Tribunais brasileiros devem valorizar solução pacífica de controvérsias

Autor: Marcelo Mazzola (*)

 

Após quase um ano de vigência do Novo Código de Processo Civil, podemos afirmar que alguns juízes estão deixando de designar a audiência de conciliação/mediação, dispensando-a fora das hipóteses legais.

A questão chama atenção, pois, de acordo com os artigos 334 do Novo CPC e 27 da Lei 13.140/15, se a petição inicial estiver em ordem e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o “juiz designará audiência” de conciliação/mediação.

Vale lembrar que a audiência só não será realizada quando ambas as partes manifestarem desinteresse na composição consensual ou o conflito não admitir autocomposição (artigo 334, parágrafo 4º, I e II, do Novo CPC), ou, ainda, na dicção da Lei de Mediação, se envolver direitos indisponíveis que não admitam transação (interpretação a contrario sensu do artigo 3º da Lei 13.140/15).

Cabe consignar apenas que, nas ações de família (artigo 695) e no conflito coletivo de posse velha (artigo 565) – procedimentos especiais do Novo CPC – a designação de audiência de mediação é obrigatória, não comportando qualquer flexibilização.

Todavia, no caso da audiência de mediação/conciliação do procedimento comum, percebe-se que alguns magistrados, por diferentes motivos – que serão examinados a seguir –, vêm deixando de designar o respectivo ato processual, ignorando a imperatividade do tempo verbal (“designará”), ratificada pelas expressões “promoverá” (artigo 3º, parágrafo 2º) e “deverão ser” (artigo 3º, parágrafo 3º).

Em razão das dimensões reduzidas deste artigo, iremos analisar estes “dribles hermenêuticos”[1] de forma sucinta e objetiva.

a) Violação da duração razoável do processo
Inicialmente, não concordamos com o argumento de que a designação de audiência de mediação/conciliação viola a duração razoável do processo (artigos 5º, LXXVIII, da Constituição e 139, II, do CPC).[2] Muito pelo contrário. Eventual acordo ou consenso alcançado no referido ato processual encurtará o processo e, no caso de uma mediação exitosa, ainda possibilitará o tratamento adequado do conflito, ao invés da mera extinção do litígio.[3]

Entendemos que, mesmo que o autor declare, genericamente, na petição inicial não ter interesse na audiência, a designação do ato não tem o condão de retardar sobremaneira o andamento do feito, pois, se o réu também não tiver interesse, basta apresentar petição até 10 dias antes da audiência (artigo 335, parágrafo 5º). Ou seja, não há que se falar em efetivo prejuízo à celeridade processual.

Neste particular, pensamos, inclusive, que, à luz do formalismo-valorativo, a rigidez da forma não deve atentar contra o verdadeiro espírito da audiência do artigo 334. Assim, ainda que o réu não se manifeste no prazo previsto em lei (10 dias antes da audiência), mas faça isso antes da referida audiência, o juiz poderia dispensar o ato, em que pese a inobservância do prazo estipulado, sobretudo se o demandando estiver de boa-fé e apresentar justificativa para essa “demora”. Isso evitará uma audiência inócua e acelerará o processo, inaugurando o prazo de defesa.

b) Desinteresse já manifestado pelo autor na petição inicial
Discordamos do entendimento de alguns juízes que determinam desde logo a citação do réu, quando o autor, na exordial, manifesta seu desinteresse na realização de audiência de conciliação/mediação.[4] Entendemos que a designação da audiência, mesmo quando o autor silencia[5] ou afirma, genericamente, não ter interesse nos métodos autocompositivos, é impositiva, por expressa determinação legal. Como visto, o ato somente não será realizado se ambos os litigantes manifestarem desinteresse.[6]

Por outro lado, supor que o mero desinteresse sinalizado pelo autor inviabilizaria, por si só, a construção do consenso é ignorar completamente a realidade prática. Com efeito, muitas vezes o autor comparece à audiência externando desconforto e impaciência, com um discurso colonizado, mas, após a intervenção do mediador/conciliador e de eventuais esclarecimentos do réu, os ânimos se arrefecem e as partes conseguem evoluir construindo uma solução de benefício mútuo ou, ao menos, transacionando sobre parte do conflito (artigo 3º, parágrafo 1º, da Lei de Mediação).

