Uma reforma constitucional à luz da “nova separação de poderes” de Bruce Ackerman

Autor: Gustavo Leonardo Maia Pereira (*)

 

A partir de uma inquietação que moveu mais os cientistas políticos do que os juristas, concernente ao efetivo funcionamento dos sistemas políticos ao redor do mundo, Bruce Ackerman, professor de Yale e um dos constitucionalistas mais prestigiados da atualidade, no importante texto The New Separation of Powers, propôs uma mudança de abordagem em relação à separação e distribuição de poderes e funções estatais. A formulação, contudo, veicula uma percepção crítica acerca do foco das pesquisas feitas na Ciência Política, dominadas, segundo o autor, pela preocupação com o grau de concentração do poder legislativo, à luz da relação entre presidentes/primeiros-ministros e parlamentos.

A “nova separação de poderes” de Ackerman leva em conta o papel central dos tribunais e das agências e propõe uma leitura da separação de poderes como uma distribuição de funções, e não propriamente como uma divisão do poder. Assim, tem mais facilidade em reconhecer o esgotamento de um dos paradigmas da modernidade, segundo o qual as funções do Estado seriam a criação e a aplicação da lei, por sua vez centralizadas e monopolizadas por ramos divididos de acordo com a trindade de Montesquieu.

O pensamento é sintonizado com as duas principais ideias-força que determinaram as mudanças de paradigma do constitucionalismo contemporâneo: democracia e direitos fundamentais; às quais o autor acrescenta a ideia de profissionalismo da burocracia, tendo em vista sua ênfase na importância da aplicação imparcial da lei para fins de garantia da legitimidade democrática.

Em linhas gerais, o autor propõe (i) modificações substanciais no sistema de governo; (ii) o reconhecimento e a estruturação constitucional de funções estatais isoladas da influência política; e (iii) o reconhecimento de limites à vontade majoritária impostos pelo dever de proteção de direitos fundamentais, tudo de forma a promover (i) maior legitimação democrática; (ii) profissionalização da burocracia e aplicação imparcial da lei; e (iii) efetivação de direitos de participação democrática e a realização de justiça distributiva.

O objetivo central do presente texto é fazer um breve exercício sobre o possível conteúdo de uma reforma à Constituição de 1988, com base nas ideias de Bruce Ackerman acerca da “nova separação de poderes”.

Propondo a superação da discussão em torno dos modelos ideais de arranjo institucional normalmente apontados na literatura — o britânico (parlamentarismo puro) e o americano (presidencialismo) —, o autor instiga-nos a olhar para outras conformações do sistema político que se consolidaram ao longo da segunda metade do Século XX e a reconhecer a importância e a complexidade das novas necessidades e funções do Estado.

Na visão de Ackerman, o modelo americano de separação de poderes, entre presidente, Câmara e Senado, embora tenha funcionado nos EUA, revelou resultados desastrosos em outros países, sobretudo na América Latina.

Nem Westminster nem Washington. Defende a instituição de um “parlamentarismo constrangido”, considerando-o uma força em ascensão no mundo, apesar de reconhecer que nenhum país encontrou a fórmula perfeita para “constranger” o governo parlamentarista.

A Constituição brasileira de 1988, além de inspirar-se no modelo americano de separação de poderes, adota uma combinação fortemente rejeitada por Ackerman: presidente eleito pelo povo e representação proporcional na Câmara.

O professor americano faz uma crítica contundente ao presidencialismo. Uma das desvantagens mais evidentes do presidencialismo seria o risco de impasse, que emerge quando as eleições presidenciais são vencidas por candidato de partido diferente daquele que prevalecer nas eleições congressuais.

A crise de governabilidade que pode advir da cisão do poder precisa ser acomodada por meio da formação de complexas coalizões, estabelecidas com base em distribuição de cargos e verbas orçamentárias; pode levar a uma usurpação de um poder pelo outro (pesadelo de Linz), levando a uma ruptura constitucional; ou pode induzir o Presidente a forçar a expansão de seus poderes normativos.

Ackerman pondera, ainda, os malefícios do regime de full authority, que ocorre quando o mesmo grupo ganha as eleições presidenciais e congressuais. No presidencialismo, as decisões tendem a ser mais estáveis, já que é mais difícil que um grupo conquiste a full authority e as modifique imediatamente. Por outro lado, os ciclos eleitorais fazem com que as decisões sejam mais simbólicas, menos efetivas. No parlamentarismo, para Ackerman, o risco de modificação no ciclo seguinte faz com que as políticas sejam melhor discutidas e estruturadas, a fim de que sejam mantidas pelo próximo governo.

