Tributo precisa respeitar valores constitucionais

Por Heleno Taveira Torres

Meditemos sobre as célebres palavras do Chief of Justice John Marshall, da Corte dos EUA, McCulloch v. Maryland, de 1819, quando o estado de Maryland insistia em cobrar impostos do Second Bank of the United States: “o poder de tributar envolve o poder de destruir.” É certo que o tributo carrega esta força destrutiva imanente; entretanto, para não destruir, o tributo reclama “limites”, os quais hão de integrar seu próprio conceito. Daí a importância de se afirmar um conceito constitucional de tributo, à luz dos ditames do Estado Democrático e Social de Direito.

Não é novidade que, ao longo da história, a nota preponderante dos tributos foi o casuísmo e a severidade na sua cobrança, o que justificou conflitos, revoluções e até guerras. Como observa Hermes Marcelo Huck, “desde o momento em que a contribuição feita ao soberano deixou de ser uma doação ou um voluntário presente, transformando-se em exigência de poder e obrigação do súdito, um conflito surdo e constante nasceu, deixando cicatrizes nas civilizações que se foram sucedendo”. E não foram poucas essas cicatrizes.

Nos Estados Unidos, os tributos relacionados ao Stamp Act (1765), bem como sobre açúcar, chá e outros produtos importados, o Sugar Act (1764) e ao Townshend Act (1767), pela sistemática arrecadatória bastante agressiva, geraram severas revoltas, como a “Boston Tea Party” (1773). Disso resultaria a declaração de independência, em 1776.

Tamanha a resistência ao Fisco, todos os coletores de impostos de Luís XVI tiveram o mesmo fim trágico, foram guilhotinados, como anota Gabriel Ardant, no seu Historie de l’Impôt. Anatole France, no seu clássico Os Deuses Têm Sede lembra com pesar que até mesmo Lavoisier fora à guilhotina, sob a acusação de Jean-Paul Marat de que seria coletor de impostos de Luís XVI. Ante sua defesa, o juiz revolucionário teria dito: “A França não precisa de gênios”. Tamanha a fúria contra o Fisco, todos os coletores de impostos de então tiveram o mesmo fim.

No Brasil, dentre outros, tivemos a Inconfidência Mineira, como exemplo. Foram séculos de lutas e sofrimentos para que o princípio “no taxation without representation”, insculpido na Magna Charta Libertatum, de 1215, alcançasse afirmação como devido processo legal na exigência de tributos, como bem o viram Victor Uckmar ou mesmo Antonio Roberto Sampaio Dória.

No Brasil, o elemento nuclear da tributação deve ser o conceito constitucional de tributo, em torno ao qual gravitam todos os demais regimes e princípios do sistema tributário nacional. Daí a exigência de controles sobre a determinação dos tributos e suas espécies. A magnitude da importância da classificação dos tributos está, no dizer de Geraldo Ataliba (Hipótese de Incidência Tributária), em estipular “regimes próprios, específicos e exclusivos”, os quais “constituem um esquema balizador da tributação, que engendra direitos públicos subjetivos do contribuinte”.

Como proposta teórica, a construção de um conceito jurídico de tributo deve partir do garantismo constitucional e da efetividade dos direitos fundamentais.

Nossa Constituição instituiu um Sistema Tributário Nacional. Essa atitude normativa antecipa uma metodologia para conhecer e aplicar o direito tributário, que é o modelo de “sistema”, vedadas análises atomísticas, isoladas ou desgarradas do todo que o compõe. Por isso, no Brasil, não podem, as características tipológicas do tributo e suas espécies vir colhidas na legislação infraconstitucional, aleatoriamente, na medida em que se estaria por dilapidar a rigidez constitucional em matéria reservada à Constituição.

