Tribunal de Ética da OAB deve ser independente

Raul Haidar *

Um dos problemas mais graves com que se defronta a advocacia paulista é a enorme quantidade de processos que tramitam no Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP, onde consta existirem atualmente (março de 2003) mais de 16.000 feitos em andamento.

Tal número vem dando à opinião pública a falsa impressão de que existem em nosso meio mais de 16.000 advogados desonestos, safados, negligentes, vagabundos ou ignorantes, que desrespeitam o Código de Ética ou mesmo que mereçam ser confundidos com bandidos da pior espécie. Aliás, o advogado que se torna criminoso é o pior delinqüente, porque estudou as leis que está infringindo e jurou obedecê-las.

Esse quadro precisa ser mudado a curto prazo, pois a Profissão não merece ser ofendida com a perpetuação desse descalabro. E aquela falsa impressão deve ser afastada, pois a esmagadora maioria dos advogados é constituída de profissionais sérios, que se dedicam à profissão com honradez.

Na verdade, não há tantos bandidos entre nós. O que existe, infelizmente, é uma falta de atenção dos dirigentes da OAB-SP à correta administração do nosso Tribunal de Ética e Disciplina, procurando torná-lo um órgão o mais independente possível, já que ali são julgados colegas por colegas, o que é algo difícil, triste e até perigoso.

Durante pouco mais de um ano exercendo o honroso e sobretudo espinhoso cargo de Corregedor do TED, na memorável gestão do Dr. Rubens Approbato Machado, impressionaram-me os inúmeros e tristes casos de injustiças de que podiam ser vítimas os nossos colegas.

Houve uma ocasião em que, presidindo uma sindicância, vi diante de mim um colega de mais de 70 anos, com mais de 40 de profissão, sem que jamais tivesse tido contra ele qualquer suspeita, qualquer reclamação, chorar copiosamente e quase perder os sentidos, por ver-se acusado injusta, falsa e criminosamente por clientes que apenas não queriam pagar seus honorários e que usavam o TED como instrumento de sua (deles, clientes) falta de caráter.

Ainda na Corregedoria do TED pude constatar a instauração de processos disciplinares baseados em representações desprovidas da mínima fundamentação , muitas delas nascidas de ofícios burocráticos de juizes tardinheiros e preguiçosos que fazem questão de reclamar contra advogados, mesmo sem motivos suficientes, talvez para assim vingar-se da sua frustração (deles, juizes) por terem se afastado da Advocacia e agora exercerem uma atividade para a qual não estão vocacionados, mas a que se dedicam como um emprego qualquer, do qual querem se livrar o mais rapidamente possível, desde que com boa aposentadoria.

Tive a tristeza de ver, em várias situações, colegas sendo injustiçados por queixas infundadas, não só vindas de maus clientes ou de juizes frustrados, mas até mesmo de colegas maldosos. Ainda que o TED consiga, como tem conseguido, julgar improcedentes ou indevidas essas lamentáveis tentativas de macular a honra de profissionais sérios, isso não basta.

Para os advogados safados ou desonestos – essa abominável minoria de pilantras que não cumpre juramentos – um processo disciplinar não significa nada. Mas para a grande maioria que luta bravamente na profissão com ética, dignidade e seriedade, a simples notificação expedida pelo TED, mesmo que seja arquivada, é uma punhalada na alma, uma ferida no coração, que lhe transforma sonhos em pesadelos, que lhe impede o sono, que o faz chorar diante de um colega mais jovem, que o faz , como já disse Rui, sentir vergonha de ser honesto…

Foram todas essas questões que me levaram a aceitar a indicação, no segundo semestre de 2000, para compor novamente uma “chapa” e disputar as eleições da OAB-SP, eis que o candidato a presidente e seus principais companheiros me convocavam para assumir a Presidência do TED, prometendo-me que a ética seria a prioridade da nova gestão e que eu teria “carta branca” para fazer as mudanças que quisesse, submetendo-as, como é de lei, à apreciação do Conselho.

Como jamais deixei de encarar desafios, resolvi aumentar os prejuízos de meu pequeno escritório e dedicar-me à missão de transformar o TED num modelo de eficiência e reduzir o “estoque” de processos, que à ocasião era de pouco mais de 12.000 autos.

Assumindo em janeiro de 2001, imediatamente baixei duas resoluções, a primeira criando um mecanismo de exame preliminar de admissibilidade para que queixas sem fundamento pudessem ser arquivadas em menos de 72 horas e a segunda instituindo uma assessoria jurídica para auxiliar os colegas que fossem vítimas de queixas indevidas e desejassem processar os autores dessas queixas por eventuais crimes de injúria e mesmo por danos morais.

Essas duas resoluções, (que nenhuma despesa criavam) , ambas datadas de 22/01/2001, foram encaminhadas à diretoria da OAB para que fossem submetidas ao referendum do Conselho.

Ainda no mês de janeiro de 2001 encaminhei ao Conselho e foram aprovadas as substituições de dois presidentes de Turmas do TED da Capital que, por residirem no interior do Estado, não podiam comparecer com a necessária freqüência ao TED, o que vinha prejudicando o regular andamento dos feitos. Registre-se que ambos eram e continuam sendo merecedores do meu respeito, mas não se pode exigir que advogados militantes no interior façam duas ou mais viagens por semana para a Capital, o que os onera em demasia e também provoca pesadas despesas para a entidade, que lhes reembolsa as despesas de viagem. Lamentavelmente, um outro presidente de Turma, que reside próximo da Capital, mas que não tinha tempo para dedicar-se ao TED, foi mantido no posto e depois até “promovido”, porque parece ter prestígio junto à Presidência da OAB-SP.

