Marcelo Lessa Bastos
Análise Crítica
Neste limiar de milênio, vivemos o apogeu irreversível do culto aos Direitos Humanos, que se cristalizaram não só juridicamente, como – e principalmente – ideológica e sociologicamente.
Tal culto iniciou-se tardiamente, deve-se registrar, porque só a partir da Revolução Francesa, pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão feita pela Assembléia Constituinte de 1789, as idéias sobre um Direito Internacional dos Direitos Humanos, oponível a todas as gentes, foram sendo sedimentadas, muito embora se pudesse enxergar embriões dessas idéias na Carta Magna inglesa de 1215[1].
O espectro de abrangência da expressão “Direitos Humanos”, ao longo da história, varia de acordo com as necessidades de conquistas, sempre tendo-se por horizonte os avanços e as melhores condições de proteção ao homem a que se podem chegar.
Num primeiro momento, reagia-se, por ocasião do Iluminismo, contra as formas mais básicas de opressão a que o povo estava submetido, em virtude da arbitrariedade dos governantes e do trabalho escravo, sendo mister que fosse declarado que todo o homem é livre e merece um tratamento condizente com a dignidade de sua pessoa. Assentados os postulados mínimos que definiriam o que é esta dignidade inalienável, como o direito à vida, o direito à integridade física, o direito à saúde etc., avançou-se no sentido conquistarem-se direitos sociais, a um trabalho digno, com remuneração adeqüada, em condições satisfatórias, bem como a um meio-ambiente equilibrado, onde a vida pudesse se desenvolver segundo condições harmoniosas de equilíbrio ecossistêmico. Avançou-se, incluindo dentre os Direitos Humanos o amplo acesso aos órgãos responsáveis por assegurar o adimplemento das políticas governamentais tendentes a implementar os básicos direitos consagrados nas gerações anteriores, com a viabilização do acesso à Justiça, através de mecanismos que assegurassem eficiência e eficácia aos instrumentos de proteção jurisdicional, notadamente ações coletivas. No momento atual, busca-se a perfeição ética, protegendo-se o homem da inteligência do próprio homem, no desiderato de não se permitir violarem-se as leis naturais e subverterem-se a natureza das coisas.
Como se vê, Direitos Humanos designam, hoje em dia, muito mais do que o simples respeito aos cidadãos enquanto cidadãos. Esta é a primeira geração dos Direitos Humanos, os direitos individuais que, em tempos atuais, não passam de um mínimo inquestionável e indiscutivelmente aceito nos povos civilizados.
Observa-se que as demais gerações dos direitos humanos desenvolvem-se exatamente para, numa relação dialética, conseguir-se assegurar o implemento das garantias conquistadas na primeira geração.
A aceitação teórica do tema Direitos Humanos na comunidade internacional torna indiscutível a necessidade de sua tutela, mesmo por países autoritários, que não deixam de transcrever tais direitos em seus ordenamentos jurídicos[2].
Vivemos hoje uma situação ímpar na história da humanidade. O implemento das telecomunicações e dos transportes, ligando os vários cantões de todos os continentes como uma grande aldeia global, o que se tem resumido na expressão cunhada “globalização”, facilita a difusão e a aceitação por todos os povos dos ideais de liberdade, igualdade e bem estar trazidos pelo moderno contorno dos Direitos Humanos.
O trato rápido das informações e o poder da mídia eletrônica espalham pelos cinco continentes essas idéias, com uma velocidade jamais alcançada e nunca imaginada, como que um cogumelo atômico. Só que um cogumelo de alvíssaras, não de destruição.
A interligação dos povos e a facilidade de deslocamento e de comunicação talvez seja a principal responsável pelo desenvolvimento do Direito Internacional, tendo por carro chefe os Direitos Humanos.
Cada vez mais celebram-se tratados internacionais, aos quais cada vez mais países depositam seus instrumentos de adesão, com cada vez menos reservas, florescendo uma idéia no sentido de uma ordem internacional superior, onde todos os Estados-Membros estariam comprometidos em garantir a plenitude dos Direitos Humanos de seus cidadãos, que, com o passar do tempo, já não mais seriam cidadãos de um Estado ou de outro, mas cidadãos da humanidade.
Passo importante nesta direção foi a admissão da personalidade internacional do homem, garantindo aos prejudicados a argüição, pelo menos na Corte de Justiça da Comunidade Européia, de direitos violados pelos órgãos comunitários[3].
O maior problema dos Direitos Humanos nos tempos atuais não é sua base teórica, mas sua garantia e efetivação na prática. Ninguém discute, no plano abstrato, a necessidade de tutelarem-se os Direitos Humanos. O problema é que nem sempre funcionam os mecanismos que deveriam assegurá-los no dia-a-dia, por diversas razões.
Não pode haver dicotomia entre a teoria dos Direitos Humanos e sua aplicação prática, porque é inconcebível que conceitos tão elementares percam-se no discurso retórico.