Pensamos, ainda, que a opção do legislador de condicionar a dispensa do ato ao desinteresse de ambas as partes tem – ao menos nesse momento de sedimentação do Novo CPC – um viés pedagógico, pois nem todos os jurisdicionados estão familiarizados com a mediação e seus princípios, e poder-se-ia imaginar que a audiência de conciliação do artigo 334 seria uma versão “antecipada” da inócua audiência do artigo 331 do CPC/73, o que, porém, não é verdade. Como se sabe, aquela não é realizada pelos juízes ou seus assessores, mas sim por conciliares capacitados, fora da respectiva serventia judicial, observando-se a estrita confidencialidade (artigo 166 do Novo CPC).

c) Postergação do ato para outra fase processual
Também não pactuamos com o argumento segundo o qual, por caber ao juiz promover, a qualquer tempo, a autocomposição – preferencialmente com auxílio de conciliadores e mediadores judiciais (artigo 139, V, do CPC) – poder-se-ia dispensar o ato no início da demanda, postergando-o para outra fase processual.[7]

Isso porque, além de não ser esse o espírito do legislador, “nenhuma audiência ulterior será ou fará as vezes da audiência preliminar, por uma questão de definição. Só pode haver uma única audiência preliminar. Qualquer outra não será preliminar”.[8]

Além disso, pelo que a experiência revela, quanto mais o processo se desenvolve, com acusações de parte a parte e o escalonamento do conflito, torna-se mais rarefeita a atmosfera cooperativa, o que, via de regra, dificulta a composição consensual. Daí ser importante que a audiência aconteça na fase inicial do processo, antes mesmo da apresentação da contestação.

d) Violação do acesso à Justiça
Não concordamos com a ideia de que a designação de audiência de conciliação/mediação viola o princípio do acesso à Justiça (artigos 5º, XXXV, da Carta Magna e 3º do Novo CPC), por inviabilizar, ainda que momentaneamente, a efetiva entrega da prestação jurisdicional.

Primeiro, porque eventuais questões urgentes podem (e devem) ser examinadas em sede de tutela provisória. Note-se que, mesmo havendo cláusula contratual de mediação, o ingresso ao Judiciário para apreciação de questões urgentes não é vedado (artigo 23, parágrafo único, da Lei 13.140/15)[9]. Segundo, porque como um dos requisitos da conciliação/mediação é a voluntariedade, ninguém permanecerá eternamente vinculado, bastando que compareça à primeira audiência.

Registre-se, ainda, que, enquanto o dispositivo constitucional estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito”, o Novo CPC dispõe que “não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito”. Essa sutil alteração evidencia que, no processo civil contemporâneo, a decisão adjudicada, isto é, imposta pelo julgador às partes, não pode mais ser considerada como a única forma de pacificação social, devendo ser valorizados e incentivados os métodos adequados de resolução de conflitos, entre eles a mediação e a conciliação (verdadeiros equivalentes jurisdicionais). Com isso, a noção de jurisdição – antes vinculada essencialmente à atividade estatal – ganha novos contornos, podendo ser compreendida como o direito de acesso à justiça e efetiva solução do conflito.

e) Distorção da expressão “sempre que possível” (artigo 3º, parágrafo 2º, do Novo CPC)
Em nossa opinião, a expressão “sempre que possível” não significa uma carta em branco para juízes dispensarem o ato processual. Na verdade, o termo deve ser compreendido à luz de uma interpretação sistemática, não podendo se distanciar da vontade do legislador (que previu expressamente as hipóteses de dispensa da audiência).

Preocupa-nos, por exemplo, a ideia de que a falta de estrutura de determinado foro possa ser considerada um argumento legítimo para justificar a dispensa da audiência de mediação/conciliação. Ora, não é a lei que deve adequar-se aos juízes, mas sim o contrário. Aliás, todos os tribunais tiveram tempo de sobra para se estruturar e criar os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscs). Ademais, no caso de déficit operacional, é possível que os juízes se valham do Cadastro Nacional de Mediadores Judiciais e Conciliadores[10] e também das Câmaras Privadas cadastradas no respectivo tribunal. Em último caso, o juiz poderia, excepcionalmente, designar uma audiência especial de conciliação, a ser presidida por ele mesmo.[11]

