Tribunal Regional Federal da 1ª Região está entre a jurisdição e a inércia

Autor: Ney Bello (*)

 

O Tribunal Regional Federal da 1ª Região abrange 66% do território nacional e exerce sua jurisdição sobre 13 estados da federação e o Distrito Federal. O gigantismo que o torna a mais extensa corte de apelação do mundo é o mesmo que pode transformá-lo no tribunal da não jurisdição. A combinação de 24 julgadores com cerca de 140 mil processos distribuídos ao ano resulta em gabinetes que chegam a 32 mil processos em média na 1ª sessão, 17 mil na 3ª seção e 16 mil da 4ª seção. Isso sem mencionar os 2,5 mil processos criminais por gabinete, em média, na 2ª seção. A exclamação óbvia que surge de leigos e versados é: não se faz jurisdição decente com um acervo desse tamanho!

Não é prestação jurisdicional: é não jurisdição!!

Obviamente, quem sofre com a ausência de serviço adequado não é o magistrado, mas o titular da vida que se discute nos autos de um processo que é apenas um, em meio a trinta e dois mil.

Um simples olhar desinteressado sobre as estatísticas faz perceber que os desembargadores titulares desses acervos trabalham muito. Não é possível dizer que o magistrado que julga 14 mil processos ao ano produz aquém da expectativa, ou que o desembargador que decide 50 processos penais por sessão semanal trabalha pouco.

Definitivamente o gigantismo tende a ferir de morte o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, e não são tão desarrazoadas assim as críticas que ele sofre na comunidade jurídica.

E o que é possível fazer?

Desconhecer o problema e ver o TRF-1 como a efetiva “corte plural da cidadania” é embalar-se no sonho e substituir a realidade pelo desejo. Deveria ser! Deve ser! Mas não é!

Não enxergar o problema é de uma infantilidade igual a da criança que desconsidera a existência da chuva, quando é hora de brincar no pátio.

Reconhecer nossas carências não é desamor, mas atitude de profunda paixão por nossas escolhas de vida, e por nossa casa: o tribunal.

Por Emenda Constitucional o TRF da 1ª Região foi desmembrado em três outros tribunais com sedes em Belo Horizonte, Salvador e Manaus. Correta a decisão do constituinte derivado. Foi perfeita a medida de descentralização da jurisdição e desconcentração da corte. Tende a ser inadministrável um tribunal que tem dentro de si um território gigante, e que contempla de Juiz de Fora, em Minas Gerais, à Cruzeiro do Sul, no Acre. No entanto, liminar judicial foi concedida e a EC nunca se transformou em realidade. Posteriormente, veio o projeto de aumento dos tribunais regionais federais. Sem desmembramento, o pesado elefante se tornaria um mamute inamovível. Sediados em Brasília estariam quase 60 desembargadores, duplicando o tribunal e resolvendo parte dos problemas jurisdicionais, e triplicando os defeitos administrativos.

Contudo, a solução implica custos elevados, o que a torna inviável num momento em que salários e energia elétrica não têm previsão — ainda — de serem pagos depois de outubro. Não há perspectiva financeira para novos TRFs e nem para aumento dos quadros dos atuais tribunais.

Enquanto isso, dormem inertes mais de 300 mil processos, e a grande maioria sem perspectiva de julgamento imediato, e não por inércia dos julgadores.

Em meio a esse caos diário, o TRF-1 convive com 27 juízes convocados, seja em turmas provisórias descentralizadas, seja no Programa de Aceleração de Julgamentos (PAJ). Há um novo tribunal de convocados dentro do próprio tribunal. Mais do mesmo: desde 1996 convive-se com a realidade de convocados e de turmas suplementares, sempre! E com pagamentos de deslocamentos e diárias.

Nada há de novo no rugir das tempestades.

Agora, com base no precedente do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que se utilizou deste artifício, a presidência do Tribunal Regional Federal da 1ª Região encaminhou ao Conselho da Justiça Federal (CJF) proposta de transformação de 24 cargos de juízes federais substitutos em 21 cargos de desembargadores, aumentando a força de trabalho do TRF-1 sem aumento de despesa.

O que isso significa?

O projeto implica transformar uma unidade jurisdicional que — acaso estivesse provida — teria um magistrado cuidando de 276 feitos — a menor delas — e 2.888 processos, a maior unidade transformada. Com o movimento, leva-se a unidade jurisdicional para dividir o acervo com outras que contam hoje com quantitativos de 32 mil a 16 mil processos, em média.

Após a transformação dos 25 cargos de juízes federais substitutos em 21 cargos de desembargadores, a vara federal dentre as 25 que mais sofrerá com a perda de seu juiz federal substituto passará a ter 5.776 processos por juiz. Já o gabinete mais beneficiado com a convolação de cargos passará a ter pouco mais de 10 mil processos. Ou seja: ainda assim, o dobro.

As unidades jurisdicionais mais prejudicadas em toda a 1ª Região seguramente são os gabinetes do tribunal, e qualquer preocupação realista e não particularmente interessada ou meramente retórica passa necessariamente pela redução do acervo do tribunal a números viáveis.