Não obstante essas ponderações, a doutrina ainda não se vê consolidada quanto à firme compreensão do tributo como conceito constitucional e seus efeitos. E isso se vê refletido até mesmo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, na qual a insegurança jurídica evidencia-se pela falta de um conceito estável, mas principalmente quanto aos critérios de classificação das espécies e suas notas características. Basta uma rápida pesquisa nos seus acórdãos para ver que: I) os julgamentos não assumem como ponto de partida o conceito constitucional de tributo e, quando o fazem, admitem a definição do CTN como suficiente; II) Sobre as espécies de tributos, há decisões que afirmam serem duas as espécies de tributos (i); em outras, três espécies; (ii) mas com variações — em alguns: impostos, taxas e contribuições; em outros: impostos, taxas e contribuição de melhoria; (iii) em alguns casos, aparecem quatro espécies (acrescenta-se o “empréstimo compulsório”); (iv) e em outros, cinco espécies. E quanto ao critério de diferenciação das espécies, o emprego do binômio hipótese de incidência e base de cálculo não se apresenta como algo uniforme.

Pois bem, estamos convictos em afirmar que o garantismo constitucional brasileiro reclama a definição de um conceito constitucional de tributo e que se deve concretizar no processo de aplicação dos tributos. Até porque, historicamente, o tributo sempre habitou o altiplano constitucional no nosso ordenamento.

Na Constituição de 1824, o tributo está no artigo 179, XV (“Ninguém será exempto de contribuir para as despezas do Estado em proporção dos seus haveres”), e foram muitos tipos e modelos, como relata Liberato de Castro Ferreira, no seu clássico História financeira e orçamentária do Império no Brasil.

Contudo, foi na Constituição de 1891 que se viu a classificação das taxas e impostos alçada ao plano constitucional e a atribuição destas exações à União e estados, segundo competências, no âmbito do federalismo instituído junto com a República pelo Decreto nº 1, de 1889. Se a forma foi a melhor, as preocupações de Rui Barbosa, no seu “Relatório do Ministro da Fazenda”, de 1891, bem como as críticas de Victor Nunes Leal, no Coronelismo, Enxada e Voto, de Oliveira Vianna, no seu O Idealismo da Constituição, ou de Raymundo Faoro, em Os Donos do Poder, não deixam dúvidas quanto aos desalinhos do sistema.

Este modelo foi aprimorado na Constituição de 1934, acrescida da autonomia tributária dos municípios, além do aparecimento da contribuição de melhoria, modalidade tributária tão bem estudada por Bilac Pinto, na sua obra datada de 1937.

Entretanto, uma cláusula geral dos tributos, ao lado das demais competências, bem como um alargamento de limitações ao poder de tributar, como o próprio princípio de capacidade contributiva, surgem com ênfase na Constituição de 1946, com contribuição segura do então deputado Aliomar Baleeiro.

Por isso, na Constituição de 1988 está depositado o acumular de experiências de nossos antepassados, na tensão contínua entre distribuições de competências tributárias no âmbito de um federalismo instituído pelo Decreto nº 1, de 1889, junto com a República.

Ante o constitucionalismo garantista brasileiro, que compreende o “tributo” como “norma jurídica” integrada ao Sistema Tributário como “regra de competência”, sob a efetiva rigidez constitucional decorrente dos princípios do federalismo e dos direitos e garantias fundamentais, o rigor da técnica jurídica deve avançar segundo uma metódica preponderantemente jurídica.

Entende-se como “garantia” aquela norma constitucional que tenha a função de servir como instrumento de proteção dos princípios e seus valores, ao tempo que confere aos destinatários poderes para reclamar sua observância, na função de bloqueio.

Por isso, dizer que o conceito constitucional de tributo e a classificação de suas espécies tem a natureza de norma de competência ainda diz pouco. Há uma função de “garantia” de direitos fundamentais, como típica “limitação constitucional ao poder de tributar”, logo, vinculante de todas as pessoas políticas, que não se pode olvidar.