O presidencialismo induziria à politização da burocracia — o presidente e seus ministros competem com os parlamentares de diversos segmentos pelo controle da burocracia. Tendo em vista a necessidade do governo de formar coalizões, os burocratas buscam apoio em ambos os ramos, muitas vezes recebendo respaldo de partido diferente daquele do presidente ou mesmo do ministro a que está subordinado.

Ackerman revela perplexidade com o fato de o presidente dos EUA indicar cerca de 4 mil pessoas para cargos de confiança na administração pública, em contraposição ao primeiro-ministro inglês, que nomeia pouco mais de 100 ocupantes de cargos. No Brasil, só na esfera federal, são mais de 20 mil cargos comissionados, sendo Brasília a prova viva da tese do professor americano, em que os burocratas concursados são relegados a funções de 3º escalão, a menos que obtenham respaldo político-partidário para ascender na própria carreira.

A eleição popular do presidente, na visão de Ackerman, predispõe o sistema ao culto da personalidade na política. No parlamentarismo, há mais incentivos a discussões programáticas, tornando a relação com o partido e com o gabinete mais profissional, já que a legitimidade do chefe de governo não advém diretamente do voto popular.

No Brasil, de fato, o culto à personalidade parece ser muito forte, de forma que a governabilidade tem dependido muito da capacidade pessoal do presidente de liderar grupos e compor coalizões estáveis, como aponta Fukuyama.

A representação proporcional no parlamento, por sua vez, embora assegure maior representatividade às minorias, induz ao multipartidarismo e à elevada fragmentação da representação, conforme a Lei de Duverger.

Um parlamento muito fragmentado compromete substancialmente a efetividade do governo, além de ser também uma ameaça constante à sua estabilidade, impondo a formação de coalizões, que não necessariamente serão orientadas por critérios ideológicos e pautas programáticas.

Dessa forma, em conformidade com as ideias de Bruce Ackerman, a primeira reforma a ser feita na Constituição Federal do Brasil seria a troca do sistema presidencialista pelo parlamentarismo, no qual o chefe de governo não seria eleito pelo povo, e sim pela Câmara, que compartilharia o poder legislativo com o Senado, não devendo este, contudo, interferir na escolha do primeiro-ministro.

A necessária limitação ao poder majoritário do parlamento deve advir, segundo Ackerman, em primeiro lugar, do controle exercido por uma corte constitucional, que deve adotar como parâmetro a Constituição, de forma a proteger determinadas decisões fundamentais em face de maiorias ocasionais.

O sistema de controle de constitucionalidade já está previsto na Constituição vigente, devendo haver, contudo, em conformidade com o pensamento de Ackerman, uma reforma substancial no desenho institucional do Supremo Tribunal Federal. Deve-se assegurar poder de veto às minorias parlamentares na escolha dos ministros, alterando-se o quórum necessário para a aprovação da indicação do presidente da República, de maioria absoluta para 2/3, como acontece na Alemanha. Além disso, deve-se substituir a vitaliciedade pela temporariedade, por meio da instituição de mandato para os ministros, que poderia ser de 12 anos, também seguindo o exemplo alemão.

A terceira reforma, também relacionada à necessidade de conferir estabilidade e legitimidade democrática ao sistema político, seria a revisão dos moldes da representação e participação da sociedade, tanto pelo aperfeiçoamento do voto proporcional como pelo fortalecimento dos canais de democracia direta.

Apesar das ressalvas de Ackerman, fundadas nos problemas de governabilidade, parece-me que o Brasil, dadas suas marcantes desigualdades sociais e regionais, não pode abrir mão do sistema proporcional, que, contudo, deve ser aperfeiçoado.

O próprio Ackerman reconhece o ganho democrático do modelo proporcional e propõe formas de aperfeiçoá-lo, quais sejam, a criação de cláusula de barreira, a fim de reduzir o número de atores envolvidos na barganha política; e a instituição de um voto de desconfiança “construtivo”, por meio do qual o parlamento só pode destituir o primeiro-ministro caso indique substituto por meio da votação da maioria absoluta de seus membros.

A cláusula de barreira já foi declarada inconstitucional pelo STF em 2006, sob o fundamento de que feriria o direito à livre organização dos partidos e alijaria do processo político certos segmentos da sociedade.

