Autor: Allan Duarte Milagres Lopes e Nathalia Alice Milagres de Menezes Ferreira (*)
Num país eminentemente patriarcal, ao marido, a quem era atribuída, até meados da década de 60 — mais especificamente, até a alteração dada ao artigo 233 do Código Civil de 1916 — a função de chefe da sociedade conjugal, era permitido instituir sua casa a um bem inatingível pelos credores; isentava-se a sua moradia de execuções por dívidas, excluindo as oriundas de imposto relativo ao mesmo imóvel (artigo 70, Código Civil de 1916). Embora a partir de 1988, o homem tenha deixado de ser o cabeça da sociedade conjugal, sendo a gestão da família exercida pelo homem e pela mulher (artigo 226, §5º, da CF/1988), a moradia da família permaneceu sendo defendida ante as dívidas contraídas pelos proprietários do imóvel, seja através da nova Constituição (1988) ou do Código Civil vigente (1916).
Por mais que já se assegurasse a única moradia da família, o Congresso Nacional converteu uma medida provisória editada pelo ex-presidente José Sarney (143/1990) em Lei, a qual dispunha sobre a impenhorabilidade do bem de família: Lei 8.009/1990, cujo objeto, além de definir, em caráter geral, o que se consideraria bem de família, disciplinou as exceções à impenhorabilidade (artigo 3º), ampliando suas hipóteses; aumentaram a garantia dos credores — em especial a do próprio Estado, vez que as taxas e as contribuições devidas em função do imóvel familiar foram ali incluídas (inciso IV).
Ainda sob a vigência do Código Civil de 1916 e do inciso IV do artigo 3º da Lei 8.009/90, o Superior Tribunal de Justiça encontrou-se num dilema interpretativo: frente à possibilidade de penhorar bem de família em decorrência de cobrança de “impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar”, seria possível, então, enquadrar a cobrança de “taxas”, “contribuições”, despesas condominiais em tal regramento?
Em 1994, o Superior Tribunal de Justiça, através da sua 4ª Turma, julgando o Recurso Especial 52.156-4 (São Paulo), entendeu que “o inciso IV do artigo 3º da Lei 8.009/90 não compreende as despesas ordinárias de condomínio”. O ministro relator Fontes de Alencar destacou a precisão da decisão monocrática combatida: “inaplicável o disposto no artigo 3º, inciso IV, da Lei 8.009/90, pois há referência aos tributos (impostos, taxas e contribuições de melhoria), e não às contribuições outras, inclusive condominiais. Dessa forma, insubsistente a penhora do imóvel familiar”. O ministro Sálvio de Figueiredo consignou que “confesso que preferiria ver a matéria disciplinada de forma diversa em hipóteses como a retratada na espécie. Não vejo, no entanto, como divergir em face da legislação vigente, como demonstrado pelo Sr. Ministro Relator, a quem acompanho”.
No mesmo julgamento, o ministro Barros Monteiro, por sua vez, também acompanhou o relator, consignando que a tal interpretação foi “escorreita”. Por fim, e, também, acompanhando o ministro Fontes de Alencar, o ministro Antônio Torreão Braz, assim votou: “Sr. Presidente, a lei, neste caso, é protetiva. Não se pode, então, interpretar um dos seus dispositivos, cuja clareza me parece indiscutível, de modo ampliativo, em desfavor da pessoa que ela visa proteger. Contribuição não pode ser tomada na acepção de despesa de condomínio”.
Contudo, três anos se passaram[1], e a mesma 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, mudando o entendimento outrora utilizado, disse sim à indagação realizada acima. Da relatoria do ministro Barros Monteiro (Recurso Especial 150.379 – Minas Gerais), aquele tribunal firmou entendimento de que as despesas condominiais estariam abrangidas nas taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar dispostas no inciso IV. De acordo com o ministro: “penso que é caso de reformular-se a diretriz então traçada e conferir-se ao disposto no artigo 3º, inciso IV, da Lei 8.009, de 20/3/90, uma interpretação compatível com a realidade dos dias atuais; que permita a preservação do condomínio e obste o enriquecimento indevido de uma das partes envolvidas”.
Destacou o ministro relator que as expressões taxa e contribuição deveriam possuir um alcance genérico, “sem a conotação de caráter fiscal”. Logo, independentemente da nomenclatura a ser utilizada — taxa ou contribuição condominial —, a cobrança das despesas condominiais deveria ser inserida na ressalva do artigo 3º, da Lei 8.009/1990. Ainda, no mesmo sentido, o ministro Ruy Rosado de Aguiar, acompanhando o relator, destacou que, embora já tenha se manifestado acerca da impenhorabilidade do imóvel residencial por dívida condominial, refletiu sobre os efeitos dessa decisão: “estou hoje convencido de não ter sido a melhor e aproveito esta oportunidade para reconsiderá-la”.
Diante desse contexto, o “novo” Código Civil (2002), intentando modernizar o instituto do bem de família encampado no revogado Código Civil (1916), sem, contudo, deslegitimar a Lei 8.009/1990, colocou fim à celeuma ora apontada, na medida em que, no seu artigo 1.715 asseverou que “o bem de família é isento de execução por dívidas posteriores à sua instituição, salvo as que provierem de tributos relativos ao prédio, ou de despesas de condomínio”. Ou seja, o Legislador optou, expressamente, por incluir a cobrança de despesas condominiais nas hipóteses de penhorabilidade do bem de família.