f) Autocomposição, interesse público e direitos indisponíveis
É preciso interpretar com cuidado a expressão “quando não se admitir autocomposição” (artigo 334, parágrafo 4º, II, do CPC). Isso porque, direitos que admitam autocomposição não são, necessariamente, direitos disponíveis, já que os direitos indisponíveis, que admitam transação, também podem ser objeto de mediação (artigo 3º da Lei 13.140/15).[12] Ou seja, o conceito de autocomposição é mais amplo do que o de direitos disponíveis.[13] Além disso, nem todo interesse público é indisponível, o que, inclusive, justifica os inúmeros acordos celebrados pelos entes públicos e também por suas autarquias, incluindo o Inpi.[14]

Significa dizer que, mesmo em situações que envolvam interesses públicos e direitos indisponíveis, os litigantes podem, em tese, transacionar, não fazendo sentido o juiz descartar desde logo a audiência.[15]

Exemplificando: a) em ações envolvendo poder familiar – direito indisponível –, é possível convencionar algumas obrigações daí decorrentes, tais como alimentos e visitação; b) em demandas sobre erro médico envolvendo menores, pode-se transacionar sobre os valores devidos, ouvindo-se o Ministério Público[16]; e c) no caso das recuperações judiciais, que, via de regra, englobam interesses públicos e direitos indisponíveis, cabe destacar a paradigmática decisão proferida por Fernando Viana, juiz titular da 7ª Vara Empresarial/RJ, que, em processo envolvendo a operadora OI, determinou que o conflito entre os acionistas fosse encaminhado para a mediação. Tal decisão foi posteriormente mantida pelo Superior Tribunal de Justiça.[17]

Como se vê, a noção de interesse público e de direito indisponível não pode impedir, automaticamente e de forma abstrata, a designação da audiência de conciliação/mediação.

Dispensas justificáveis
Deixando de lado os “dribles hermenêuticos”, entendemos que existem ao menos duas situações em que a audiência de conciliação/mediação pode ser dispensada, sem violar o espírito do legislador. Dois gols legítimos.

A primeira é quando as partes pactuam uma cláusula opt-out no bojo de um contrato ou mesmo durante uma mediação extrajudicial[18], abrindo mão da audiência em caso de eventual litígio.[19]

Desde que o respectivo negócio jurídico processual preencha os requisitos legais e não traduza qualquer nulidade, abusividade ou vulnerabilidade (artigo 190, parágrafo único, do Novo CPC), a disposição será válida[20] e o juiz deve respeitá-la. Até porque, o Novo CPC e a Lei de Mediação não trazem qualquer previsão em sentido contrário, isto é, não vedam eventual convenção das partes nesse sentido.

A segunda é quando os litigantes – preferencialmente o autor na petição inicial – comprovarem que já se submeteram a procedimento (não exitoso) de mediação/conciliação extrajudicial, conduzido por profissionais capacitados, envolvendo a questão objeto da ação.[21]

Neste caso específico, parece intuitivo que as partes não alcançarão, pelo menos na etapa inicial do processo, a composição amigável esperada, tornando despiciendo o ato processual em questão. Seria, portanto, uma forma de flexibilizar a rigidez da norma e equilibrar os princípios em jogo (valorização dos métodos adequados de resolução de conflitos x duração razoável do processo, efetividade, etc.). A ponderação afigura-se razoável e está em linha com o pensamento de Humberto Dalla e de outros doutrinadores.[22]

Por fim, entendemos que, nas execuções e nos procedimentos especiais (com exceção das hipóteses já examinadas), o juiz, a princípio, não deve designar a audiência de conciliação/mediação, a menos que exista alguma circunstância específica que evidencie a utilidade desse ato.

Em suma, não podemos enxergar o presente com lentes retrospectivas. Vivemos uma fase de transformação da cultura do litígio pela cultura do diálogo e, nesse percurso, é fundamental que a bússola interpretativa de nossos tribunais esteja calibrada para assegurar as garantias e os direitos fundamentais, valorizando, sempre que possível, a “solução pacífica das controvérsias”, conforme determinado no preâmbulo da Constituição Federal.

 

 

 

Autor: Marcelo Mazzola  é advogado e sócio do escritório Dannemann Siemsen Advogados, mestrando em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e membro da CMED-ABPI.


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