Convivemos, assim, com as maiores atrocidades no que pertine a violações aos Direitos Humanos, que vão desde políticas públicas que não garantem aos cidadãos as mínimas condições de sobrevivência digna (seja através de baixa remuneração, seja através de péssimas condições de vida, de habitação, de transporte, de saúde etc.), até condutas de entes públicos que destroem o meio-ambiente, patrimônio que é da humanidade.
Correta a observação de que “cada vez que morre uma espécie, de certa forma é o próprio homem que more aos poucos, porque isso interrompe um elo essencial na cadeia da vida e nós não sabemos até que ponto essa cadeia não está indissoluvelmente ligada, e todos os elos dependem uns dos outros”[4]. Como se falar em garantia dos Direitos Humanos se, semanalmente, derramam-se litros e litros de óleo combustível nos rios, lagos e baías? Pior: derramam-se de propósito (quando lavam-se tanques de navios cargueiros); derramam-se por omissão negligente (quando ingerências econômicas interferem na manutenção de um padrão de qualidade que evite desastres desse jaez).
Na questão meio-ambiente o Brasil é uma vitrine mundial, em virtude de possuir em seu território a Floresta Amazônica, considerada pulmão do mundo e, portanto, patrimônio da humanidade.
Na medida em que a União compromete-se internacionalmente em múltiplos tratados sobre Direitos Humanos, é relevante a preocupação em que possa apurar eventuais transgressões, até mesmo para que consiga das satisfações à comunidade internacional sempre que se reclamar de alguma violação[5].
É preciso, também, para que se consiga garantir a plenitude dos Direitos Humanos, enfrentar o crime e a violência de frente, dotando-se o aparelho repressivo de instrumentos penais e processuais eficazes para combater principalmente o crime organizado, estimulando-se as denúncias[6] por intermédio de recompensas[7].
Neste particular, ousamos afirmar que a saída para o combate ao crime, seja institucionalizado, seja particularizado, está no fortalecimento das funções institucionais do Ministério Público, transformando-o de vez no Quarto Poder, já que a visão tripartida de Montesquieu já merecia um aperfeiçoamento e uma atualização histórica. Nossa Constituição delineou o Ministério Público muito melhor do que perfilado nas Cartas anteriores, quando era quase que inexistente. Porém foi tímida ao não lhe reconhecer como autêntico Poder, dotando-o de prerrogativas que todos os Ministérios Públicos dos países europeus, incluindo-se os dos Estados Unidos, possuem, tais como a determinação de medidas coercitivas cautelares indissociáveis da função investigatória[8], por exemplo, as buscas domiciliares e quebras de sigilos constitucionalmente assegurados[9]. Não se pense que tais prerrogativas poderiam comprometer o direito de liberdade dos transgressores da Lei; do contrário, se exercidas com seriedade só serviria para tutelá-los, em nome de um bem maior, que é o bem coletivo. Note-se que países de vanguarda democrática e humanística chegam a situar o Ministério Público dentro da Magistratura[10].
Outra preocupação dos dias atuais é com os crescentes retrocessos no âmbito dos direitos sociais, principalmente os direitos trabalhistas, ditados por uma das repercussões do fenômeno globalizante, cunhado na expressão “globalização econômica”.
Mergulhados em políticas recessivas para ajustarem-se às cartilhas dos organismos monetários internacionais, os Governos tendem a flexibilizar conquistas trabalhistas, até mesmo para atrair investimentos estrangeiros, através de um custo barato de mão-de-obra, o que consiste em incrível retrocesso, fazendo com que o trabalhador pague a conta da globalização, sofrendo os efeitos de um processo cujos louros lhes são excluídos. O trabalhador tem os ônus inerentes ao processo; porém não aufere os bônus que ele traz. Pressionados pelos poderosos grupos econômicos, paulatinamente as reservas de mercado vão acabando, expondo a indústria nacional, sob o discurso hipócrita da competição e da concorrência, à falência agonizante, gerando mais e mais desemprego e miséria.
Por falta de investimentos nas zonas rurais, distantes dos holofotes da mídia, governantes irresponsáveis expulsam o homem do campo, deslocando a geografia da miséria, o que acaba, ciclicamente, por destruir as metrópoles com o acúmulo crescente de favelas, trazendo mais e mais famílias para condições subumanas de vida, que acabam desaguando na violência e no caos social. Mais uma vez, sofrem os Direitos Humanos.
Concentração de renda; latifúndios improdutivos; má vontade em assentar o homem no campo; omissão estatal na atuação social, como no implemento da saúde, saneamento etc. São alguns dos fatores arrolados como violadores dos Direitos Humanos[11].
A miséria é apontada como o centro dos atos mais atentatórios aos Direitos Humanos, o que é uma assertiva perfeita[12]
De tudo quanto foi dito, extrai-se uma certeza: chegamos ao Terceiro Milênio com resquícios de velhos vícios descortinados no Segundo Milênio, cuja solução depende única e exclusivamente de vontade política.