Há quem seja contra o projeto, e as razões são muitas. Existem naturalmente aqueles que aplaudem a concentração de poder festejando o jargão “quanto menos somos melhor passamos”, para quem todo aumento é deletério, toda divisão de poder, um mal em si! Não raro são os mesmos que reclamam a impossibilidade de criar novos cargos de desembargadores sem um contingente de servidores ou gabinetes de tamanho razoável.

“Mais assessores, por favor”. É o argumento do “Preservem, por gentileza, os mesmos nobres… Que somos nós! Oxalá o tempo volte e retomemos a era dos Duques e Barões. Não sendo possível, que ao menos renasça o velho Tribunal Federal de Recursos.”

A resposta é muito simples: a história anda para frente. Não anda para trás. Os tempos são outros. O TRF que mais possui servidores possui 20 deles por gabinete e não possui a estrutura administrativa que a 1ª Região se obriga a ter devido ao gigantismo, e à demora em abandonar os processos físicos e mergulhar na modernidade dos processos eletrônicos. Demais disso, não é razoável delegar um gabinete a assessores.

Há os que se preocupam, tão somente, com seu desejo de tribunal. Uma convolação de cargos aumentando o TRF-1 reduziria a força e o discurso dos inevitáveis tribunais de Belo Horizonte, Salvador e Manaus. Dizem uns.

Nada mais equivocado!

Não é possível submeter as necessidades da Justiça aos interesses comezinhos de quem quer que seja. Ou é razoável pedir ao jurisdicionado que espere em meio a 32 mil processos a chegada da sua decisão porque se sobrevier o caos, mais cedo sairá o tribunal das Minas Gerais?

Há quem seja contra qualquer descentralização. Ainda há a mística da antiga corte de apelação do século passado. Talvez dos tempos de Pedro II.

Ledo engano. A descentralização é inevitável. O fim dos processos físicos é inevitável.

O que se deseja com esse projeto é apenas seguir o caudal dos tempos que correm. O objetivo é a criação de duas turmas de julgamento em Belo Horizonte, nas Minas Gerais, para julgar processos previdenciários e tributários; uma turma de julgamento em Salvador com competência tributária, administrativa e previdenciária e outra turma em Manaus com igual competência. Ao chegarem os novos e inevitáveis tribunais regionais federais metade do caminho já estará pavimentado e sem custo. Faltará a metade do tribunal, a presidência e a corregedoria, apenas.

Não há custo por uma só razão: Os servidores já estão prestando serviços nas turmas provisórias. Já há estrutura de pessoal trabalhando neste exato momento, e todos os feitos novos deverão chegar ao tribunal a bordo do PJE, e portanto, eletrônicos.

Não fora o bastante, há quem seja contra porque se deve valorizar a primeira instância e todos os cargos de juiz substituto são importantes.

Há nisso um sofisma!

Afirmar a necessidade de praticar algo não implica a desnecessidade de outro ato que a ele se opõe, momentaneamente. Dormir é importante. Fazer exercícios também é! Se estivermos diante de um obeso, dormir menos e caminhar mais traz melhores resultados. A necessidade de aumento da segunda instância não implica, obviamente, a redução da primeira.

Ocorre que nos tempos que correm não há orçamento para — ao mesmo tempo — manter juiz titular e substituto em todas as varas de Salvador ou em Laranjal do Jari e ainda aumentar o Tribunal Regional Federal.

Pergunta que vem óbvia: onde o jurisdicionado lucra mais e vê o serviço público que fornecemos mais bem realizado? Com dois juízes em Oiapoque, com 280 processos cada um, ou com o acervo de 34 mil processos de um assento da 1ª Turma sendo dividido ao meio e cada magistrado herdando um acervo com 17 mil processos?

A inércia na busca de soluções faz-nos fracos. Ser contra soluções na ausência de argumentos racionais que justifiquem transforma-nos em vítimas de nós mesmos, e atrai a ferina crítica da mídia e do nosso principal cliente: o cidadão.

Todos os desembargadores da 1ª Região trabalham muito. Somos todos comprometidos com a pronta prestação jurisdicional.

Agora que a Presidência propôs ao CJF um aumento no número de julgadores sem aumento de despesa, com descentralização de turmas, é hora de a comunidade jurídica como um todo apostar em um novo tempo e em uma nova perspectiva. Só seremos fortes se cortarmos as amarras e percebermos o futuro da nossa jurisdição como um compromisso com o jurisdicionado e com o país.

E se a omissão nos faz fracos, o arcadismo nos destrói.

Somos do tempo da obrigatória taquigrafia, que nasceu no século V, quando outros TRFs já fazem sessões de turma por vídeo conferência.

Somos do tempo dos infindáveis carrinhos carregando pilhas de autos em papel, quando outros tribunais os substituem por levíssimos lap tops.

Modernizar, dividir, crescer e avançar!

É só o que nos resta.

A ousadia, o compromisso e a confiança são o que nos pode retirar a mácula de “Tribunal da Não Jurisdição.”!

Oxalá o futuro nos sorria e marchemos todos juntos.

 

 

 

Autor: Ney Bello é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Pós-doutor em Direito, professor, membro da Academia Maranhense de Letras.


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