Autor: Dalton Cesar Cordeiro de Miranda (*)
O Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, reunido em sessão ocorrida em junho de 1994, apreciou o Habeas Corpus (HC) 70389-5 impetrado em favor de dois policiais militares acusados de terem detido um jovem e, no posto policial e para dele conseguirem confissão, o agredido, causando-lhe lesões corporais.
Observamos, por relevante, que aquele HC não foi impetrado contra a situação fática delituosa imputada aos pacientes — crime de tortura previsto no artigo 233 da Lei 8.069/90 —, mas, sim, para buscar uma definição quanto ao juízo competente para julgá-los e processá-los.
O então ministro relator à época proferiu voto pelo trancamento da ação penal em curso perante Vara Criminal da Justiça Comum estadual, pois que declarava a inconstitucionalidade daquele artigo 233 da Lei 8.069/90, por entender ausente a definição de crime de tortura e, consequentemente, em desalinho com o inciso XXXIX do artigo 5º da Constituição Federal.
Assim, entendia que aquele feito deveria ser deslocado para a Justiça Militar.
Ocorre que o referido posicionamento restou vencido por argumentação contrária no sentido de que estaria sim o crime de tortura contra a criança e o adolescente previsto naquele artigo 233 da Lei 8.069/90, tendo ainda o voto vencedor consignado que, além da brutalidade da conduta praticada pelos pacientes, restou configurado flagrante desrespeito ao direito da pessoa humana e “acintoso desprezo pela ordem jurídica estabelecida.”
A gravidade da conduta delituosa ainda resta permeada — afirmou o prolator do voto vencedor — pelo fato de que praticada de maneira abusiva por agente de segurança em exercício de função estatal; sendo que a violência física levada a efeito, mesmo que geradora de lesões corporais leves, constituiu um dos vários meios de tortura, não sendo necessário a exigência de um ‘nomen juiris‘ próprio para caracterizá-la (a tortura). Frisou ainda a relatoria vencedora que o país é subscritor de diversos documentos internacionais em Direitos Humanos que veementemente recriminam a tortura, nos moldes em que entendeu praticada pelos agentes de segurança do estado, policiais militares e pacientes do HC impetrado.
Foi ainda elencado em voto vencedor os princípios fundamentais norteadores da nova ordem constitucional, cuja observação já se fazia necessária quando daquele julgamento:
(i) a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III);
(ii) a prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II);
(iii) o repúdio à tortura ou a qualquer outro tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III);
(iv) a punição de qualquer ato atentatórios aos direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI);
(v) a inafiançabilidade e a inagraciabilidade do crime de tortura (art. 5º, XLIII);
(vi) a intangibilidade física e a incolumidade moral de pessoas sujeitas à custódia do Estado (art. 5º, XLVII);
(vii) a decretabilidade de intervenção federal, por desrespeito aos direitos da pessoa humana, nos Estados-membros e no Distrito Federal (art. 34, VII, ‘b’); e,
(viii) a impossibilidade de revisão constitucional que objetive a supressão do regime formal das liberdades públicas (art. 60, § 4º, IV).
Com isso, concluiu que a liminar em HC fosse parcialmente deferida para determinar que os agentes de segurança do estado fossem submetidos à Justiça Comum, unicamente pela prática do delito de tortura previsto no mencionado artigo 233 da Lei 8.069/90 que, uma vez declarado constitucional, afastou a competência da Justiça Militar.
E ainda no que diz respeito ao reconhecimento e penalização de ato abusivo, ou seja, praticado com excesso por agentes de segurança no exercício de função estatal, em inobservância aos princípios acima elencados (i a viii), temos que o Superior Tribunal de Justiça manteve em decisão monocrática datada de agosto de 2011 a condenação de ente estatal por responsabilidade civil e o reconhecimento de seu dever em reparação a título de danos morais (ARESP 24053).
O Tribunal da Cidadania assim decidiu ao analisar situação em que o jurisdicionado indenizado foi preso em diligência promovida por agentes de segurança do estado, sem ordem de autoridade judiciária, mas por iniciativa de supostas vítimas de roubo, destacando que a privação de liberdade deu-se de forma vexatória, truculenta (tapas e empurrões) e com exposição midiática, em um quadro de culpa que somente foi desfeito em momento posterior e pela análise de prova cabal de não participação do cidadão indenizado.
