Movido por intensa preocupação de espírito público, instada pelo ressoar do sino de alerta constitucional frente ao contexto histórico recente em nosso país, é que escrevo estas poucas linhas. E o faço dirigindo-me a cada cidadão e cidadã brasileiros, ainda que não possuidores de conhecimentos jurídicos, pedindo aos últimos as devidas desculpas por uma ou outra atecnia, pelo intuito do caráter didático.
A recente aprovação do Projeto de Lei 6.295/2002 – CD pelo Congresso Nacional, que estabelece foro especial aos ocupantes passados de cargos ou funções públicas, bem como a iminente deliberação dos Projetos de Lei 65/99 e 536/99, que tratam de matéria alcunhada “Lei da Mordaça”, constituem tristes passos dados, respectivamente de fato e em potencial, de involução em nossa tão tenra democracia, sonhada em tempos de ditadura sob sangue, suor e lágrimas vertentes de homens e mulheres calados pelo medo do canhão, e desenhada, num ar de esperança cívica, com imperatividade, pelo texto constitucional.
A democracia não se institui da noite para o dia. É processo contínuo de conquistas, desafios, e obstáculos opostos pelos que têm interesses contrariados diante do exercício da geral liberdade, igualdade e fraternidade (ou solidariedade).
Pode ser representada, assim, como uma construção que se vai edificando, estabelecendo fundações em solo firme e lapidando as pedras preciosas que cobrirão o revestimento de suas paredes e assentarão o formoso teto que aninhará o proprietário: o povo.
Mas o construtor tem adversários, como o meio hostil que lhe inveja o logro, o lobo que se acerca a seus trabalhadores com intimidação e o ladrão que aparece repentinamente para subtrair-lhe materiais. E estes percalços de caminho são rotineiros, cabendo ao construtor manter vigilância constante e de tudo fazer ciência ao proprietário, mostrando-lhe o zelo despendido em sua difícil, mas mui gratificante e importante tarefa, e buscar nele o necessário apoio para a sua consecução. A comunicação e o apoio são, pois, necessários à missão pretendida.
Entendamos o construtor como o poder público. Se o fizermos com concepções pretéritas, mas nunca esquecidas, poderemos confundi-lo com a vontade de um homem ou de um grupo. Mas, se a idéia, como ora proposta, ligar-se à concepção moderna, compreendê-lo-emos como a síntese das aspirações de um povo, projetadas e concretizadas por este mesmo ou por pessoas por ele investidas de meios para a realização de seus fins, ligados ao bem estar geral.
Aqueles que recebem esses meios não são importados do imaginário coletivo, seres alienígenas ou dotados de capacidades extra-sensoriais. São membros desse próprio povo, escolhidos por este para servi-lo.
Certamente que os escolhidos deverão portar condições necessárias à realização do bem comum. Daí, e por esta razão, lhes são atribuídas autoridades e poderes. Cada um contribuirá para o bem coletivo com uma atividade específica, ou seja, função. E o fará (ou melhor, deverá fazer) voltado constantemente para o todo, numa incessante simbiose.
Ressalta-se, assim, o caráter instrumental do Estado, do Direito e do Poder. Com mais particularidade, destaca-se a noção disto decorrente, de que os poderes, as prerrogativas, os direitos e deveres são atribuídos pelo povo aos seus agentes imediatos ou mediatos (respectivamente, os eleitos e os concretizadores da ordem jurídica) como meios necessários, proporcionais e adequados para a realização de seus fins (do povo, frise-se).
Seriam esses meios entregues em doação? Evidencia-se negativa a resposta, diante do que se vem discorrendo. Comunicação, controle e responsabilidade caminham juntos a eles, como elementos indissociáveis.
