Por: Wander Medeiros A. da Costa é Advogado, Conselheiro Federal da OAB Nacional, Secretário-Geral da Comissão Nacional de Direitos Sociais da OAB, Professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, UEMS, Especialista em Ensino Superior e Mestre em Educação. Contato: www.wandermedeiros.com.br – 8 de abril de 2020
Talvez Lewis Carroll não tenha se dado conta de como materializou, nas palavras do Gato de Cheshire para Alice, uma máxima humana universal sobre chegadas e partidas, e a ilusão de que, entre um ponto e outro da nossa jornada, tenhamos algum controle sobre nosso destino, afinal, “para quem não sabe para onde quer ir, qualquer caminho serve”, não é mesmo?
Enfrentamos a pandemia global da covid-19, causada pelo novo coronavírus, um desafio humano e geracional, cujas medidas profiláticas, propedêuticas e terapêuticas têm desafiado os mais celebrados nomes da ciência médica e também encontrado algum obstáculo nos mais celerados nomes da estultice que viceja sem corar nos campos férteis das mídias sociais.
Paciência… em qualquer circunstância, cada um só pode dar o melhor que tem de si.
Pensando nisso, instiga-me refletir sobre os efeitos econômico-sociais que inexoravelmente deverão advir deste mesmo quadro caótico, em especial no campo do trabalho, que vem há muito tempo sendo afetado por uma nova transição paradigmática do seu modelo produtivo, assim nas passadas largas com que vemos serem superadas as práticas do, quem diria, já vetusto modelo “toyotista” pelo chamado “uberismo”.
Ao considerarmos as recentes reformas trabalhistas de 2017 (Leis n. 13.429 e 13.467), somadas agora às medidas urgentes para criação de alternativas à manutenção dos empregos e continuidade das empresas, como as Medidas Provisórias n. 927, 936, 944, 945 e 946 de 2020 (atenção, prezado leitor ou leitora, não descuide que, após a conclusão destas mal traçadas linhas, novas medidas venham a surgir, mas acreditamos que não acarretarão alterações no conteúdo e o sentido desta alegoria), algumas questões fundamentais têm sido colocadas:
– Estamos diante do fim do direito do trabalho como o conhecemos? Seria a CLT uma das vítimas do vírus pandêmico? Ou seriam essas medidas provisórias editadas um conjunto de normas inconstitucionais, inconvencionais, antinômicas e inaceitáveis pelo estatuto trabalhista vigente?
O desafio proposto neste artigo é encontrar uma solução conciliatória para tantas questões.
De partida, a lição ortodoxa de que os princípios são as verdades fundantes do nosso ordenamento jurídico, postos assim com seus pilares essenciais de sustentáculo, e será, portanto, neles que buscaremos encontrar as bases para a compreensão e interpretação dos fatos presentes e dessa legislação recentemente editada para regê-los.
Um primeiro pilar remonta à lição basilar que todos aprendemos nos primeiros anos do curso de Direito, de que este último seria, em última análise, a melhor e mais mediana aplicação do “bom senso”, o padrão de conduta do ser humano médio, que, nas vezes em que premido por circunstâncias adversas, há de pautar-se pela escolha do razoável e pelo que lhe indiquem a lógica e a prudência.
Tenho comigo que o reforço dessa premissa é essencial para discernir a importância deste momento histórico, enxergá-lo em sua excepcionalidade – que suplanta os limites fronteiriços intangíveis do direito e da economia, assim como os tangíveis formados entre os países –, e com isso antever a urgência de serem implantadas de imediato medidas que salvaguardem a manutenção das atividades econômicas e da produção, para que, quando essa onda passar, ainda existam empresas e consequentemente empregos.
Um segundo pilar advém dos estudos acerca da unidade do direito e da necessidade de serem colmatadas inclusive suas lacunas ocultas, vertendo olhares sobre as entranhas do fato jurídico e seu ordenamento regente, e, a partir disso, considerar que a inusitada situação atual produz e possui relevância jurídica, em especial infligir a toda legislação trabalhista atual, uma espécie de lacuna ontológica.
O reconhecimento desta é necessário para podermos dar o próximo passo adiante no caminho da integração, para a qual o principal instrumento, relevando-se o caso presente, é a equidade – justiça particular para cada caso concreto, fator que, aliás, não encontra restrições no direito do trabalho (arts. 8º e 852-I da CLT).
Isso permitirá distinguirmos as hipóteses em risco, coibindo o mau uso das medidas excetivas, distinguindo segmentos empresariais que verdadeiramente estejam sendo afligidos pelas consequências da pandemia, porquanto não se me afigura como prudente ou equânime que se dispense, por exemplo, ao segmento bancário – que, fato público e notório, há décadas amealha alta rentabilidade e acúmulo de dividendos – o mesmo tratamento permitido ao pequeno comerciante que vê sua “magazine” esvaziada de clientela ou mesmo fechada em virtude do isolamento em quarentena.
O terceiro pilar diz respeito a erigirmos uma barreira de contenção a essas medidas excetivas, porquanto, por maior que seja a tormenta, haverá de existir sempre um farol para indicar a todos nós um porto seguro em que possamos atracar. Portanto, os limites do tolerável elastecimento do ordenamento jurídico trabalhista devem ser reconhecidos em nossa Constituição.
A Constituição deve ser o guia de nossa sociedade, para tempos ordinários e singelos, mas também para tempos excepcionais e críticos. Porque não é incomum, senão tentadora, a predisposição humana para, em meio ao pavor e à tempestade, perder-se na banal repetição do insucesso já testado e reprovado por aqueles que nos antecederam, inclusive é por isso que o texto normativo constitucional também seja, a um só tempo, o indicativo de um mínimo patamar civilizatório e também a salvaguarda contra o retrocesso desse ideal (art. 60, § 4º, CRFB).
Por fim, para além daqueles pilares fundantes – o bom senso, a equidade e o respeito às nossas bases constitucionais –, em considerando que desta feita estamos sendo todos nós afligidos por único e verdadeiro mal, quem sabe não seja a hora de decidirmos para onde ir, sublimarmos questões menores que desde sempre estigmatizaram as relações entre empresários e trabalhadores, e, corrigindo os rumos de nossa nau capitânia, reconhecermos, apesar das sondas indevassáveis do destino, que é somente o caminhar em solidariedade que nos salva.