Diante dessas breves considerações, o primeiro mito que se deve eliminar do estudo da tributação à luz de um modelo de Estado Democrático e Social de Direito é aquele segundo o qual o tributo é expressão de “poder”, na forma de jus imperii ou similar, por se tratar de conceito constitucional que visa a limitar o poder de tributar. Feitas essas considerações, demonstra-se que somente em um sentido “vulgar”, como observa Ferreiro Lapatza, pode-se qualificar o tributo como uma “prestação pecuniária coativa imposta pelo Estado”.

Rubens Gomes de Sousa, em diálogo com Geraldo Ataliba e Paulo de Barros Carvalho, nos comentários ao CTN, coincidem na opinião de que toda e qualquer receita pública dirige-se para a mesma finalidade, que é a atividade financeira do Estado, que não seria, a exemplo da compulsoriedade, uma nota exclusiva dos tributos.

Ora, dizer que o tributo é exercício de jus imperii é um regresso aos fundamentos típicos do absolutismo, segundo um “direito de suprema necessidade”, quando se empregavam as “razões de Estado” como sua justificativa legitimadora. Começa, então, a história do “tributo” como expressão da soberania, como obrigação exigida em função do jus imperii do Estado. Para melhor entendimento, vale recordar Bodin (Os Seis Livros da República, capítulo II do livro VI), para quem o direito de tributar ou de isentar os súditos decorreria da soberania, como uma manifestação desta, pelas leis e pelos privilégios. Para ele, o príncipe não precisaria especificar os casos em que o soberano deveria impor tributos ou conceder isenções, já que o poder de fazê-lo se imporia sobre qualquer outro.

Mais tarde, como mudança desse paradigma, no recém-surgido Estado de Direito francês, o tributo via-se justificado pelo consentimento ao tributo, já que agora seria o “povo” quem decidiria sobre quem deve pagar o tributo (i) e de que forma o tributo deveria ser apurado e pago (ii). A legalidade substituía, assim, a razão de Estado. Esta foi a grande conquista do século XIX em matéria de tributos, a uniformidade dos critérios, inerentes à generalidade e à capacidade contributiva.

Outra virada de legitimação veio com o Estado Democrático de Direito. No Estado Constitucional, o tributo deve ser qualificado pela Constituição. Por isso, diz muito bem Klaus Tipke: “No Estado de Direito material somente se legitimam os tributos se eles são formados justificadamente pela ordem valorativa constitucional”. E, quando combinado com a feição “social”, o tributo assume a função redistributiva, além de atender as necessidades públicas. Assim, no modelo do Estado democrático e social de Direito rompe-se com qualquer legitimação externa, para uma prevalência do conceito de tributo eminentemente constitucional. Neste, somente a força normativa da Constituição, no seu conjunto de competências e limitações constitucionais, fundamenta materialmente o tributo no Estado Democrático e Social de Direito.

A Constituição Financeira do Brasil abrange o financiamento do federalismo por um rígido modelo de discriminação constitucional de rendas, mediante distribuição de fontes (competências) e produto de arrecadação (distribuição de receita), segundo uma partilha do poder de tributar entre as unidades federativas, além da função redistributiva de riqueza, pelos sistemas de previdência e assistência social.

Como alertou Franco Gallo (Le ragioni del fisco: Etica e giustizia nella tassazione), nos dias atuais já não seria possível, sequer sob a teoria econômica, um sistema de tributos baseado em critérios sinalagmáticos. A teoria do benefício, equivalência, contraprestação (benefit theory) consistia em uma equivalência entre os impostos pagos pelo contribuinte e as prestações recebidas do Estado. Segundo essa doutrina, os tributos deveriam ser cobrados de acordo com os benefícios recebidos do produto da arrecadação. Diversamente, cabe aos tributos a função de financiar a despesa pública com base em justiça distributiva e segundo a capacidade contributiva, conforme a chamada teoria do sacrifício. Thomas Nagel e Liam Murphy (O Mito da propriedade), igualmente examinam esses fundamentos para chegarem a semelhantes conclusões quanto à finalidade econômica dos tributos.