Se assim deve ser, uma democracia deve proporcionar a participação direta e indireta do povo no exercício das funções públicas, seja com a oportunidade de praticar determinados atos (como a iniciativa de leis e a discussão do orçamento, p. ex.), seja com a comunicação de dados e informações (o que se faz com os tributos do Estado? Por que determinado ato, quer legislativo, quer executivo, quer judicial – necessidade de fundamentação das decisões -, foi praticado?). Enfim, oportunizar a ação e vigilância do detentor do poder, para que este saiba como estão operando os seus agentes e, com isso, possibilitar a sua colaboração e controle. Este deverá ser exercido também por órgãos estatais, em nome do povo, por pessoas dotadas pela ordem jurídica de capacidade e isenção que as tornem aptas à consecução de suas funções; e que, da mesma forma, receberão vigilância e apoio populares.
Em suma, indispensáveis a uma democracia são a transparência, o controle e a responsabilidade, ao lado dos direitos, prerrogativas, poderes e deveres. Isto é consectário de uma idéia de democracia baseada em critérios de legalidade, igualdade e solidariedade, que exige ética, eficiência e probidade, dentre outras características, dos agentes públicos.
Tais elementos decorrentes da democracia devem ter máxima efetividade, sendo esta a regra em uma sociedade. Excepcionalmente ela admite o contrário, sob pena de subversão da ordem e violação de seus princípios. Para isso, a democracia exige atuação eficaz do legislador, do administrador, do fiscal e do julgador.
Assim, a atuação do legislador na criação de proibições de determinados comportamentos, mormente na esfera administrativa, especialmente com fito de prevenção (para evitar que o dano seja causado ou, ao menos, diminuir as possibilidades ou atenuar os prejuízos), e fixação das respectivas sanções; a atuação efetiva dos órgãos de fiscalização e controle estatais, com respectiva dotação de materiais e instrumentos, à evidência; o amplo conhecimento popular da atuação do poder público, que é bastante viabilizado através dos meios de comunicação de massa; etc.; ou seja, o desenvolvimento dos mecanismos de viabilização de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, devem ser fomentados e implementados.
De nada adianta, afirme-se com vigor, o estabelecimento de instituições de fachada, como leis inexeqüíveis, quer pela ausência de sanção, quer pela não concessão dos correlativos meios de fiscalização e controle ou de execução; ou, ainda, as que contêm tantos requisitos de concretização que as tornam quase inaplicáveis, como vamos nos referir adiante.
Não mais é tempo de discursos vazios, de promessas vãs. A democracia requisitada pela atual sociedade é aquela que transforma palavras e intenções populares, por meio da razão, em gestos, em atos concretos. É tempo da chamada democracia substancial (termo bastante utilizado pelo italiano Luigi Ferrajoli), em sucessão à meramente formal, prevista em verbos ou textos e apenas imaginada no seio social.
A transparência deve possibilitar a vigilância e o apoio; estes, o controle; e o último a responsabilidade. É preciso legitimidade, além da legalidade pura e simples. A modelar conduta do agente público na realização do bem estar social é impreterível, seja implementando o que demanda a democracia, seja cumprindo o que dele se exige e foi prometido ao povo. Um trecho da Bíblia com palavras de Jesus, bem exemplifica o que dizemos:
“Acautelai-vos dos falsos profetas, que se vos apresentam disfarçados em ovelhas, mas por dentro são lobos roubadores.
Pelos seus frutos os conhecereis (…)
Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus.
Muitos, naquele dia, hão de dizer-me: Senhor, Senhor! Porventura, não temos nós profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos demônios, e em teu nome não fizemos muitos milagres?
Então, lhes direi explicitamente: nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniqüidade” (Mateus 7:15 e 16, 21-23) (destaques nossos).
Assim como para o cristão a palavra desgarrada da respectiva prática corresponde à iniqüidade, assim também para o agente público, o exercício da função destoante ao preceituado pela ordem democrática, hoje corporificado na Constituição e nas leis, significa deslealdade e desobediência ao povo, tornando ilegítima a sua atuação.
De nada adianta o apregoar de uma nação detentora de uma ordem justa e fraterna, quando se verificam atos de exclusão, e não de inclusão social; de restrições à democracia substancial com limitações desarrazoadas, desproporcionais, inadequadas, casuísticas, fomentadoras da desigualdade e da ilicitude, com a formação de castas privilegiadas em detrimento de outra muda, surda e impotente, em suma, a ampla viabilização da ação dos adversários da democracia.