A indenização pelos danos morais sofridos foi arbitrada em R$ 6 mil, em face da responsabilidade objetiva do Estado pela prática de atos desmedidos e abusivos de seus agentes de segurança — consubstanciados em prisão ilegal seguida de violência física e moral.
Os relatos feitos acima demonstram que a jurisprudência das Cortes nacionais desde sempre estiveram alinhadas com as decisões das Cortes internacionais responsáveis pelos exames e julgamentos de questões sobre a dignidade humana, tratamento desumano e degradante, culminando em efetiva responsabilização e condenação dos Estados pelos excessos cometidos por agentes de segurança quando no exercício de função estatal.
E assim afirmamos — com margem de conforto — após análise do “Caso Bouyild vs Bélgica”, apreciado pela Corte Europeia de Direitos Humanos e originário do Pedido 23380/09, julgado em setembro de 2015, após Corte judicial belga ter arquivado processo em que nela teve curso.
Tal ‘pedido’ foi formulado àquela Corte Europeia de Direitos Humanos por dois irmãos belgas que, em anos distintos e separadamente, teriam sido conduzidos a distrito policial e recebido uma bofetada na cara. Apresentaram, cada qual, laudos periciais que comprovariam as agressões sofridas.
Os irmãos perante a Corte sustentaram a ocorrência de tratamento degradante por parte das autoridades policiais. O Estado da Bélgica, d’outro giro, afirmou que as alegações dos Peticionantes foi submetida a uma investigação oficial, somado ao fato de que os atestados apresentados pelos Peticionantes não comprovariam que os mesmos efetivamente teriam sido agredidos por agentes de segurança; sendo que esses agentes durante todo o curso das investigações negaram veementemente as agressões a eles imputadas; e mais, a família dos irmãos já tinha um histórico de problemas para com as autoridades policiais local.
Um terceiro observador foi chamado aos autos e este atestou que a conclusão para o encerramento do processo judicial que se seguiu ao processo oficial de investigação levou em consideração tão somente as razões apresentadas pelo Estado belga, tendo acrescentado com destaque o fato de que as autoridades da Bélgica já haviam sido alertadas sobre condutas rotineiras de violência praticadas por seus agentes de segurança.
Munida das razões de pedir, das de defesa do Estado e da manifestação de terceiro observador, aquela Corte de Direitos Humanos acolheu o ‘Pedido’ formulado de modo assim fundamentado: (i) as investigações oficiais e judiciais não atenderam ao contraditório, pois não realizada uma acareação entre peticionantes e autoridades policiais, ou mesmo uma entrevista com os peritos que elaboraram os laudos médicos confirmando as agressões; (ii) o processo investigatório foi moroso, pois entre o reclame da primeira vítima e o julgamento pela Corte de Cassação judicial transcorreu-se um período de 5 anos; e, (iii) a atuação das autoridades causou, no caso concreto, obstáculos e dificuldades para o progresso do processo investigatório, bem como desconfiança e certa tolerância para com atos ilegais de violência.
Assim, majoritariamente, aquela Corte Europeia concluiu ter sim ocorrido a prática de tratamento degradante contra os Peticionantes, o que culminou na condenação do Estado belga a pagar — dentro de três meses contados de 28 de setembro do corrente ano — a quantia de cinco mil euros a cada peticionante, descontada a tributação incidente sobre tal valor; e, em conjunto, 10 mil euros, também descontados os tributos incidentes.
Como visto, não como regra, arbitrariedades e violência contra a pessoa são cometidas mundo afora, tão certo como falhos também o são os sistemas de proteção e investigação, mas tal não pode nos tornar descrentes pois, também como acima demonstrado, existem instituições e instâncias que estão a jogar luzes e fazer prevalecer “o respeito ao ser humano, desde a concepção e até a sua morte natural, não se admitindo tergiversações que, relativizando os mais básicos direitos fundamentais, dê azo á instauração de uma sociedade calcada no direito do mais forte.” [1]
Contra a violência faz-se jurisprudência!
Referências
[1] “Direitos Fundamentais”. FILHO, Ives Gandra Martins. ‘in’ “Tratado do Direito Constitucional”, v. 1 / coordenadores Ives Gandra da Silva Martins, Gilmar Ferreira Mendes, Carlos Valder do Nascimento. – São Paulo : Saraiva, 2010. p. 283
Autor: Dalton Cesar Cordeiro de Miranda é consultor no escritório Trench, Rossi e Watanabe Advogados, pós-graduado em Administração Pública pela EBAP/FGV.