Afastados da dimensão política ou daquelas econômicas e financeiras, nas quais o tributo é examinado pelo seu aspecto pragmático, na relação entre o pagamento do tributo com o poder ou com as necessidades coletivas, tem-se que conferir atenção ao tributo concebido pelo seu aspecto formal e material, em termos estritamente jurídicos.

A Constituição tributária equivale a uma série de regras, princípios e competências para fazer valer o próprio conceito de tributo e suas espécies, como parcela do âmbito material da Constituição. Nesse plano, o tributo é “norma” de competência, ainda que possua função de garantia, pelos limites que impõe ao legislador.

O Sistema Constitucional Tributário não pode prescindir de um conceito constitucional de tributo que permita determinar as notas típicas que autorizem a aplicação do regime constitucional e todos os princípios do garantismo tributário às suas espécies, a cada ato de exercício de competências.

A dimensão-síntese é aquela sistêmica, que compreende o tributo integrado aos direitos fundamentais e às competências do Estado, de modo a evidenciar uma função garantista contra arbítrios na sua aplicação e, ao mesmo tempo, a realização de uma justiça fiscal material, ao lado do financiamento do Estado e coordenação da economia.

No Brasil, pode-se falar da existência de um conceito constitucional de tributo, obtido por indução, a partir da identificação dos regimes jurídicos de cada uma das espécies impositivas previstas na Constituição, e não apenas por dedução de um gênero para suas espécies, em virtude da forma organizativa das competências tributárias.

César García Novoa, (El concepto de tributo), evidencia essa premissa, ao dizer: “Un concepto constitucional de tributo podría llevarse a cabo a través de un método inductivo, a partir de las características particulares de una clasificación contenida en la legislación ordinaria”. Assim, a partir dos regimes das espécies colecionadas no texto constitucional, para garantir a unidade do conceito constitucional de tributo, por indução, chega-se ao conceito de tributo, como normas de competência.

Por isso não poderia ser outra a conclusão: os regimes jurídicos de cada uma das espécies de tributos na Constituição, integrados pelos direitos fundamentais e normas de competências, definem a tipologia do conceito-gênero de “tributo” no nosso sistema, na sua função garantista.

Portanto, no seu mínimo de significação, o conceito de tributo na Constituição poderia ser assim enunciado: tributo é norma de competência que tem por objeto uma prestação obrigacional instituída por lei, submetida às limitações constitucionais tributárias, segundo os regimes de impostos, taxas ou contribuições, e cobrada mediante atividade administrativa vinculada.

De resto, à luz desse conceito, só há tributo quando os valores constitucionais que orientam os regimes de cada uma das espécies sejam respeitados, do contrário ter-se-á o “confisco”, que é utilizar o tributo em contrariedade a esses fundamentos. Ou seja, qualquer receita que não atenda aos pressupostos do tributo na Constituição, das duas uma, ou será qualquer outro tipo de receita pública ou exação com “efeito de confisco”, nunca “tributo”. Eis sua função de garantia evidenciada, portanto.

Desta garantia de criação e aplicação dos tributos plenamente vinculados à Constituição material, deriva a vinculação do procedimento da legalidade ou dos atos administrativos, que é o due process of law por excelência em matéria tributária.

Somente assim soergue-se um Sistema Tributário eficiente, que assista às necessidades arrecadatórias do Estado, permita a redistribuição de riqueza e seja meio de ação da Economia, mas sob a égide da efetividade de direitos e liberdades de um Estado democrático e social de Direito. Destarte, pode-se volver, em paráfrase ao juiz Oliver Wendell Holmes Jr. (1928, Panhandle Oil Co. v. State of Mississippi), quando se reportava àquele Precedente de Marshall, que, enquanto existir Estado Democrático de Direito, e seus cidadãos e autoridades fazendárias assumirem o compromisso de concretizar seus princípios, o poder de tributar não se converterá em poder de destruir.