Ocorre que a análise da realidade brasileira evidencia que a proliferação de partidos não tem refletido na ampliação da representatividade da sociedade. Pelo contrário, tem servido mais para comprometer a governabilidade e propiciar a corrupção.

Dessa forma, poderia o poder constituinte enfrentar o entendimento do Supremo e instituir cláusula de barreira que negasse funcionamento parlamentar a partidos que não atingissem pelo menos 5% dos votos.

Além disso, a democracia na pós-modernidade tem exigido cada vez mais a instituição de outros canais de participação social, de forma que a legitimidade dependa cada vez menos da intermediação partidária e sejam os cidadãos cada vez mais chamados a escolher não apenas quem deve governar, mas sobretudo como devem governar.

Ackerman propõe, nessa linha, a obrigatoriedade de referendos seriados com votações múltiplas e espaçadas no tempo, quando da aprovação de leis sobre determinadas matérias, como direitos sociais.

A legitimação democrática no Estado pós-moderno depende, também, da capacidade dos diversos centros e espaços decisórios da administração pública complexa promoverem a aplicação do Direito da forma mais justa possível. Ackerman defende que, quanto mais os políticos interferirem na aplicação da lei, menos imparcial ela será.

Assim, apesar dos ganhos que o parlamentarismo traria em relação à profissionalização da burocracia, Ackerman reconhece a necessidade de adoção de outros cuidados, tais como o isolamento de determinadas decisões do raio de influência político-partidária, que devem ser pautadas por critérios e expertise técnicos e controladas por intensa participação social e supervisão judicial.

No Brasil, desenvolveu-se nos últimos 20 anos um modelo de regulação de determinados temas, especialmente relacionados a relevantes setores da economia, baseado na produção e aplicação de normas por entidades com grau reforçado de autonomia — agências reguladoras. Ocorre que esse modelo não foi constitucionalizado, ou seja, é delineado essencialmente com base em leis setoriais, que preveem os mecanismos destinados a conferir autonomia ao órgão, determina seus limites e procuram, de alguma forma, estabelecer as formas de interação com os outros ramos do Estado.

Apesar de todos os esforços dos administrativistas, de fato tem sido difícil fazer funcionar no Brasil a regulação autônoma, constantemente desafiada, seja pelas características do nosso sistema político, seja pelas pressões redistributivas de um país tão desigual, seja pela tradição patrimonialista de nossa administração pública.

De acordo com a visão de Ackerman, seria essencial para o adequado funcionamento desse modelo regulatório, evitando que a expertise técnica se transforme em um mito legitimador das decisões e que seja capturada por interesses de facções, a constitucionalização de seus elementos fundamentais.

Assim, embora não haja consenso na doutrina brasileira quanto à necessidade ou mesmo conveniência da constitucionalização do modelo regulatório, uma reforma constitucional inspirada nas ideias de Ackerman poderia inserir na Constituição um capítulo sobre o regulatory branch, delineando as matérias que deveriam ser reguladas por entidades autônomas; estabelecendo critérios rígidos e uniformes para a nomeação dos dirigentes; criando regras rígidas destinadas a coibir o conflito de interesses e evitar a revolving door; prevendo a obrigatoriedade e parâmetros para a realização de análise de impacto regulatório das decisões; estruturando mecanismos de participação social; prevendo os standards da supervisão judicial; e conformando um sistema de accountability horizontal (TCU) consistente e coerente com os objetivos da regulação.

Por fim, o pensamento de Ackerman também nos instiga a refletir sobre o nosso sistema de integridade, que precisa, segundo o autor, de uma instituição forte, com autonomia orçamentária, cujos membros detenham garantias e prerrogativas e atuem de forma blindada à ingerência político-partidária. A Constituição de 1988 trouxe significativos avanços no que diz respeito à estruturação de um sistema de combate à corrupção, notadamente com a autonomização e fortalecimento do Ministério Público.

Dessa forma, uma reforma à Constituição de 1988 que tivesse como guia as ideias de Ackerman contidas em seu The New Separation of Powers trocaria o presidencialismo pelo parlamentarismo, com voto de desconfiança construtivo; criaria uma cláusula de barreira; elevaria o quórum necessário para a aprovação dos nomes indicados pelo presidente para o STF e instituiria mandato para os ministros; criaria referendos seriados obrigatórios sobre determinadas matérias; e constitucionalizaria o modelo de regulação independente.

 

 

 

 

Autor: Gustavo Leonardo Maia Pereira é procurador federal, mestrando em Direito e Desenvolvimento pela FGV Direito SP, bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará e ex-procurador do Estado de Goiás.


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