Pode-se perceber, nesse momento, a importância do Legislador quando exerceu a função que lhe é peculiar: legislar. Editou o “novo” Código Civil e determinou que a cobrança de despesas condominiais passasse a ser mais uma das hipóteses de penhorabilidade do bem de família. Acertaram os representantes escolhidos (eleitos) pelo povo ao retirarem dos tribunais a possibilidade de permanecer interpretando o texto normativo do artigo 3º, IV, da Lei 8.009/1990 da maneira que lhe convinham, por vezes, valendo-se de argumentos políticos.
Como visto, importante ressaltar, em três anos, o Superior Tribunal de Justiça interpretou o referido dispositivo de maneira antagônica. Pode-se dizer que, inicialmente, para não se aplicar o artigo 3º, IV, da Lei 8.009/90 no caso das despesas condominiais, através de uma interpretação literal, o tribunal valeu-se da concepção (tributária) de taxa e de contribuição, e, ao mesmo tempo, levou em consideração o contexto estabelecido desde 1916 de se preservar os interesses do ente público quanto ao recebimento de imposto devido em razão do imóvel (artigo 70, CC/16), inferindo-se, dessa forma, que mencionado dispositivo almejava garantir os interesses do Estado no recebimento de tributos, sejam eles imposto, taxa e/ou contribuição.
Posteriormente, o mesmo tribunal foi convencido — ou se convenceu (solitariamente) — de que a proteção do imóvel do condômino inadimplente fomentaria a inadimplência, enriqueceria o faltante e aumentaria sobremaneira os prejuízos financeiros do condomínio e dos condôminos adimplentes. Em síntese: o condômino que decidisse não contribuir com o rateio das despesas continuaria a se beneficiar com os serviços voltados à sua unidade.
De certo modo, deixar o condômino inadimplente locupletar-se à custa dos demais, não é a melhor das hipóteses. No entanto, é sabido que “querer não é poder”. Isto vale sobretudo para os tribunais, os quais não podem proferir uma decisão apenas receando os seus efeitos, tampouco adotar postura decisionista (Theodoro Júnior et alli, 2015, p. 49). Ao legislador atribui-se a criação do direito; “o debate sobre a fixação de uma diretriz política tem de ser exercido de forma mais abrangente para incluir um número maior de participantes, levando em conta os diferentes interesses antagônicos” (Theodoro Júnior et alli, 2015, p. 53).
Preocupados com os efeitos de sua decisão, o tribunal não deve transportar seus sentimentos e vontade de mudança para o acórdão. Optar por “uma interpretação compatível com a realidade dos dias atuais”, como desejou o ministro Barros Monteiro (Recurso Especial 150.379), significa agarrar-se no pragmatismo jurídico, sacrificando direitos “se as conveniências e o futuro da coletividade assim exigirem” (Carvalho, p. 02). Perdem os fundamentos, e “ganham relevo as análises dos resultados e das consequências das ações” (Carvalho, p. 02). Mitigam o Estado Democrático de Direito.
Diferentemente de ser movido pelas consequências de suas decisões (Carvalho, p. 03), o Judiciário deve garantir a sua fiel obediência ao ordenamento jurídico, “mesmo diante de algum suposto prejuízo ao bem estar geral da comunidade ou algum bem coletivo” (Carvalho, p. 07).
O tribunal tem o dever de fundamentar a sua decisão, porém, não qualquer fundamentação; não é o suficiente a mera menção de que o artigo 3º, IV, da Lei 8.009/1990 não abrange a cobrança de despesa condominial, pois ausente tal expressão; mas, também, não é válida a decisão que enquadra autoriza a penhora do bem de família, sob o argumento de crescente número de condomínios (verticais) e do aumento de inadimplência; o que mascara o receio dos efeitos da decisão (consequencialista).
O magistrado, conforme dito outrora, deve “convencer as partes e a sociedade da correção de sua decisão” (Theodoro Júnior et alli. 2015, p. 304). O juiz não deve explicar, mas fundamentar (Theodoro Júnior et alli. 2015, p. 303) Nesse sentido, verifica-se, data maxima venia, que ainda existem juízes “fazendo certo, de forma errada”.
Acostumados, erroneamente, a não fundamentar as suas decisões, juízes continuam valendo-se do artigo 3º, IV, da Lei 8.009/1990 para se garantir a penhora sobre bem de família nas cobranças de rateio das despesas condominiais. Ou seja, ou desconhecem o disposto no artigo 1.715 do CC/2002 ou permanecem ratificando a decisão consequencialista do Superior Tribunal de Justiça — abraçam o pragmatismo jurídico, disfarçadamente. O pior é que decisões neste perfil desencadearão uma série de recursos, uma vez que ausentes de fundamentação, nos termos do artigo 489, §1º, I, do CPC/2015.
Diante do exposto, verifica-se que a atividade interpretativa é inerente à função jurisdicional, e, ao fazê-la, o juiz não poderá se limitar à “indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida”. Fredie Didier adverte nesse sentido que “para decidir, o julgador precisa interpretar. Precisa interpretar as alegações de fato que compõem a causa de pedir e de defesa, e precisa interpretar também os enunciados normativos em que os fatos alegados supostamente se enquadram. Para dizer sim ou não, verdadeiro ou falso, certo ou errado, o juiz precisa, necessariamente, extrair da expressão (significante) um sentido (significado)” (Didier Jr., 2016, p. 327). Portanto, sobre o tema, mesmo que se julgue certo, estar-se-ão decidindo (fundamentando) errado.
Autor: Allan Duarte Milagres Lopes é advogado, mestrando em Direito Processual, pós-graduado em Processo Civil pela PUC Minas e presidente da Comissão de Direito Processual da OAB-MG.
Nathalia Alice Milagres de Menezes Ferreira é servidora terceirizada do TJ-MG, conciliadora voluntária no Cejusc de Contagem (MG) e pós-graduanda em Direito Tributário pela Faculdade Milton Campos.