Consultor Tributário

Tributo precisa respeitar valores constitucionais
Por Heleno Taveira Torres

Meditemos sobre as célebres palavras do Chief of Justice John Marshall, da Corte dos EUA, McCulloch v. Maryland, de 1819, quando o estado de Maryland insistia em cobrar impostos do Second Bank of the United States: “o poder de tributar envolve o poder de destruir.” É certo que o tributo carrega esta força destrutiva imanente; entretanto, para não destruir, o tributo reclama “limites”, os quais hão de integrar seu próprio conceito. Daí a importância de se afirmar um conceito constitucional de tributo, à luz dos ditames do Estado Democrático e Social de Direito.

Não é novidade que, ao longo da história, a nota preponderante dos tributos foi o casuísmo e a severidade na sua cobrança, o que justificou conflitos, revoluções e até guerras. Como observa Hermes Marcelo Huck, “desde o momento em que a contribuição feita ao soberano deixou de ser uma doação ou um voluntário presente, transformando-se em exigência de poder e obrigação do súdito, um conflito surdo e constante nasceu, deixando cicatrizes nas civilizações que se foram sucedendo”. E não foram poucas essas cicatrizes.

Nos Estados Unidos, os tributos relacionados ao Stamp Act (1765), bem como sobre açúcar, chá e outros produtos importados, o Sugar Act (1764) e ao Townshend Act (1767), pela sistemática arrecadatória bastante agressiva, geraram severas revoltas, como a “Boston Tea Party” (1773). Disso resultaria a declaração de independência, em 1776.

Tamanha a resistência ao Fisco, todos os coletores de impostos de Luís XVI tiveram o mesmo fim trágico, foram guilhotinados, como anota Gabriel Ardant, no seu Historie de l’Impôt. Anatole France, no seu clássico Os Deuses Têm Sede lembra com pesar que até mesmo Lavoisier fora à guilhotina, sob a acusação de Jean-Paul Marat de que seria coletor de impostos de Luís XVI. Ante sua defesa, o juiz revolucionário teria dito: “A França não precisa de gênios”. Tamanha a fúria contra o Fisco, todos os coletores de impostos de então tiveram o mesmo fim.

No Brasil, dentre outros, tivemos a Inconfidência Mineira, como exemplo. Foram séculos de lutas e sofrimentos para que o princípio “no taxation without representation”, insculpido na Magna Charta Libertatum, de 1215, alcançasse afirmação como devido processo legal na exigência de tributos, como bem o viram Victor Uckmar ou mesmo Antonio Roberto Sampaio Dória.

No Brasil, o elemento nuclear da tributação deve ser o conceito constitucional de tributo, em torno ao qual gravitam todos os demais regimes e princípios do sistema tributário nacional. Daí a exigência de controles sobre a determinação dos tributos e suas espécies. A magnitude da importância da classificação dos tributos está, no dizer de Geraldo Ataliba (Hipótese de Incidência Tributária), em estipular “regimes próprios, específicos e exclusivos”, os quais “constituem um esquema balizador da tributação, que engendra direitos públicos subjetivos do contribuinte”.

Como proposta teórica, a construção de um conceito jurídico de tributo deve partir do garantismo constitucional e da efetividade dos direitos fundamentais.

Nossa Constituição instituiu um Sistema Tributário Nacional. Essa atitude normativa antecipa uma metodologia para conhecer e aplicar o direito tributário, que é o modelo de “sistema”, vedadas análises atomísticas, isoladas ou desgarradas do todo que o compõe. Por isso, no Brasil, não podem, as características tipológicas do tributo e suas espécies vir colhidas na legislação infraconstitucional, aleatoriamente, na medida em que se estaria por dilapidar a rigidez constitucional em matéria reservada à Constituição.