Trazendo à prática a teoria.
O Brasil passou por um longo e triste período de exceção. Tempo em que reuniões eram bastante restringidas, em que a palavra era cerceada, em que ilegalidades de toda a sorte aconteciam, mas não se podiam levar a público ou, se isto ocorresse, nada era verificado como conseqüência, gerando um clima de constante impunidade, sentimento de desigualdade e desdém para o que é coletivo.
Veio a Constituição de 1988. Aboliu-se a censura, ficando livre a manifestação de pensamento, vedado o anonimato, e responsável o que violar injustamente a honra e a imagem das pessoas. Erigiram-se normas-princípio com força imperativa, além das normas-regra, por toda a esfera de atuação pública e privada. Exigiu-se do agente público o respeito à democracia, com o anúncio de severas conseqüências aos seus injuriadores. Neste sentido, além das opções constitucionais esboçadas em outros preceitos, delineadoras dos princípios e objetivos da república federativa brasileira, assim restou lavrado o art. 37, §4°.:
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte (*de acordo com a redação dada pela Emenda Constitucional 19/98):
§ 4º – Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.
O constituinte obrou com intensa preocupação a formação do novo regime, o democrático. Fica nítida a intenção constitucional de superar mazelas do passado, como o arbítrio, o abuso, a prepotência, a desigualdade de tratamento por qualquer razão; e também evidente a idéia da imperatividade da ordem jurídica, como preceitos para todos, em especial aos que exercem função pública.
Necessitávamos de leis que viabilizassem a aplicação dos preceitos constitucionais de defesa do povo contra atos nefastos de agentes públicos. Umas já existiam e foram recepcionadas pelo novo texto constitucional, à medida que não o contrariassem. Outras eram requeridas.
O momento do impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello foi de extrema preocupação com a ética pública, com a igualdade de todos perante a lei (inclusive da mais alta autoridade do Executivo do país), e do combate à corrupção em geral, acompanhando nisto uma tendência mundial, pela constatação dos terríveis efeitos deste mal à humanidade.
Neste contexto histórico foi gerada e publicada a Lei 8.429/92, alcunhada Lei de Improbidade Administrativa. A sua aplicação prática, todavia, foi se dando paulatinamente, como cada passo da democracia, cada ato que se sucede neste processo. Veio a Lei 8.625/93 e a Lei Complementar 75/93, que regularam a Instituição do Ministério Público, reforçando seus poderes e prerrogativas para a consecução de sua destinação constitucional, ou seja, “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127 da CF).
Autoridades em todo o país passaram a ter suas gestões investigadas e, verificado o ato ímprobo, iniciaram-se processos, e após os devidos contraditórios e amplas defesas, impeliram-se sérios efeitos aos condenados. Resgatou-se a credibilidade da Justiça e desestimulou-se a utilização do público para fins alheios.
Obviamente essa situação não agradou a muitos. Pessoas enraizadas a práticas clientelistas, patriarcais, assistencialistas; pessoas que foram financiadas ou corrompidas com o fito de defender interesses de determinados grupos ou até mesmo de organizações criminosas (prática bastante corriqueira na caracterização de tais entidades por definição ilícitas); etc., não quiseram se amoldar à nova ordem e passaram a se voltar contra ela.
Muitos maus gestores foram condenados a ressarcir os cofres públicos por suas ações ímprobas. Isto apesar de faltarem condições técnicas não-jurídicas, materiais e operacionais ao Ministério Público e ao Judiciário, que, todavia, com amplo apoio popular, puderam contar com o auxílio de entidades particulares, organizações não-governamentais, imprensa e universidades para a realização da Justiça.