Os novos tempos são anunciadores do retorno ao culto ético, porque só a ética e a moral é que estão faltando para que consigamos garantir a plenitude dos Direitos Humanos, ao passo em que, no campo teórico-jurídico, eles estão mais do que garantidos, seja por tratados internacionais, sejam pelas próprias Constituições – citemos a nossa, como exemplo – que já deferem posição de supremacia do Direito Internacional em relação ao Direito Interno, pelo menos no que se refere aos Direitos Humanos, cujas normas convencionadas adquirem status de normas constitucionais[13].
De um passado de opressão e Poder com origem divina, muito já se conquistou, mercê de derramamento de litros de sangue, na paradoxal guerra para assegurar-se a paz. De um presente de conquistas estabilizadas e juridicamente asseguradas, só precisamos partir para um futuro de discursos sem retórica, comprometidos com a sinceridade na atuação segundo os parâmetros teóricos já exaustivamente delineados.
É muito fácil chegar lá. Nem lutar se precisa mais. Basta ter-se a consciência da necessidade de conservar-se, no plano dos efeitos, todas as conquistas ideológicas de nossos ancestrais, até mesmo para que nos sintamos dignos de todo o sacrifício que, vidas atrás, os mesmos suportaram.
“Só quero saber do que pode dar certo, não tenho tempo a perder”…
Referências Bibliográficas[14]
COSTA, Álvaro Augusto Ribeiro da. Dificuldades Internas para a Aplicação das Normas Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos no Brasil.
DINIZ, ARTUR JOSÉ ALMEIDA. Da Necessidade de Adequação da Legislação Interna às Diretrizes Atuais no Domínio dos Direitos Humanos.
FABRIS, Sérgio Antônio. Direitos Humanos e o Código Civil Brasileiro. Adequação da Legislação com Relação à Igualdade de Gênero.
RICUPERO, Rubens. Normas Internacionais de Proteção e Dificuldades Internas.
PEREIRA, Antônio Celso Alves. O Acesso à Justiça e a Adequação da Legislação Brasileira aos Instrumentos Internacionais Relativos aos Direitos Humanos.
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A Interação entre o Direito Internacional e o Direito Interno na Proteção dos Direitos Humanos.
Trabalho apresentado no Curso de Mestrado em Políticas Públicas e Processo, sob a orientação do Professor Dr. Antônio Celso Alves Pereira.
Marcelo Lessa Bastos é Promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro e Professor de Direito Penal Especial e de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito de Campos e da FEMPERJ.
[1] FABRIS, Sérgio Antônio. Os Direitos Humanos e o Código Civil Brasileiro: Adequação da Legislação com Relação à Igualdade de Gênero.
[2] Como observa Sérgio Antônio Fabris, op. cit.
[3] Noticia-nos Antônio Celso Alves Pereira, in PEREIRA, Antônio Celso Alves. O Acesso à Justiça e a Adequação da Legislação Brasileira aos Instrumentos Internacionais Relativos aos Direitos Humanos.
[4] RICÚPERO, Rubens. Normas Internacionais de Proteção e Dificuldades Internas.
[5] Correta a observação de RICÚPERO, Rubens. Op. cit. Segundo ele, o mecanismo de intervenção federal, previsto em nossa Constituição, não consegue dotar a União de meios eficazes de controlar a garantia dos Direitos Humanos contra violações como tortura, racismo etc., ao passo em que, na repartição de competência da forma federativa, tal atribuição toca aos Estados federados. Sugere que se concentre na União, ou, melhor refletindo, para evitar ingerências políticas, no Ministério Público, sob o controle do Congresso Nacional.
[6] Palavra empregada em sentido figurado, querendo referir-se a notícia-crime.
[7] Como estava previsto nas Ordenações Portuguesas, segundo noticia RICÚPERO, Rubens. Op. cit.
[8] Sua função primária.
[9] Em uma de suas últimas edições, a revista Veja publicou um quadro comparativo das atribuições do Ministério Público Brasileiro, Alemão, Norte-Americano, Espanhol e Italiano, cujo estudo sugere ser mesmo o Brasil um país timidamente subdesenvolvido.
[10] Itália, Espanha, dentre outros (até Portugal!).
[11] COSTA, Ribeiro Álvaro Augusto. Dificuldades Internas para a Aplicação das Normas Internacionais de Proteção aos Direitos Humanos no Brasil.
[12] DINIZ, Arthur José Almeida. Da Necessidade da Adequação da Legislação Interna às Diretrizes Atuais no Domínio dos Direitos Humanos.
[13] Cf. Constituição Federal, art. 5º, § 2º.
[14] Textos publicados na obra A Incorporação das Normas Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos no Direito Brasileiro, uma coletânea coordenada por TRINDADE, Antônio Augusto Cançado, em co-edição do Instituto Interamericano de Direitos Humanos/Alto Comissariado da ONU para Refugiados.