Tributação de streaming gera “novo” conflito de competências

Autores: Luiz Furtado Junior, Ana Midori e Amanda Costa (*)

 

Diante do crescimento exponencial das aplicações da tecnologia streaming, estados e municípios têm buscado, cada um ao seu modo e de acordo com sua esfera de competência, regulamentar a incidência de tributos sobre essa forma de uso da internet com a intenção de aumentar a arrecadação tributária e suprir os repetidos déficits orçamentários. Nesse sentido, foram criados instrumentos normativos com o intuito de viabilizar a cobrança tanto do ICMS quanto do ISS sobre tais operações, criando conflitos de competência e dando início a discussões acerca da legalidade e constitucionalidade da incidência de tais impostos sobre o streaming.

Como é sabido, a Constituição Federal de 1988, ao tratar do Sistema Tributário Nacional, previu a repartição de competência tributária, determinando quais tributos poderiam ser instituídos e cobrados pelos seus entes federativos (União, estados e municípios). Tal medida impede que os entes federativos instituam impostos que extrapolem sua órbita de competência, evitando, portanto, a usurpação de competência alheia e, consequentemente, o bis in idem em matéria tributária.

Ao final de 2017 foram editadas diversas normas permitindo a incidência de dois impostos de competências distintas sobre as operações de streaming: o ICMS e o ISS. No âmbito estadual, o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) editou o Convênio ICMS 106 de 29 de setembro de 2017, o qual disciplinou a cobrança do ICMS sobre comercialização de transferência de dados via internet, como softwares, programas, jogos eletrônicos, aplicativos e arquivos eletrônicos. Por outro lado, o referido convênio, em sua cláusula segunda[1], previu isenção das transferências eletrônicas dos dados anteriores à saída para o consumidor final.

Em relação à legitimidade passiva, o convênio instituiu como contribuinte do ICMS a pessoa jurídica detentora do site ou plataforma eletrônica por meio do qual são disponibilizados os dados para transferência eletrônica. Neste ponto, vale ressaltar que o convênio estabelece que o contribuinte deverá obter inscrição estadual em todas as unidades federadas em que fizer operações de saída dos dados, para emissão das respectivas notas fiscais. Ademais, o convênio previu em sua cláusula 5ª a possibilidade de os estados atribuírem a responsabilidade pelo recolhimento do imposto a terceiros, tais como revendas de mercadorias digitais, intermediadores financeiros, adquirentes via e-commerce etc.

Nesse sentido, tendo em vista que o convênio editado pelo Confaz prescinde da legislação estadual para adequabilidade e exigibilidade da exação, os estados vêm editando normas de forma a adaptar a legislação já existente, a fim de viabilizar a tributação por meio do ICMS das operações relativas ao streaming. Por exemplo, no caso de São Paulo, foi publicado o Decreto 63.099/2017, o qual introduziu alterações no Regulamento de ICMS e entrará em vigor a partir de 1º de abril de 2018.

Pois bem, por outro lado, a Lei Complementar 157/2017, que altera a Lei Complementar 116/2003 (definidora da estrutura básica de tributação do ISS), inclui na lista anexa de serviços tributáveis pela aludida exação o “item 1.09”, que determina a incidência do ISS sobre a “disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdo de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet, respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos”.

Apesar da inclusão do item 1.09 na Lei Complementar 116/2003, a cobrança do ISS sobre o streaming não é imediata, de modo que cada município deverá alterar suas leis ordinárias para que o imposto incida sobre tais operações, devendo respeitar o princípio constitucional da anterioridade, previsto no artigo 150, III, b e c.

A partir daí, alguns municípios passaram a editar normas a fim de regulamentar a cobrança de ISS sobre o streaming, como a Lei 16.757/2017 e a Lei 6.263/2017, dos municípios de São Paulo e Rio de Janeiro, respectivamente.

Diante desse cenário, ainda restam muitas dúvidas a respeito da aplicação dessas normas, além do conflito de competência existente entre estados e municípios, questões essas que, ao que tudo indica, serão levadas ao saturado e moroso Poder Judiciário.

Em recente decisão, proferida em março (Processo 1010278-54.2018.8.26.0053), referente à tributação da tecnologia de streaming, uma associação civil sem fins lucrativos que representa os interesses das empresas do setor de tecnologia da informação e comunicação conseguiu uma liminar para afastar os efeitos práticos do Decreto 63.099/2017, editado com base no convênio ICMS 106/2017. Resumidamente, foi alegado na ocasião que não se poderia admitir a incidência de ICMS sobre o softwarepadronizado por transferência eletrônica através de download, bem como por acesso remoto, o chamado streaming (referente ao conteúdo acessado), com base em convênio e decreto. Para a associação, isso arrepia a hierarquia normativa das leis e afronta o disposto no artigo 146 da Constituição Federal, na medida em que apenas a lei complementar pode dispor sobre conflito de competências, em matéria tributária, entre os entes da federação, além de ser a única forma legítima de se regular limitações constitucionais ao poder de tributar e estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, tais como: base de cálculo, fato gerador, local da incidência, momento de incidência e sujeição passiva da obrigação tributária.

Em contrapartida, a Fazenda estadual de São Paulo afirma que o decreto e o convênio não inovam no ordenamento jurídico, mas apenas regulamentam uma materialidade preexistente, na medida em que o conceito constitucional de circulação de mercadoria não prescinde de um suporte físico (ADI 1.945). Portanto, deve ser dado tratamento jurídico idêntico aos softwares de prateleira e aos softwares obtido através de download.

Contudo, a utilização da analogia feita pela Fazenda estadual leva-nos a considerar o histórico jurisprudencial a respeito da tributação do software, que vem sendo discutido há mais de duas décadas. Em 1998, no julgamento do Recurso Extraordinário 176.626, o ministro Sepúlveda Pertence manifestou-se no sentido de que o licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador não configura mercadoria, não havendo incidência de ICMS. Neste ponto, vale relembrar que o conceito de mercadoria sob a ótica do Direito Tributário restringe-se ao bem móvel sujeito à mercancia, sendo indispensável que haja a transferência da propriedade para incidência do ICMS. Logo, a incidência ou não do ICMS sobre tais operações está diretamente ligada à interpretação do conceito de mercadoria.

Mais recentemente, foram ajuizadas as ações diretas de inconstitucionalidade 5.576 e 5.659, as quais buscam afastar a cobrança de ICMS sobre as operações envolvendo programas de computador, porém ainda aguardam julgamento no Supremo Tribunal Federal. Quanto à possibilidade de incidência do ISS sobre tais programas, o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 688.223, reconheceu a repercussão geral do tema, mas esse caso também aguarda julgamento.

Muito se discute se o streaming pode ser considerado uma prestação de serviço, uma vez que se trata da disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdo de áudio, vídeo, imagem e textos por meio da internet. Em outras palavras, tal disponibilização configuraria obrigação de dar, e não obrigação de fazer, distinção esta imprescindível para determinação da incidência ou não do ISS.

De forma inconclusiva, tudo indica que a tributação sobre a tecnologia de streaming será definida pelo Poder Judiciário, de modo que ainda não há como saber se as normas editadas pelos estados e municípios serão consideradas ilegais ou inconstitucionais. Assim, o caminho mais seguro para o contribuinte é se resguardar por meio da propositura de ações judiciaism a fim de evitar o surgimento de um passivo tributário perante os entes da federação.

 

 

 

 

Autores: Luiz Furtado Junior  é advogado no Saiani & Saglietti Advogados.

Ana Midori é advogada no Saiani & Saglietti Advogados.

Amanda Costa é advogada no Saiani & Saglietti Advogados.


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