Ainda em janeiro de 2001, adotei inúmeras outras providências para melhorar o desempenho do TED : os sistemas de estatísticas foram reformulados, para se tornarem mais racionais; foi iniciado um estudo para o treinamento sistemático dos funcionários, com os quais seriam realizadas reuniões periódicas para implementar novas rotinas de trabalho; foram levantados os diversos casos de assessores do TED que mantinham em seu poder processos além do prazo regimental, prejudicando o seu andamento, iniciando-se os procedimentos para que fossem afastados; foi iniciado um sistema de cobrança permanente de cumprimento de prazos e também foi solicitada a suspensão temporária da criação de novas turmas do TED no interior, até que se terminasse o trabalho de revisão dos sistemas e que fosse implantada a informatização geral do TED.

Para que todo esse trabalho pudesse ser desenvolvido , pois se trata de trabalho voluntário, já que Conselheiros da OAB não são remunerados, mudei completamente as rotinas de meu escritório (minha única fonte de renda, pois não tenho aposentadoria nem sou funcionário público) para poder comparecer diariamente ao TED, onde atendia pessoalmente os colegas e supervisionava o trabalho dos funcionários, com os quais despachava todos os dias, sem faltas ou atrasos.

Para minha grande surpresa, em 13/2/2001 recebi, no fim do expediente, um curto ofício do presidente da OAB-SP, onde registrava que a diretoria havia resolvido me “dispensar” do cargo. A explicação, que não veio com o ofício, seria artigo que divulguei no jornal “Tribuna do Direito”, edição daquele mês, criticando os critérios do Exame de Ordem.

A “dispensa” foi totalmente ilegal, pois não atendeu ao artigo 58, XIII do Estatuto da OAB (lei 8.906) e nem obedeceu às normas que tratam do devido processo legal.

Imaginar que a diretoria da OAB-SP possa censurar a opinião de alguém é ridículo e não merece comentários. Como jornalista, não sofri censura nem mesmo na época da ditadura militar, quando publicava artigos bastante críticos contra as autoridades fazendárias, chegando mesmo a taxar de cretinices certos atos de determinado ministro.

Além do mais, o “exame de ordem” continua a merecer as mesmas críticas anteriores, pois a OAB-SP adotou o “critério” de imaginar que se pode exigir do recém-formado conhecimentos que não lhe foram ministrados, por não fazerem parte do currículo oficial do curso de Direito. Com isso, o exame descumpre a legislação que o admite e pretende imaginar que deve ter o mesmo rigor dos concursos da magistratura e do ministério público, como se a pessoa, ao receber a carteira da OAB, já tivesse assegurado salários e regalias que pertencem àquelas carreiras.

Se eu tivesse sido “dispensado” por não abrir mão das minhas convicções, teria sido por uma boa causa. Mas , passado mais de um ano dos fatos, posso agora ter a certeza que a “explicação” foi mera desculpa.

Na verdade, parece que a Diretoria da OAB-SP pensa da mesma forma como alguns “caciques”, “coronéis” ou “cartolas” do passado, que imaginam que o TED seja um mal necessário, podendo ser utilizado politicamente.

O TED deve ser independente e não pode se curvar a hierarquias, interesses ou interferências.

A “regionalização” do TED, por outro lado, com a criação de diversas turmas no interior, foi feita sem adequados critérios técnicos, em alguns casos para atender a interesses políticos ou satisfazer certas vaidades. Não tem sentido, por exemplo, a criação de turmas em cidades a menos de 150 quilômetros da Capital, pois a instalação dessas regionais causa despesas que a entidade deveria evitar.

Por outro lado, se existem hoje 16.000 processos em “estoque” e todo mês cerca de 1.000 novas queixas são apresentadas, será necessário um gigantesco e permanente esforço para que haja no mínimo 1.500 julgamentos mensais, com o que o “estoque” seria reduzido para 6.000 num espaço de cerca de 20 meses.

Na verdade, o “estoque” de processos do TED não pode ficar acima do equivalente à média mensal de queixas multiplicada por 6, ou seja, não pode ficar acima de 6.000 processos, pois nenhum processo pode demorar mais de 6 meses para ser julgado.

Quando um processo demora muito no TED, a OAB-SP comete duas graves injustiças: faz sofrer por mais tempo o advogado inocente que vê suas angústias e tristezas se prolongando indefinidamente, e ao mesmo tempo favorece o mau profissional, alimentando a sensação de impunidade que estimula os colegas sem ética e faz com que a opinião pública generalize conceitos que apenas merecem alguns maus profissionais.

Também é necessário que o TED seja um Tribunal independente, altaneiro, eficiente, que não se preocupe em punir ou proteger, mas apenas em fazer Justiça.

Já dissemos que a OAB precisa ser reformada, para se afastar das pragas do “caciquismo” e da “cartolagem” e para renovar-se, abrindo suas portas para os jovens, para os que ainda sabem sonhar, para os que ainda não se contaminaram com a doença do comodismo ou com a síndrome da subserviência. O TED também precisa mudar e, para que não sejamos acusados das mesmas deficiências que tanto criticamos no Judiciário, tem que ser um Tribunal ágil, transparente e sobretudo independente.

Raul Haidar é advogado e jornalista

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