Tribunal Penal Internacional e o Princípio da Complementariedade

Fábio Ramazzini Bechara*

O Decreto Presidencial n. 4.388, de 25 de setembro de 2002, promulgou o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, anteriormente ratificado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo n. 112, de 6 de junho de 2002. A norma internacional, vigente no ordenamento interno, dentre outras disposições, estabeleceu a competência jurisdicional do Tribunal Penal Internacional (TPI) para o julgamento dos crimes de genocídio, contra a humanidade, de guerra e de agressão e definiu as respectivas condutas penalmente relevantes. Assim, indaga-se: caso um brasileiro cometa um desses crimes, qual o órgão jurisdicional competente? E qual a lei penal aplicável à espécie?

Ambas as questões resolvem-se à luz do princípio da complementariedade. Senão vejamos.

Primeira questão. A resposta deve ser construída a partir do exame dos arts. 1.o e 17 do Estatuto de Roma. Dispõe o art. 1.o que a competência do Tribunal Penal Internacional é complementar às jurisdições penais nacionais. Isso significa dizer, em primeira leitura, que a atuação do Tribunal Penal Internacional não subtrai a competência jurisdicional interna, mas, pelo contrário, pressupõe a sua não incidência.

O art. 17, I, e suas alíneas “a”, “b”, “c” e “d”, cuida das condições de admissibilidade da competência do TPI, de tal sorte que um determinado caso não será admitido se: a) for objeto de inquérito ou procedimento criminal por parte do Estado que tenha jurisdição sobre ele; b) tiver sido objeto de inquérito ou procedimento criminal, e o Estado tenha decidido não dar seguimento; c) a pessoa já tiver sido definitivamente julgada; e d) o fato não for suficientemente grave a justificar a intervenção do Tribunal. Nas alíneas “a” e “b”, tem-se a ausência de vontade ou a incapacidade do Estado interessado de levar a cabo a investigação ou o procedimento criminal instaurado, como condicionante da intervenção do Tribunal Penal Internacional. A alínea “c” funda-se na vedação do ne bis in idem, na medida em que busca evitar o julgamento do mesmo fato por duas vezes. E, finalmente, na alínea “d”, a constatação da ausência de gravidade da infração afasta por si só o interesse a justificar a atuação do TPI.

Eis o primeiro sentido do princípio da complementariedade, segundo o qual a atuação do Tribunal Penal Internacional tem o caráter subsidiário diante da jurisdição nacional, cujos critérios delimitadores são a existência ou não: a) de coisa julgada; b) de vontade e disposição de punir por parte do Estado considerado; e c) a gravidade da infração. Nessa linha, reconhece-se que a jurisdição do TPI não antecede, nem tampouco se sobrepõe à jurisdição nacional, mas simplesmente a complementa, pressupondo sempre o fundado receio de que os responsáveis pelas condutas descritas no art. 5.o do Estatuto de Roma possam permanecer injustificadamente impunes. Seja a intenção deliberada por parte do Estado que detenha jurisdição para o caso em não punir determinado fato, seja a ausência de capacidade ou mesmo estrutura para tal fim, em ambas as hipóteses, verificada a ocorrência de um dos crimes descritos no art. 5.o e seguintes do Estatuto, a atuação do TPI estará legitimada.

Registre-se, outrossim, que uma vez presentes as condições de admissibilidade, o TPI poderá exercer a sua jurisdição se: a) houver denúncia de um Estado parte ao procurador; b) houver denúncia pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas ao procurador; c) o procurador agir de ofício, sem provocação (art. 13).

Assim, em resposta à primeira questão, observa-se que as competências prevalecente e originária para julgar o brasileiro que cometa o crime de genocídio são da Justiça brasileira. O brasileiro somente será julgado pelo TPI caso a Justiça brasileira não demonstre disposição necessária para puni-lo e desde que não haja coisa julgada.

Segunda questão. A resposta tem por base as inovações introduzidas pela norma internacional no tocante à criminalização de determinadas condutas, as quais estão enumeradas e descritas no art. 5.o e seguintes do Estatuto de Roma. São os crimes de genocídio, de guerra, de agressão e contra a humanidade. Com exceção ao crime de agressão, todos os demais foram detalhadamente definidos.

No Brasil, o crime de genocídio está previsto e definido na Lei Federal n. 2.889/56. Dessa forma, caso um brasileiro venha a cometê-lo, considerando o caráter principal e prevalecente da jurisdição nacional, aplicar-se-á a lei penal brasileira. Admitida, no entanto, a atuação do Tribunal Penal Internacional a partir dos critérios de admissibilidade do art. 17 do Estatuto de Roma, a lei material aplicável será a internacional. Tanto a aplicação da lei penal brasileira, nesse caso, como a competência da Justiça Nacional orientam-se pelo disposto no art. 7.o, I, “d”, do Código Penal, cujo princípio fundante é o da Justiça universal, tomando por base a assunção do compromisso internacional pelo Estado brasileiro em punir as mencionadas infrações penais. Estende-se mesma solução aos crimes de guerra e contra a humanidade, que, apesar de não possuírem denominação correlata, suas condutas definidoras guardam correspondência com a prescrição normativa do Direito brasileiro. Diferentemente do crime de genocídio, todavia, a aplicação da lei penal brasileira e a competência da Justiça Nacional orientam-se pelo disposto no art. 7.o, II, “a”, do Código Penal, que igualmente abriga o princípio da Justiça universal.

Tal entendimento mostra-se razoável e coerente, na medida em que se preservam os valores informativos da ordem interna, condicionando a incidência da norma internacional somente na hipótese de ausência de disposição do Estado brasileiro em punir o responsável por umas das infrações descritas no art. 5.o do Estatuto de Roma. Admitir a aplicação subsidiária da norma internacional que define crimes e comina penas representa ao mesmo tempo a prudência e a cautela necessária na defesa do Direito nacional, como também se ajusta aos fins a que se propõe o Estatuto de Roma, o qual não objetivou subtrair a competência jurisdicional nacional, nem tampouco sobrepor-se à ordem legal interna, mas criar mecanismo de fiscalização e controle permanente, com vistas à eventual falta de interesse por parte dos Estados Nacionais em investigar e punir os crimes de violação aos Direitos Humanos. Tal conclusão explica-se não somente pelo já citado art. 1.o do Estatuto de Roma, mas também por outros dispositivos, dentre os quais, por exemplo, o art. 77, segundo o qual, as penas cominadas aos crimes descritos no art. 5.o, como a prisão perpétua, têm a sua aplicação condicionada à observância das regras do Direito interno. Nessa esteira, pode-se afirmar que o brasileiro jamais poderá ser condenado à prisão perpétua, tendo em vista o disposto no art. 5.o, XLVII, alínea “b”, da Constituição Federal.

Por fim, ainda em resposta à segunda questão, observa-se que a lei penal aplicável ao brasileiro que comete crime de genocídio é a brasileira, prevalecente sobre a norma internacional material, segundo o princípio da complementariedade, cuja incidência orienta-se de acordo com os mesmos critérios autorizantes da atuação do TPI.

O alcance do princípio da complementariedade, portanto, abrange tanto a relação entre a jurisdição nacional e a internacional, como também a relação entre a lei material nacional e a internacional.

*Promotor de Justiça, Professor de Direito Penal da Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus (FDDJ) e Professor de Direito Penal e de Direito Processual Penal do Complexo Jurídico Damásio de Jesus.

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