Não obstante essas ponderações, a doutrina ainda não se vê consolidada quanto à firme compreensão do tributo como conceito constitucional e seus efeitos. E isso se vê refletido até mesmo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, na qual a insegurança jurídica evidencia-se pela falta de um conceito estável, mas principalmente quanto aos critérios de classificação das espécies e suas notas características. Basta uma rápida pesquisa nos seus acórdãos para ver que: I) os julgamentos não assumem como ponto de partida o conceito constitucional de tributo e, quando o fazem, admitem a definição do CTN como suficiente; II) Sobre as espécies de tributos, há decisões que afirmam serem duas as espécies de tributos (i); em outras, três espécies; (ii) mas com variações — em alguns: impostos, taxas e contribuições; em outros: impostos, taxas e contribuição de melhoria; (iii) em alguns casos, aparecem quatro espécies (acrescenta-se o “empréstimo compulsório”); (iv) e em outros, cinco espécies. E quanto ao critério de diferenciação das espécies, o emprego do binômio hipótese de incidência e base de cálculo não se apresenta como algo uniforme.

Pois bem, estamos convictos em afirmar que o garantismo constitucional brasileiro reclama a definição de um conceito constitucional de tributo e que se deve concretizar no processo de aplicação dos tributos. Até porque, historicamente, o tributo sempre habitou o altiplano constitucional no nosso ordenamento.

Na Constituição de 1824, o tributo está no artigo 179, XV (“Ninguém será exempto de contribuir para as despezas do Estado em proporção dos seus haveres”), e foram muitos tipos e modelos, como relata Liberato de Castro Ferreira, no seu clássico História financeira e orçamentária do Império no Brasil.

Contudo, foi na Constituição de 1891 que se viu a classificação das taxas e impostos alçada ao plano constitucional e a atribuição destas exações à União e estados, segundo competências, no âmbito do federalismo instituído junto com a República pelo Decreto nº 1, de 1889. Se a forma foi a melhor, as preocupações de Rui Barbosa, no seu “Relatório do Ministro da Fazenda”, de 1891, bem como as críticas de Victor Nunes Leal, no Coronelismo, Enxada e Voto, de Oliveira Vianna, no seu O Idealismo da Constituição, ou de Raymundo Faoro, em Os Donos do Poder, não deixam dúvidas quanto aos desalinhos do sistema.

Este modelo foi aprimorado na Constituição de 1934, acrescida da autonomia tributária dos municípios, além do aparecimento da contribuição de melhoria, modalidade tributária tão bem estudada por Bilac Pinto, na sua obra datada de 1937.

Entretanto, uma cláusula geral dos tributos, ao lado das demais competências, bem como um alargamento de limitações ao poder de tributar, como o próprio princípio de capacidade contributiva, surgem com ênfase na Constituição de 1946, com contribuição segura do então deputado Aliomar Baleeiro.

Por isso, na Constituição de 1988 está depositado o acumular de experiências de nossos antepassados, na tensão contínua entre distribuições de competências tributárias no âmbito de um federalismo instituído pelo Decreto nº 1, de 1889, junto com a República.

Ante o constitucionalismo garantista brasileiro, que compreende o “tributo” como “norma jurídica” integrada ao Sistema Tributário como “regra de competência”, sob a efetiva rigidez constitucional decorrente dos princípios do federalismo e dos direitos e garantias fundamentais, o rigor da técnica jurídica deve avançar segundo uma metódica preponderantemente jurídica.

Entende-se como “garantia” aquela norma constitucional que tenha a função de servir como instrumento de proteção dos princípios e seus valores, ao tempo que confere aos destinatários poderes para reclamar sua observância, na função de bloqueio.

Por isso, dizer que o conceito constitucional de tributo e a classificação de suas espécies tem a natureza de norma de competência ainda diz pouco. Há uma função de “garantia” de direitos fundamentais, como típica “limitação constitucional ao poder de tributar”, logo, vinculante de todas as pessoas políticas, que não se pode olvidar.

