições indispensáveis na busca e na execução de soluções em matéria de segurança pública.

Aí está a origem da Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública – ENASP. Partindo do pressuposto de que a criminalidade é problema de todos e de que é necessário substituir o discurso da culpa pelo da co-responsabilidade, os Conselhos Nacionais de Justiça e do Ministério Público e o Ministério da Justiça constituíram a ENASP com o objetivo ampliar a comunicação e desenvolver medidas concretas e integradas entre os órgãos do sistema de justiça e segurança para redução da criminalidade e da impunidade.

Dentre as ações eleitas como prioritárias pela ENASP está a de dar maior efetividade e agilidade às investigações, denúncias e julgamentos dos crimes de homicídio, que gerou a já conhecida Meta 2, que consiste em concluir todas as investigações por homicídio instauradas até dezembro de 2007, com prazo de execução fixado em 30 de abril de 2012.

Esta meta, sob a coordenação do Conselho Nacional do Ministério Público, vem gerando uma mobilização nunca antes vista, no âmbito de todos os estados, para a identificação dos inquéritos antigos, realização de diligências e conclusão de investigações. É a responsável por movimentar 142 mil inquéritos de homicídio, que se encontravam paralisados nas delegacias por inúmeros fatores. É a responsável, até o momento, por permitir a conclusão de 20% desses inquéritos, de dar resposta às famílias das vítimas e à sociedade em mais de 28.000 investigações e pela realização de diligências investigativas em mais de 70 mil inquéritos. É a responsável pelo oferecimento de 4.650 denúncias, pelas quais estão sendo processadas pessoas que, até aqui, viviam na convicção da impunidade sem imaginar responder por tão grave crime. É a responsável pelo atual controle e informação sobre os inquéritos policiais por crime de homicídio em todo o país, a possibilitar o monitoramento pelo Ministério Público e a efetiva conclusão das investigações pela polícia judiciária. É a responsável por estabelecer maior fluidez e instantaneidade na comunicação, além de maior integração entre polícia, Ministério Público e Poder Judiciário. É por causa da meta 2 que agora não sabemos apenas quantos homicídios ocorrem no Brasil, mas também quantos não resultam em investigação, em quantos a investigação é frustrada e por qual motivo.

Este esforço concentrado, que se estabeleceu em todos os estados, através de diversas ações, em especial a formação de forças-tarefa conjuntas, a redefinição de fluxos e a capacitação integrada dos agentes, a par dos resultados numéricos, tem sido um grande laboratório de diagnóstico, fornecendo informações preciosas e sistematizadas sobre os entraves e gargalos da investigação, condição fundamental para mudanças estruturantes, algumas simples, já implementadas ou em vias de execução, outras mais complexas ou onerosas, que, para serem efetivadas, demandam a sensibilização e o engajamento dos governos estaduais, o que só se consegue com fornecimento de dados concretos e sistematizados.

Diagnóstico realizado em cada um dos estados, pelos gestores locais da ENASP (delegados e promotores) aponta para a necessidade urgente de estruturação das polícias civis. É preciso romper definitivamente, mediante investimentos de peso, com a histórica negligência dos Governos para com a sua polícia judiciária ou investigativa.

As dificuldades na estrutura de pessoal são imensas. Há carência de delegados, investigadores e peritos. Em xx dos estados o quadro da polícia judiciária não vem sendo aumentado há mais de 10 anos. Em XX estados, os concursos para perito não resultaram em provimento dos cargos. Faltam equipamentos de toda sorte para a investigação, que vão simples reagentes químicos a complexos instrumentais de perícia. Faltam computadores, falta acesso à internet. A lista de carências é imensa e está a exigir pronta atenção.

Há muito a ser feito, mudanças que dependem de investimentos e mudanças da porta para dentro de cada um dos órgãos. Estas, a ENASP já tem alcançado implementar, na grande parte dos Estados. Mas talvez o grande mérito da Meta 2 da ENASP seja a sua contribuição para trazer à luz a problemática da investigação de homicídios no país, resgatando a capacidade de indignação da sociedade, dos delegados, peritos, promotores, magistrados e defensores, frente à ocorrência e à impunidade do pior dos crimes.

Hoje há sistemas de monitoramento, há pesquisas estruturadas e os dados estão disponíveis à sociedade, à imprensa e, muito especialmente, aos órgãos do Sistema de Justiça. E é fundamental que esta triste realidade seja revelada. O primeiro passo para reverter o quadro, que já foi dado, está justamente na tomada de consciência quanto à magnitude do problema. Neste longo e pedregoso caminho, o papel dos órgãos de controle e da sociedade é fundamental. Seja através do controle externo da atividade policial, do Ministério Público e do Poder Judiciário, a garantir que a dormência antes estabelecida sobre as investigações não torne a ocorrer, seja através do planejamento conjunto de ações e da coordenação da sua execução, em âmbito nacional.

A roda movimentou-se, fruto da fixação conjunta de estratégias e da consciência quanto ao tamanho dos desafios a enfrentar e a importância da integração, resultado da percepção, já tardia, de que a impunidade é causa direta do aumento da criminalidade e de que, no Brasil, matar é ainda um crime que compensa.

Taís Ferraz é juíza federal e conselheira do CNMP

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