O Supremo Tribunal Federal cancelou a Súmula 394, que sintetizava entendimento outrora predominante naquele Tribunal, de que os agentes públicos mantinham seus foros especiais ainda que deixassem de exercer as funções que os faziam detê-los. Em outros termos, não mais se justificava, perante a nova ordem constitucional, que agentes públicos que tinham foro especial pela função específica executada, sendo julgados diretamente por órgãos judiciais colegiados, os mantivessem ao deixarem-nas de exercer. Foi uma clara demonstração, pelo guardião da Constituição, de uma interpretação consagradora do caráter instrumental de tal prerrogativa. E isso, ressalte-se, em matéria penal, e não civil, como a que trata a Lei de Improbidade Administrativa (consoante entendimento até aqui dominante no próprio STF e no Superior Tribunal de Justiça).
A revolta dos militantes contra a defesa da ética e da probidade administrativa tomou enorme proporção política, a ponto de, recentemente, o Congresso Nacional ter aprovado o projeto que modificou o Código de Processo Penal, mantendo o foro especial para ex-autoridades públicas, e rapidamente acenado para a alteração da Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa), em muito inviabilizando sua aplicação, bem como a modificação da Lei de Abuso de Autoridade com o fito de tornar impossível o conhecimento público de atos de corrupção, mediante a proibição da manifestação de membros do Ministério Público, do Judiciário, dos Tribunais de Contas, Policiais e Autoridades Administrativas em procedimentos de investigação ou processos criminais, bem como a permissão de que informações ou dados cheguem a terceiros ou à imprensa, numa ampla manifestação de afronta à democracia.
Primeiramente, ao concentrar nas mãos dos Procuradores-Gerais de Justiça ou do Procurador-Geral da República as iniciativas de ações frente a determinadas pessoas, ainda que não mais exerçam as funções que justificavam o foro especial, multiplica-se a afluência de serviço destes, que já detêm numerosos outros.
Seguramente, ao que se deixa transparecer, o intuito é o de, assim, deixar impunes atos de corrupção, cuja investigação e promoção de ações não poderia, em tese, ser feita com a mesma eficiência que as realizadas por centenas de membros do Ministério Público, nem tampouco julgadas com celeridade pelos Tribunais, que se verão inundados por outros processos, por vezes de complexa solução jurídica. Outra razão aparente é a idéia, lamentavelmente nem sempre refutada pela conduta, de que a limitação do número de autoridades da Justiça, facilitaria a tentativa de intervenção política, aproveitando-se de uma brecha no sistema jurídico nacional, que assegura a nomeação de membros de Tribunais e da chefia do Ministério Público diretamente pelo chefe do Executivo, fruto de uma má interpretação da legitimidade da Justiça estatal, que deve ser mediata (pela investidura e atuação consoante a ordem jurídica existente, na qual a Constituição é fonte de validade de todas as demais normas do sistema) e não imediata (pelo voto popular ou nomeação política).
Por outro lado, quer-se burocratizar os procedimentos de investigação, inviabilizar a atuação da Justiça em relação a determinadas pessoas: os “mais iguais”; evitar até mesmo a colaboração pública na colheita da prova; enfim, erradicar a comunicação e a vigilância, o controle e a responsabilidade.
Triste coincidência da vida: uma fatalidade levou-nos uma de nossas mais brilhantes mentes nacionais, o eminente jurista Evandro Lins e Silva, defensor incansável das liberdades e combativo inimigo do arbítrio e das desigualdades, no mesmo dia da deliberação do Senado em relação ao primeiro dos projetos citados.
Resta-nos a esperança, e esta não pode desaparecer, de que, se não houver o esperado rechaço da violência à Constituição pelo seu guardião, e não ocorrer uma surpreendente reviravolta do Parlamento no sentido da democracia substancial, os novos agentes, vitoriosos das urnas de confiança, restaurem a ordem democrática com o exercício de tão nobres funções. Seus atos os caracterizarão e trarão sobre eles o jugo popular. “Pelos frutos os conhecereis…”.
* Paulo Gomes Pimentel Júnior
Doutorando em Direito pela Universidade de Salamanca (Espanha), Graduado e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE), Especialista em Direito e Cidadania pela UFRN e Pós-graduado em Justiça Constitucional e Processos Constitucionais pela Universidade de Castilla-La Mancha (Espanha). Promotor de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, Assessor do Procurador-Geral de Justiça