Diante dessas breves considerações, o primeiro mito que se deve eliminar do estudo da tributação à luz de um modelo de Estado Democrático e Social de Direito é aquele segundo o qual o tributo é expressão de “poder”, na forma de jus imperii ou similar, por se tratar de conceito constitucional que visa a limitar o poder de tributar. Feitas essas considerações, demonstra-se que somente em um sentido “vulgar”, como observa Ferreiro Lapatza, pode-se qualificar o tributo como uma “prestação pecuniária coativa imposta pelo Estado”.

Rubens Gomes de Sousa, em diálogo com Geraldo Ataliba e Paulo de Barros Carvalho, nos comentários ao CTN, coincidem na opinião de que toda e qualquer receita pública dirige-se para a mesma finalidade, que é a atividade financeira do Estado, que não seria, a exemplo da compulsoriedade, uma nota exclusiva dos tributos.

Ora, dizer que o tributo é exercício de jus imperii é um regresso aos fundamentos típicos do absolutismo, segundo um “direito de suprema necessidade”, quando se empregavam as “razões de Estado” como sua justificativa legitimadora. Começa, então, a história do “tributo” como expressão da soberania, como obrigação exigida em função do jus imperii do Estado. Para melhor entendimento, vale recordar Bodin (Os Seis Livros da República, capítulo II do livro VI), para quem o direito de tributar ou de isentar os súditos decorreria da soberania, como uma manifestação desta, pelas leis e pelos privilégios. Para ele, o príncipe não precisaria especificar os casos em que o soberano deveria impor tributos ou conceder isenções, já que o poder de fazê-lo se imporia sobre qualquer outro.

Mais tarde, como mudança desse paradigma, no recém-surgido Estado de Direito francês, o tributo via-se justificado pelo consentimento ao tributo, já que agora seria o “povo” quem decidiria sobre quem deve pagar o tributo (i) e de que forma o tributo deveria ser apurado e pago (ii). A legalidade substituía, assim, a razão de Estado. Esta foi a grande conquista do século XIX em matéria de tributos, a uniformidade dos critérios, inerentes à generalidade e à capacidade contributiva.

Outra virada de legitimação veio com o Estado Democrático de Direito. No Estado Constitucional, o tributo deve ser qualificado pela Constituição. Por isso, diz muito bem Klaus Tipke: “No Estado de Direito material somente se legitimam os tributos se eles são formados justificadamente pela ordem valorativa constitucional”. E, quando combinado com a feição “social”, o tributo assume a função redistributiva, além de atender as necessidades públicas. Assim, no modelo do Estado democrático e social de Direito rompe-se com qualquer legitimação externa, para uma prevalência do conceito de tributo eminentemente constitucional. Neste, somente a força normativa da Constituição, no seu conjunto de competências e limitações constitucionais, fundamenta materialmente o tributo no Estado Democrático e Social de Direito.

A Constituição Financeira do Brasil abrange o financiamento do federalismo por um rígido modelo de discriminação constitucional de rendas, mediante distribuição de fontes (competências) e produto de arrecadação (distribuição de receita), segundo uma partilha do poder de tributar entre as unidades federativas, além da função redistributiva de riqueza, pelos sistemas de previdência e assistência social.

Como alertou Franco Gallo (Le ragioni del fisco: Etica e giustizia nella tassazione), nos dias atuais já não seria possível, sequer sob a teoria econômica, um sistema de tributos baseado em critérios sinalagmáticos. A teoria do benefício, equivalência, contraprestação (benefit theory) consistia em uma equivalência entre os impostos pagos pelo contribuinte e as prestações recebidas do Estado. Segundo essa doutrina, os tributos deveriam ser cobrados de acordo com os benefícios recebidos do produto da arrecadação. Diversamente, cabe aos tributos a função de financiar a despesa pública com base em justiça distributiva e segundo a capacidade contributiva, conforme a chamada teoria do sacrifício. Thomas Nagel e Liam Murphy (O Mito da propriedade), igualmente examinam esses fundamentos para chegarem a semelhantes conclusões quanto à finalidade econômica dos tributos.

Afastados da dimensão política ou daquelas econômicas e financeiras, nas quais o tributo é examinado pelo seu aspecto pragmático, na relação entre o pagamento do tributo com o poder ou com as necessidades coletivas, tem-se que conferir atenção ao tributo concebido pelo seu aspecto formal e material, em termos estritamente jurídicos.

A Constituição tributária equivale a uma série de regras, princípios e competências para fazer valer o próprio conceito de tributo e suas espécies, como parcela do âmbito material da Constituição. Nesse plano, o tributo é “norma” de competência, ainda que possua função de garantia, pelos limites que impõe ao legislador.

O Sistema Constitucional Tributário não pode prescindir de um conceito constitucional de tributo que permita determinar as notas típicas que autorizem a aplicação do regime constitucional e todos os princípios do garantismo tributário às suas espécies, a cada ato de exercício de competências.

A dimensão-síntese é aquela sistêmica, que compreende o tributo integrado aos direitos fundamentais e às competências do Estado, de modo a evidenciar uma função garantista contra arbítrios na sua aplicação e, ao mesmo tempo, a realização de uma justiça fiscal material, ao lado do financiamento do Estado e coordenação da economia.

No Brasil, pode-se falar da existência de um conceito constitucional de tributo, obtido por indução, a partir da identificação dos regimes jurídicos de cada uma das espécies impositivas previstas na Constituição, e não apenas por dedução de um gênero para suas espécies, em virtude da forma organizativa das competências tributárias.

César García Novoa, (El concepto de tributo), evidencia essa premissa, ao dizer: “Un concepto constitucional de tributo podría llevarse a cabo a través de un método inductivo, a partir de las características particulares de una clasificación contenida en la legislación ordinaria”. Assim, a partir dos regimes das espécies colecionadas no texto constitucional, para garantir a unidade do conceito constitucional de tributo, por indução, chega-se ao conceito de tributo, como normas de competência.

Por isso não poderia ser outra a conclusão: os regimes jurídicos de cada uma das espécies de tributos na Constituição, integrados pelos direitos fundamentais e normas de competências, definem a tipologia do conceito-gênero de “tributo” no nosso sistema, na sua função garantista.

Portanto, no seu mínimo de significação, o conceito de tributo na Constituição poderia ser assim enunciado: tributo é norma de competência que tem por objeto uma prestação obrigacional instituída por lei, submetida às limitações constitucionais tributárias, segundo os regimes de impostos, taxas ou contribuições, e cobrada mediante atividade administrativa vinculada.

De resto, à luz desse conceito, só há tributo quando os valores constitucionais que orientam os regimes de cada uma das espécies sejam respeitados, do contrário ter-se-á o “confisco”, que é utilizar o tributo em contrariedade a esses fundamentos. Ou seja, qualquer receita que não atenda aos pressupostos do tributo na Constituição, das duas uma, ou será qualquer outro tipo de receita pública ou exação com “efeito de confisco”, nunca “tributo”. Eis sua função de garantia evidenciada, portanto.

Desta garantia de criação e aplicação dos tributos plenamente vinculados à Constituição material, deriva a vinculação do procedimento da legalidade ou dos atos administrativos, que é o due process of law por excelência em matéria tributária.

Somente assim soergue-se um Sistema Tributário eficiente, que assista às necessidades arrecadatórias do Estado, permita a redistribuição de riqueza e seja meio de ação da Economia, mas sob a égide da efetividade de direitos e liberdades de um Estado democrático e social de Direito. Destarte, pode-se volver, em paráfrase ao juiz Oliver Wendell Holmes Jr. (1928, Panhandle Oil Co. v. State of Mississippi), quando se reportava àquele Precedente de Marshall, que, enquanto existir Estado Democrático de Direito, e seus cidadãos e autoridades fazendárias assumirem o compromisso de concretizar seus princípios, o poder de tributar não se converterá em poder de destruir.

Heleno Taveira Torres é advogado, professor e livre-docente de Direito Tributário da Faculdade de Direito da USP, e membro do Comitê Executivo da International Fiscal Association.

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